segunda-feira, 31 de maio de 2021

“O Estrangeiro”, de Albert Camus – muita tensão no reencontro com os dois árabes; luz e calor do sol, três notas de uma flauta artesanal e o ruído da fonte; Sintès esteve prestes a atirar no desafeto, mas foi desaconselhado pelo amigo; um improvisado plano e a arma passa às mãos de Meursault; ao retornarem à casa, Meursault resolveu caminhar solitariamente sob o sol escaldante

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/05/o-estrangeiro-de-albert-camus-passeio.html antes de ler esta postagem:

Depois do entrevero com os árabes, quando acabou ferido, e da visita ao médico para os curativos, Sintès ficou mal-humorado e quis sair à praia para outra caminhada em busca de ar... Meursault o acompanhou, embora o outro não desejasse companhia.
Apesar do intenso calor, andaram por um bom tempo. O rapaz imaginou que Sintès sabia aonde ia, mas ao mesmo tempo podia estar indeciso ou enganado. Já no fim da praia, chegaram “a uma pequena fonte que corria para a areia, em direção do mar, por detrás de um grande rochedo”. Neste local avistaram os dois árabes. Eles estavam deitados e ainda vestiam os “trajes azuis e sujos”. Pareciam bem calmos e tinham uma aparência “quase beatífica”.
(...)
Os tipos não se mostraram incomodados com a chegada dos dois. Aliás, o que havia lutado com Sintès e o ferira olhava-os sem nada dizer. Seu companheiro soprava numa rústica flauta, provavelmente feita por ele mesmo, as “três notas que conseguia obter do instrumento”. Este também os olhava pelo canto dos olhos sem manifestar qualquer incômodo.
Meursault lembra que a atmosfera estava tomada pelo calor do sol, o monótono barulho da nascente e pelas três notas da flauta. Sintès colocou a mão no bolso detrás da calça... Seu desafeto notou e, ainda sem esboçar qualquer movimento, continuou a fitá-lo.
A cena estava envolvida em tensão... Apesar disso, Meursault voltou sua atenção para os pés do que tocava flauta e notou que seus dedos eram bem afastados. O Sintès também encarava o adversário e sem desviar os olhos perguntou ao companheiro se devia atirar...
Meursault imaginou que se respondesse negativamente o amigo se excitaria e daria o disparo, então resolveu falar que “o tipo ainda não disse nada; disparar assim sem mais nem menos, não seria bonito”.
(...)
Obviamente a tensão aumentou... Envolvidos pelo estonteante calor, os personagens permaneceram em silêncio. Tudo o que se ouvia eram a música da flauta e o leve som da água.
Sintès deu atenção ao conselho do amigo e sugeriu que, então, poderia insultar o seu adversário para que ele reagisse. Desse modo passaria a ter um bom motivo para atirar. Meursault assentiu, mas advertiu que se o tipo não puxasse a navalha não seria correto atirar.
O caso é que essa resposta parece ter deixado o Sintès nervoso... Ele pretendia dar cabo do outro que, junto com o comparsa que se mantinha pacientemente tocando a flauta, o observava com atenção.
Os movimentos do Sintès não deixaram dúvidas... Ele estava prestes a atirar e no momento decisivo Meursault disse-lhe “não”, pediu a arma e o aconselhou a enfrentar o adversário “homem a homem”. Se o comparsa interferisse ou puxasse a navalha, então ele atiraria.
Sintès entregou sua arma ao amigo... Ela brilhou ao ser atingida pela luz do sol... Os dois mantiveram-se imóveis e tudo à sua volta eram mar, areia, a estupenda claridade, e os sons da água e da flauta.
(...)
A arma estava com Meursault que pensou mesmo que atirar ou não dava no mesmo... Mas foi de repente que os árabes iniciaram uma movimentação de recuo até “desaparecerem por detrás do rochedo”.
Sintès e o companheiro resolveram voltar para a casa do Masson... Depois que tomaram o ônibus, ele até se dispôs a falar. Pelo visto estava bem melhor. Ao chegarem, Meursault permaneceu ao pé da escada enquanto o outro subia. O que o maçava era o esforço que teria de fazer para a subida e ainda o ter de falar às mulheres.
Ele acabou entendendo que ficar parado ali sob a ardente luz do sol também lhe era aborrecido. Permanecer ou retirar-se eram-lhe indiferentes. Depois de algum tempo voltou a caminhar na direção da praia.
(...)
A caminhada solitária teve início... Nada de novo, o brilho avermelhado era o mesmo, as ondas quebravam uma após outra arrefecendo o intenso calor da areia...
Meursault sentiu o inchaço da testa sob o sol devastador. Não pensou muito ao escolher o caminho que levava aos rochedos.
Leia: “O Estrangeiro”. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto

domingo, 30 de maio de 2021

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – ainda sobre “Teoria dos sentimentos morais”, de Adam Smith, e a crítica dos que insistem que a “propensão interior à apatia ou ao mal” exige uma ação determinante por parte da religião; “distância e proximidade, sentimentos positivos e os negativos, tudo tem de entrar na equação”; sentimentos adversos nutridos em vez de preteridos por campanhas humanitárias; Matthew Gregory Lewis e o advento do romance gótico e a narrativa explícita de posturas masoquistas

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/05/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_27.html antes de ler esta postagem:

Voltando ao questionamento de Adam Smith sobre “o nosso desejo de que os demais não se prejudiquem”, ainda que para isso tenhamos de renunciar aos interesses particulares, o filósofo destacava que isso se deve a alguma “força mais forte”, a própria consciência (“a razão, o princípio, a consciência, o habitante do peito, o homem interior, o grande juiz e árbitro de nossa conduta”).
A lista nos faz pensar a respeito da empatia e as motivações que nos levam a agir a partir de um senso de solidariedade e “camaradagem”. Mas a “heterogeneidade” nela contida pode ser indicativa de que o próprio autor tivesse dificuldade para acertar uma definição mais categórica...
A autora sugere que Adam Smith talvez imaginasse que os “apelos emocionais ao sentimento de camaradagem pudessem tornar a empatia mais eficaz”. De acordo com Lynn Hunt, é mais ou menos isso o que muitos ativistas dos direitos humanos de nosso tempo fazem. Tanto os críticos do século XVIII, a época de Smith, quanto os atuais ressaltariam que, para a empatia proporcionar alterações positivas nas relações entre as pessoas e entre os grupos sociais, a religião tem importante papel, já que pode incutir “o senso de dever religioso” nos fiéis.
Os críticos alegam que a “propensão interior à apatia ou ao mal” é muito grande e que os indivíduos não conseguem anulá-la por si mesmos. O livro destaca a frase de “um antigo presidente da Ordem dos advogados dos Estados Unidos” que corrobora o anteriormente exposto, dando a entender que, isoladamente, “a ideia dos atributos humanos comuns não é suficiente”. Segundo ele: “quando os seres humanos não são vistos como semelhantes a Deus, os seus direitos básicos podem muito bem perder a sua ‘raison d’etre’ metafísica”.
(...)
Ainda problematizando a reflexão de Adam Smith no fragmento de “teoria dos sentimentos morais”, o texto nos leva a pensar a respeito da tese por ele levantada... A empatia do “homem humanitário” em relação aos que sofrem em localidades distantes é inspirada e “está na mesma categoria dos sentimentos por aqueles que lhe são próximos”.
Uma primeira questão que podemos levantar a partir do raciocínio é em relação a qual motivação nos leva “a agir com base em nossos sentimentos pelos que estão distantes”. A outra que temos de considerar (dada a crueldade cada vez mais frequente de determinados grupos contra outros que, por motivos diversos, lhe são próximos), pretende entender “o que faz o sentimento de ‘camaradagem’ entrar num tal colapso que pode levar a torturar, aleijar ou até matar os que nos são mais próximos”.
(...)
“Distância e proximidade, sentimentos positivos e os negativos, tudo tem de entrar na equação”.
Desde a segunda metade do século XVIII, quando os movimentos sociais passaram a contar com uma noção filosoficamente mais embasada dos direitos humanos, “as tensões se tornaram mais mortíferas”.
Para termos uma ideia, o texto esclarece que ao tempo das “ações contra o escravismo, a tortura judicial e os castigos cruéis”, os ativistas propagavam narrativas aterradoras que abalavam emocionalmente. Evidentemente faziam isso com a intenção de “provocar a repulsa” aos tratamentos degradantes. Mas muitas vezes os discursos, leituras e até a apresentação de “gravuras explícitas do sofrimento” acabaram despertando sensações adversas àquelas originalmente pretendidas... E o mesmo ocorreu com os romances que mereceram destaque no início das postagens sobre “A Invenção dos Direitos Humanos”.
(...)
Como sabemos, os romances despertavam “atenção intensa para os sofrimentos de moças comuns”, todavia o enredo também podia suscitar interpretações que agradavam aos masoquistas.
Ao final do século foram produzidos textos que alimentavam a fantasia que atendia aos anseios deste público.
O livro cita “The Mank”, de 1796, escrito por Matthew Gregory Lewis, e dá conta de que este romance gótico se esmera pelas “cenas de incesto, estupro, tortura e assassinato”. A narrativa parece apelar para o sensacionalismo e cumpre essa função “em detrimento do estudo dos sentimentos interiores ou resultados morais”.
Especialista no gênero foi o marquês de Sade, mas sobre ele trataremos na próxima postagem.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“O Estrangeiro”, de Albert Camus – passeio dos três pela praia e inesperado encontro com os árabes desafetos; uma luta resulta em ferimentos no braço e na boca de Sintès; retorno à casa, Masson conduz o ferido ao médico e Meursault se aborrece ao narrar o episódio às mulheres; o rapaz decide acompanhar o amigo que quis uma nova caminhada pela praia

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/05/o-estrangeiro-de-albert-camus-chegada.html antes de ler esta postagem:

Meursault, Masson e Sintès saíram para uma caminhada enquanto as duas mulheres permaneceram na casa para cuidar da louça do almoço.
O sol castigava a atmosfera da praia e o brilho que provocava nas águas do mar cegava os que ousassem fitá-las. O calor era tão intenso que os banhistas haviam se retirado. Desde as casas de veraneio “ouvia-se o barulho de pratos e de talheres”.
O ar estava tão pesado que até para respirar sentia-se sufocamento... Masson e Sintès caminharam conversando sobre assuntos e tipos que Meursault não tinha a menor ideia. Pelo visto se conheciam há um bom tempo e até tinham vivido juntos em algum momento.
Os três seguiram até a beirada do mar e eventualmente tinham os sapatos de borracha atingidos pelas ondas. O rapaz não se dedicava a qualquer pensamento porque, além de não conhecer os assuntos sobre os quais os companheiros falavam, sentia-se adormecido também em decorrência do forte calor.
Foi de repente que, embora não estivesse plenamente, se voltou para Sintès que havia dito algo que lhe chamava a atenção. Deu para perceber que era algo sobre “dois árabes vestidos de azul” que caminhavam na direção contrária à deles.
Sintès sentenciou que um dos tipos era o que o vinha perseguindo... Masson não pôde entender como que podiam segui-lo até aquela paragem. Meursault pensou que os desafetos só podiam ter concluído por notarem que estavam com uma sacola de praia e que haviam tomado um ônibus. Mas não disse nada aos dois.
(...)
Conforme caminharam se aproximaram ainda mais dos árabes, que também não retrocederam. A certo ponto, Sintès disse que poderia haver pancadaria e, se isso ocorresse, ele mesmo se encarregaria do que o perseguia... Disse que Masson lutaria com o que o acompanhava e que Meursault ficaria na espera e avançaria sobre algum outro que aparecesse.
O rapaz concordou. Masson também, e já foi enfiando as mãos na algibeira. A areia estava bem quente e os três mantiveram a mesma passada na direção dos desafetos. Só quando chegaram a poucos passos é que os árabes pararam. Enquanto Masson e Meursault passaram a caminhar mais lentamente, Sintès avançou contra o seu adversário, que disse alguma coisa e partiu para cima na tentativa de acertar uma cabeçada no oponente... Sintès revidou com um soco e chamou o Masson, que logo saltou sobre o outro árabe.
Masson tinha físico avantajado e fez prevalecer sua força... Desferiu dois potentes socos que fizeram o tipo cair “de barriga para baixo” e com a cabeça imersa na água. Via-se que o árabe estava numa situação bem difícil, pois não estava conseguindo respirar...
Sintès desferia tantos golpes contra o seu adversário que este ficou ensanguentado. Contou vantagem, olhou para Meursault e disse que ele estava para conferir uma bela surra. O rapaz notou que o árabe havia puxado uma navalha, então avisou o amigo o mais rápido que pôde. Aconteceu que a agilidade e rapidez do outro provocaram ferimentos na boca e no braço do Sintès antes que ele pudesse imobilizá-lo.
Masson tentou intervir para socorrer o companheiro, mas o que ele havia golpeado levantou-se e colocou-se atrás do tipo que estava com a lâmina. Ao que tudo indica, os árabes tomaram a vantagem na luta porque os três amigos não ousaram qualquer movimento. Todavia seus oponentes puseram-se a recuar apesar de continuarem a lançar ameaças com a navalha e com frases agressivas.
Os dois fugiram assim que se viram mais protegidos pela distância... Sintès só tinha atenção para o braço que tinha sido perfurado e sangrava muito. O calor escaldante parecia imobilizá-los, mas Masson notou a gravidade do ferimento e sugeriu que fossem à casa de um médico que costumava passar “os domingos no pequeno planalto”.
Sintès parecia assustado... Quanto mais falava, mais sangrava pela boca, então quis se tratar o mais depressa possível. Meursault e Masson o ajudaram na caminhada de volta para a casa.
(...)
Ao chegarem, Sintès comentou que os ferimentos eram superficiais e que tinha condições de seguir à casa do médico. Masson o conduziu, enquanto Meursault permaneceu “para explicar às mulheres o que se tinha passado. Maria tornou-se pálida, enquanto a mulher do Masson pôs-se a chorar.
O rapaz avaliou que explicar-lhes era maçante demais, então calou-se, acendeu um cigarro e voltou sua atenção para o mar. Por volta de uma e meia Sintès e Masson retornaram do médico... O ferido trazia um curativo na boca e outro no braço, que estava como que imobilizado por umas ataduras. De acordo com o médico, os ferimentos não eram dos mais graves, mas o tipo tinha ares de mau humor e nem mesmo o alegre dono da casa conseguiu distraí-lo.
Depois de permanecer calado por algum tempo, Sintès anunciou que queria ir à praia para “tomar ar”. Tanto Masson quanto Meursault se dispuseram a acompanhá-lo, mas ele se irritou. Seu velho conhecido admitiu que não deviam contrariá-lo, mesmo assim o rapaz decidiu ir com ele.
Leia: “O Estrangeiro”. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto

sexta-feira, 28 de maio de 2021

“Rei do Congo – A mentira que virou folclore”, de José Ramos Tinhorão – sobre a queda do prestígio do Congo para os interesses portugueses na África; mudanças nas festividades de coroação de rei do Congo; criação de reis africanos angolanos simbólicos em Portugal; fragmentos de “A herança africana em Portugal” a respeito de grande baile com a participação da “rainha do Império do Congo”, a “Mãe Joana”; dos títulos nobiliárquicos concedidos por Dona Jacinta, inclusive a Camilo Castelo Branco, e de eventos sociais promovidos por ela


Ainda na primeira metade do século XIX, as festas públicas de coroação de rei e rainha do Congo, bem como as danças, desfiles e encenações que lembravam as origens africanas, tornaram-se mais escassas em Portugal. Em vez dos ambientes abertos, as cerimônias de coroação passaram a ocorrer em locais fechados, “num ambiente quase de clube social recreativo”.
Isso coincidiu com o declínio da importância do Congo para Portugal em suas investidas na África... As novas oportunidades de exploração em Angola levaram os portugueses a se dedicarem a traçar planos “políticos, econômicos e missionários” para a localidade.
O livro destaca fragmento satírico do “Folheto de Ambas Lisboa”, nº 7, do mês de setembro de 1730, no qual, em “linguagem africana, um rei Angola convida um ‘rei Mina’” para uma festividade que ocorreria no “adro da Igreja do Salvador”, na Alfama:

                   “Seoro compadra Re Mina Zambiampum taté: sabe vozo, que nossos fessa sà Domingo, e que vozo bade vir fazer os forgamenta”.

Sugere-se aí que também os angolanos levados para Lisboa se organizaram em comunidades e criaram “seus reis simbólicos particulares”.
(...)
O surgimento de “novos reinados de reis africanos” em Portugal não ofuscou totalmente a tradição dos cristãos congoleses da Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos...
Em “A herança africana em Portugal”, Isabel Castro Henriques descreve um “Baile do Congo” que ocorreu “na rua da Barroca, Lisboa” no ano de 1857. Sem citar fonte específica, a professora destaca que a “rainha do Império do Congo”, conhecida como “Mãe Joana” chegou ao evento acompanhada de suas damas numa formosa caleche. Então:

                   “ao entrar na sala cumprimentou os convidados, e dirigiu-se depois a um altar, convenientemente preparado onde fez oração, e em seguida tomou assento no trono e aí deu beija-mão aos seus fiéis súditos”.

Ainda segundo Isabel Castro Henriques:

                   “o baile esteve animadíssimo, segundo conta um curioso desses divertimentos, havia pretinhas vestidas com muita elegância, e algumas gentis e engraçadas; polcou-se e valsou-se e tudo acabou com um ‘cotillon batuque’”.

(...)
Em 1862, outra “rainha do Congo” em Portugal, “a preta Jacinta”, destacou-se por conceder títulos nobiliárquicos a “vários súditos” e tornou-se conhecida por atribuir o de “marquês” a Camilo Castelo Branco.
O próprio romancista registrou o fato em “Excelentíssimos senhores”, crônica de 1874 que consta do “volume IV da série ‘Noites de insônia’”. Sua redação ironizava as considerações “de um especialista em formas de tratamento a detentores de títulos nobiliárquicos”. Para este, a condes e viscondes “bastava ‘senhoria’”, apesar de entender que, particularmente, até esse tratamento já se configurava em exagerado.
O livro apresenta fragmento da referida crônica de Camilo Castelo Branco:

                   “Mas ele não sabia que eu, desde 1862, sou marquês, agraciado por sua majestade negra D. Jacinta, rainha do Congo, muito minha senhora e ama. Que Deus conserve”.

(...)
Também sobre a movimentação social promovida por D. Jacinta, a professora Isabel Castro Henriques destacou matéria do “Jornal do Comércio, de Lisboa, de 11 de outubro de 1867”, a respeito da convocação para a “missa na Igreja de Santa Joana” do dia 17 do mesmo mês (dia de Nossa Senhora do Rosário), seguida por (a convocação):

                   “três bailes do estilo, que hão de ser dados na casa sita na rua de São Marçal nº 78 nos dias 12, 13 e 14 do corrente mês – Paço na rua de Pedro Dias nº 17, em 11 de outubro de 1867 – Rainha D. Jacinta I”.

Leia: Rei do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quinta-feira, 27 de maio de 2021

“O Estrangeiro”, de Albert Camus – chegada à praia e à singela casa de Masson, amigo do Sintès; sobre o Masson e sua esposa, bons anfitriões; estranho tique do tipo ao falar; um primeiro banho de mar, brincadeiras de namorados; almoço simples e satisfatório; conversa, cigarros e muito vinho; as mulheres ficam para lavar a louça e os três saem para um passeio

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/05/o-estrangeiro-de-albert-camus-o-velho.html antes de ler esta postagem:

Meursault, Maria e Sintès caminharam sobre o “planalto” que levava à praia e à casa do amigo que os receberia... Antes que chegassem à borda da elevação puderam ver o imenso mar. Um motor ao longe anunciava “uma pequena canoa que avançava imperceptivelmente no mar brilhante”.
Desde a encosta, viram banhistas que aproveitavam a praia.
(...)
Chegaram à modesta casa do amigo de Sintès. Era de madeira, encostada a uma grande rocha e se localizava numa das extremidades da praia... Traves que a sustentavam eram “mergulhadas na água”.
O tipo chamava-se Masson, era “alto, entroncado, com ombros largos”. Sua mulher “era baixa, gorda e simpática” e tinha “sotaque parisiense. O casal foi bastante receptivo, o homem sugeriu que todos se colocassem à vontade e que logo almoçariam peixes fritos, pescados por ele mesmo.
Meursault foi elogiando a casa e o Masson adiantou que ele e a mulher passavam os sábados, domingos e feriados nela. Ao notar que Maria e a outra se riam por qualquer coisa, Meursault chegou a pensar que poderia mesmo se casar com a namorada.
(...)
Masson convidou-os para a praia... Nem o Sintès nem a mulher do Masson quiseram ir. Meursault e Maria toparam...
Enquanto Meursault e Masson decidiram conversar um pouco, a moça mergulhou logo que chegaram à água. O anfitrião era dos que falam devagar e, no seu caso, completava quase todas as frases com um “e direi mesmo mais”. Meursault achou graça desse hábito até porque em determinadas sentenças aquele complemento não acrescentava qualquer sentido. Num determinado momento, falaram sobre a Maria e o tipo disse “estupenda e, direi mesmo mais, encantadora”... Aos poucos o rapaz se distraiu e deixou de notar o tique do outro.
O sol estava generoso e a areia começava a queimar os pés... Meursault resolveu chamar o Masson para a água. O rapaz mergulhou imediatamente enquanto o colega caminhou até perder as pisadas para, então, mergulhar também. Via-se que nadava mal e de bruços, por isso Meursault o deixou para avançar até onde estava a Maria.
O casal se entendia na água e ao longe viram que o Masson aproveitou bem pouco do mar, pois logo se retirou para deitar-se na areia... Repararam que o tipo parecia ainda maior à distância.
(...)
Meursault e Maria nadaram juntos... Ele segurou a cintura dela, que avançava com as braçadas. Sua tarefa na brincadeira era ir batendo os pés mais atrás. Assim permaneceu até que se cansou.
Ele deixou a parceira e voltou à praia, onde deitou-se “de barriga para baixo” junto ao Masson. Os dois concordaram que a atmosfera e o descanso ao sol eram muito bons. Maria chegou depois e foi se encostando no namorado que adormeceu embalado pelo calor de seu corpo.
Acordou quando ela começou a sacudi-lo dizendo que o Masson já se retirara e que já estava na hora do almoço... A fome o fez se levantar rapidamente, mas Maria sugeriu voltarem para a água, onde podiam se beijar sossegadamente. Ele concordou e foi isso que fizeram.
(...)
De volta à casa, perceberam que a mesa já estava posta... Meursault foi dizendo que “estava cheio de fome” e isso agradou ao Masson, que disse à mulher que o rapaz o agradava.
A refeição mereceu a aprovação dos visitantes... Meursault gostou do pão e comeu todo o peixe que lhe ofereceram... Também havia carne, batatas e vinho, tudo muito bom. Masson era bom bebedor e a todo momento enchia o copo do amigo de Sintès.
Conversaram e fumaram. Durante a conversa, os três homens cogitaram “passar o mês de agosto na praia” e podiam dividir as despesas. Tanto beberam que Meursault até sentiu a cabeça pesada...
Ficaram admirados ao saber que ainda estava bem cedo. Maria anunciou que eram onze e meia. Masson disse que não tinha nada de errado em almoçar cedo porque a fome é que define o momento certo de se alimentar. A moça riu-se a valer da explicação.
Meursault achou que a reação dela tinha a ver com o excesso de vinho. Mas não pensou muito mais sobre isso porque o Masson convidou-o a um passeio na praia. Explicou que a esposa costumava “dormir a sesta” e ele não era afeito aos cochilos depois do almoço porque precisava andar, algo que é bom para a saúde. O que podia fazer se a mulher estava no “seu direito”?
Maria resolveu ficar e disse que ajudaria “a dona da casa a lavar a louça”. Então tinham de “pôr os homens na rua”. Foi isso o que a esposa do Masson disse. 
Leia: “O Estrangeiro”. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – o nosso tempo tem mostrado que “é mais fácil endossar os direitos do que os impor”; a empatia que possibilitou a abertura para as discussões em torno das reformas judiciais e dos costumes parece ter esmorecido; sociedades distantes mostram-se dedicadas a socorrer outras em situação de calamidade, ao mesmo tempo algumas que são próximas estão dispostas a praticar intolerâncias e atrocidades; os que cometem violentações são pessoas comuns que, de algum modo e a partir de certas circunstâncias, inverteram seus valores drasticamente; início das reflexões sobre a ambivalência provocada pela disseminação da empatia; considerações de “Teoria dos sentimentos morais”, de Adam Smith e a questão da consciência que leva o ser humano a optar por escolhas em benefício do próximo

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/05/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_24.html antes de ler esta postagem:

Estamos na parte final das reflexões propostas por “A Invenção dos Direitos Humanos”. Como vimos, as leituras nos proporcionaram o (longo) percurso pela História da luta pelos direitos, seus entraves e avanços e retrocessos...
No início dos estudos, vimos o quanto alguns clássicos da literatura contribuíram para o desenvolvimento da empatia e aos poucos a questão dos direitos sensibilizou diversos pensadores e grupos que passaram a exigir reformas judiciais e mudanças de costumes.
(...)
A exposição das necessidades de se explicitar os direitos nas Declarações não foi suficiente para evitar que as sociedades recaíssem em lamentáveis práticas que atentam contra a razoabilidade das garantias mínimas de dignidade para todos... Os muitos ataques aos direitos em nosso tempo nos levam a concluir que a causa dos direitos humanos permanece atual e, como o livro reforça, “é mais fácil endossar os direitos do que os impor”.
O caso é que tortura, limpeza étnica, atrocidades cometidas durante conflitos bélicos (o estupro, por exemplo), e ainda “opressão continuada das mulheres, o tráfico sexual de crianças e mulheres, mais a prática do escravismo” têm sido praticados e em muitos casos como resultado de um retrocesso, uma espécie de regressão das sociedades ao obscuro tempo em que sustentava-se que o suplício do corpo era castigo exemplar que pagava a afronta (o delito) ao Estado representado pela liderança política.
As questões que podemos levantar dizem respeito à eficácia dos direitos em relação à árdua tarefa... Mostraram-se inadequados? O que ocorreu com a capacidade de empatia que tornou possível o estabelecimento dos direitos ao longo do tempo?
(...)
O desenvolvimento de habilidades que permitiram a leitura, escrita e produção de gêneros diversos (“romances, jornais, rádio, filmes, televisão e internet”) possibilitou que populações inteiras desenvolvessem empatia por comunidades distantes em condições precárias (o livro cita a fome em Bangladesh, relatos sobre o assassinato de adultos e crianças na Bósnia) e se mobilizassem na arrecadação de dinheiro e recursos (alguns se voluntariaram para atuar no local mesmo das tragédias) para socorrê-las...
Por outro lado, muitas vezes por questões relacionadas à intolerância de fundo étnico, comunidades vizinhas se debatem ferozmente... As violências cometidas por causa de fundamentalismos religiosos são praticadas desde muitos anos atrás.
Vários estudos demonstram que mesmo os que não sustentam fundamentalismos políticos ou religiosos podem ser levados, de acordo com as circunstâncias, “a empreender o que sabem ser assassinato em massa em combates corpo a corpo”. Neste ponto do texto, a autora afiança que os diversos torturadores (da Argélia, Argentina ou Abu Ghraib), no início, eram apenas “soldados comuns”. E para a nossa reflexão, lembra que tanto os torturadores quanto os assassinos “são como nós e infligem dor a pessoas que estão bem diante deles”.
(...)
Então é isso. Temos modernos mecanismos de comunicação que, de um modo geral, foram utilizados para difundir o sentimento de empatia... No entanto as atrocidades persistem e vemos que muitos a anulam para praticar o mal aos demais.
(...)
O livro dá destaque para a questão da “ambivalência” que a própria disseminação da empatia pode provocar. Isso ocorre desde o século XVIII...
Em “Teoria dos sentimentos morais”, Adam Smith nos dá um exemplo acerca das reações do “homem europeu humanitário na Europa” diante da notícia de um suposto terremoto ocorrido na distante China e que vitimou “centena de milhões de pessoas”.
De acordo com Adam Smith, o “homem humanitário” em sua distante realidade (de europeu humanitário como os demais europeus à sua volta) diria “todas as coisas adequadas” a respeito da tragédia na China, logo retomaria seus afazeres e pouco ou nada mais do evento o incomodaria... Mas, ainda de acordo com o filósofo e economista britânico, se o “homem humanitário europeu” ficasse sabendo que no dia seguinte “perderia o dedo mínimo”, passaria por uma agitação que se prolongaria por toda a noite. A questão que Smith levanta é: “sacrificaria a vida dos milhões de chineses em troca da integridade de seu dedo mínimo? A resposta é negativa. E na sequência, somos levados a pensar: por que o indivíduo se mostra capaz de agir e optar por escolhas que supostamente vão contra o seu próprio interesse?
Adam Smith nos responde que há uma força maior e mais forte do que a do interesse próprio... A consciência, sobre a qual afirma:

                   “É a razão, o princípio, a consciência, o habitante do peito, o homem interior, o grande juiz e árbitro da nossa conduta”.

Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas