quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

“Mayombe”, de Pepetela – Sem Medo fala de algumas situações do passado que podem explicar a sua solidão; do não interesse pelo casamento; conclusões a respeito das agressões tribalistas na Base; Ekuikui, Muatiânvua e Teoria na vigília e torcendo pelo entendimento dos líderes

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Sem Medo acendeu outro cigarro... No movimento de aproximação do fogo, o Comissário Político pôde notar o brilho de seus olhos, então disse que podia confiar nele e que, se quisesse se abrir com ele a respeito de qualquer situação que lhe sufocasse, podia se sentir à vontade. De sua parte, jamais sairia a divulgar o que ouviria de sua boca.
O comandante admitiu que em outra oportunidade poderia mesmo falar-lhe a respeito de certas situações e até segredos, mas que não se pensasse que era algo especial. Todos possuem seus “pequenos dramas”... Ele sempre fora um solitário...
Então contou que quando era pequeno vivia a se esconder para inventar “aventuras extraordinárias” nas quais era sempre o herói. Certa feita ocorreu uma confusão entre os rapazes e ele terminou apanhando de um tipo mais velho. Desde então passou a inventar estórias que sempre terminavam em duelos de morte. Nesses, o seu oponente era sempre o tipo que lhe havia surrado no passado. Não demorou a entender que não lhe bastava inventar aqueles enredos, mas que era preciso vivenciar experiências conflitivas. A Revolução deu-lhe a oportunidade que esperava... Talvez, não houvesse Revolução, terminaria como escritor. Mas não é que os escritores são também uns solitários?
Pelo visto essa solidão pertencia ao seu temperamento... Mas o Comissário percebeu que aquele não era o “grande segredo” que pudesse explicar a solidão do camarada.
(...)
Mais à frente conheceremos um pouco mais do passado de Sem Medo.
No momento importa saber que o Comissário sugeriu que ele precisava se casar... A resposta foi um “trop tard”... Tarde demais para quem já está mais que habituado a não partilhar da própria companhia. Talvez viesse a encontrar uma mulher a quem inculcasse ordens... Mas ele mesmo não poderia se sujeitar a uma condição que nada tinha a ver com o seu modo de ser. De outro modo, escolher uma mulher a quem respeitasse em todas as opções, desejos e contrariedades e aceitar que ela divergisse e se decidisse em relação às diversas dificuldades do relacionamento, era algo que não tinha a menor possibilidade. Até porque, mulher excepcional como essa jamais conhecera.
Evidentemente poderia se relacionar com uma ou outra mulher que lhe despertasse o desejo, mas já que havia se feito independente, o melhor era que assim permanecesse...
(...)
Sem medo abriu-se para o camarada Comissário, mas ressaltou que já estavam há um bom tempo distantes do assunto que os havia reunido naquela noite... Além do mais, ainda não havia jantado. Neste ponto, o camarada disse que por sua culpa haviam se prolongado demais... Disse que era muito egoísmo de sua parte.
Sem Medo observou que mais uma vez o pegava a se desculpar, e tudo como se ele próprio não estivesse espontaneamente decidido a ficar.
Por fim o Comissário voltou a tratar das discussões Tribalistas na Base e perguntou sobre as divisões entre kimbundos e kikongos. Disse que os dois grupos queriam vê-los em litígio e liderando as facções. Sem medo lembrou que havia também os destribalizados e que esses eram pela unidade.
O Comissário respondeu que conhecia a situação e acrescentou que a tensão só aumentara desde a missão... Os kimbundos não concordavam com a punição ao Ingratidão do Tuga e viviam reclamando do André. Em relação a essa última queixa, Sem Medo sentenciou que estavam com a razão. Neste ponto, o camarada acrescentou que os kimbundos incluíam o próprio comandante em seus protestos, pois os dois eram os “kikongos mais em vista”.
(...)
Então, em síntese, os kimbundos desejavam que o Comissário os liderasse numa luta contra Sem Medo. Já os kikongos não criticavam o André e ao mesmo tempo esperavam que o Sem Medo expulsasse seus adversários do Comando.
O próprio Sem Medo admitiu que não tinha como enfrentar o André, e nisso estaria o “azar dos kikongos”.
O Comissário emendou que o “azar” do outro pessoal era que entre ele e o Chefe de Operações não havia sintonia... Sequer chegou a terminar o raciocínio porque os dois se puseram a rir.
(...)
Ao longe, Muatiânvua, Ekuikui e o professor ouviram os risos e se cumprimentaram aliviados.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

“Mayombe”, de Pepetela – Ekuikui e Muatiânvua de vigília e torcendo pelo entendimento dos líderes; a crença de Sem Medo na luta e o reconhecimento de que talvez não fosse possível obter tudo o que desejavam; considerações sinceras sobre as aspirações, ou a falta delas, para quando viesse a independência; da solidão dos que lutam

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A noite avançara...
Na casa do Comando, os guerrilheiros ouviam o rádio e repercutiam as últimas informações aos risos abafados.
Muiatiânvua e Ekuikui permaneciam ainda à distância e observando o vulto dos dois homens acomodados no tronco à entrada da Base. Eventualmente conseguiam captar uma ou outra palavra e assim calculavam o quanto o “clima de confiança” estava mais próximo ou distante.


(...)

Sem Medo respondeu que todos pensam de alguma maneira na morte, que é algo relacionado à metafísica. Mas ele queria que o camarada entendesse que suas palavras eram as que julgava as mais adequadas para transmitir o que pensava. De sua parte, esperava que o Comissário compreendesse algo que o jovem Mundo Novo não conseguia admitir... De sua parte, não sairia do movimento ainda que soubesse que a luta não conseguisse estabelecer o “paraíso prometido” em 100%.
O Comissário Político revelou que havia conversado com Mundo Novo e lhe dissera que tinha certeza de que o comandante não recuaria por se tratar de homem que alimentava razões sinceras na luta.
Sem medo quis que o Comissário citasse as referidas “razões sinceras”... O outro não conseguiu enumerá-las, mas sabia que elas se relacionavam a “razões humanas”, “crença na necessidade da justiça”, “ódio à opressão”... Todas elas pertencentes também a todos do movimento. A única diferença era em relação ao que esperavam do futuro. Disse isso e quis saber como Sem Medo via a si mesmo na Angola independente.
A resposta provocou certo abalo no Comissário, pois o comandante disse que simplesmente não se via na Angola do futuro... A pergunta seguinte foi a respeito de onde mais ele gostaria de trabalhar, se possuía outras ambições... Sem Medo disse que não se via como um quadro político da mesma forma que via aos demais (inclusive o Comissário), então emendou que talvez se engajasse em nova luta em um outro país... Podia ser mesmo que seu futuro lhe reservasse a cadeia! Apesar de não se ver na Angola independente, não se sentia impedido de lutar por ela.
(...)
O Comissário Político passou a falar sobre a ocasião em que viu Sem Medo pela segunda vez. Ainda não se conheciam, pois era ainda novo no movimento e recém-chegado de Kinshasa, havia chegado ao bar onde o Comandante estava só e tomando cerveja. O ambiente era dos mais barulhentos, mas nada, nem o assédio das garotas, o tiravam da introspecção. Todos o reconheciam como chefe e o próprio Comissário já o tinha visto no bureau, oportunidade em que pudera constatar que se tratava de homem solitário e de forte personalidade.
A solidão era uma das marcas do Sem Medo, e o Comissário manifestou que isso intimidava as pessoas e ao mesmo tempo as levava a serem sinceras com ele.
Sem Medo respondeu que todos os camaradas tinham algo de solidão encravado no ser. Todos eram os “solitários do Mayombe”... Afinal, por que gostavam de viver ali? No fundo sentiam-se bem com a solidão proporcionada pela “multidão de árvores”. Era algo como o que ele mesmo experimentara quando passou algum tempo na Europa e o que mais gostava era de perambular em meio à multidão nos horários em que o trabalho se encerrava. Andava anônimo e, embora estivesse cercado por toda gente, sentia-se singular. Talvez por isso não gostasse das cidades menores que não podiam proporcionar situações como aquela.

(...)

Muatiânvua disse a Ekuikui que tudo parecia ir bem entre Sem Medo e o Comissário Político. Definitivamente não discutiam... Ekuikui sugeriu encerrarem a vigília, mas o companheiro respondeu que era bom ficarem para “tomar conta”, pois a noite estava bem escura.
Teoria apareceu e perguntou o que os dois estavam fazendo. Muatiânvua explicou que “estavam fazendo guarda” e apontou na direção dos dois chefes.
O professor observou que enquanto boa parte do grupamento esperava que eles se desentendessem, os camaradas permaneciam ali torcendo exatamente pelo contrário. Disse isso e se sentou também.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

“Mayombe”, de Pepetela – não há partido proletário e tampouco governo proletário; mentiras são lançadas ao povo para que este não se desmobilize ou se torne descrente na revolução

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O Comissário não pôde discordar das palavras de Sem Medo a respeito da diferenciada condição que os militantes levados a postos de direção passavam a ter... Não havia dúvida que muitos deixavam a existência humilde (de operário ou camponês) logo que eram admitidos no movimento e começavam a se dar bem nos estudos teóricos.
Por outro lado, argumentou que admitir a condição de intelectual não significava muito... O que isso teria demais?
(...)
Sem Medo explicou que não tinha nada contra os intelectuais, apesar de saber que muitos entre eles se diziam “anti-intelectuais” e viviam negando a própria condição. Também ele não se sentia à vontade para aprová-los ou desaprová-los. A única certeza que tinha era a de que não era correto dizer que um partido dominado por intelectuais era proletário. Propagar uma mentira dessas prejudicaria o movimento no futuro... Ele mesmo havia feito tal prognóstico em sua fala anterior!
Mas então, o que deveria ser dito?
Deveria se dizer que o Partido é liderado por “intelectuais revolucionários que procuram fazer uma política a favor do proletariado”. A mentira não tinha a menor condição de prosseguir porque o povo sempre percebe que não controla nenhum partido e tampouco controla o governo. Disso resulta sempre a desconfiança e a desmobilização.
Mais uma vez o Comissário Político apresentou um senão... Disse que o comandante estava sendo parcial, pois, em sua opinião, desde que a política desenvolvida pelo governo revolucionário fosse justa e melhorasse a vida do povo, haveria progresso em relação à condição anterior à Revolução.
Sem Medo respondeu que o camarada estava compreendendo bem o que ele queria dizer. De fato, o que podiam fazer no momento era lutar pela independência do país. Com isso esperavam melhorar a condição humana... Teriam de criar as estruturas para implantar o Socialismo, e isso significaria nacionalizar minas, fazer a reforma agrária, nacionalizar bancos, comércio exterior... Se tudo corresse com um mínimo de erros, a condição de vida do povo melhoraria.
Mas isso, por si só, é o Socialismo? É Estado proletário?
(...)
Sem Medo destacou que precisavam colocar fim aos rótulos.
Várias denominações relacionadas ao movimento revolucionário deviam ser desmistificadas. E por quê?
Fatalmente se desenvolveria uma ditadura e a democracia seria impossibilitada... Poder-se-ia discutir se de fato a ditadura é necessária e inevitável. De sua parte, não conseguia vislumbrar outra realidade. Então era o caso de buscarem coerência no discurso... Não conseguiriam atingir em 100% o que almejavam, então, por que continuar a mentir para o povo?
O Comissário Político fez a sua reflexão e disparou de volta outra pergunta... Como é que se diria ao povo que dos objetivos buscados conseguiram atingir apenas parte deles, uns 50%? Isso provocaria desmobilização e descrença!
(...)
Era exatamente a este ponto que o comandante queria chegar. Sem disfarçar o ponto de vista que vinha sustentando, disse que o camarada Comissário e os demais do grupo do qual participava pensavam mesmo que não podiam dizer a verdade para o povo porque temiam o risco de desmobilização... Viviam dizendo que era preciso esperar e não poupavam os exageros na divulgação de resultados só para manter viva a chama da esperança em tempos melhores.
Sem Medo disse isso e sustentou que, se estivesse nas últimas, gostaria que lhe dissessem a verdade. Os que mentem num caso desses tentam se justificar dizendo que querem evitar que “o moribundo não se desanime” e termine apelando para o suicídio.
A metáfora bem construída sugeria que não faltariam os que prometessem a cura ou os que (como os religiosos) anunciassem “a salvação no outro mundo”. Então era mais ou menos a mesma coisa: o “paraíso” que os revolucionários anunciavam ao povo estava no futuro... E este é “tão abstrato quanto o Paraíso cristão”.
O camarada Comissário respondeu que as palavras de Sem Medo revelavam os “problemas metafísicos” que não o deixavam em paz. Este nada disse, apenas acariciou o rifle que estava acomodado junto ao seu joelho.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“Mayombe”, de Pepetela – ainda as reflexões de Sem Medo sobre o provável panorama de pós-triunfo revolucionário; riscos de cristalização de partido único, burocratização e demonização dos livre-pensadores; de populismo e demagogia

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Sem Medo estava explicando ao Comissário Político a sua visão pessimista a respeito da realidade que surgiria após a Revolução... Deixava claro que se as principais lideranças não se abrissem para as críticas, e se continuassem a insistir no dogmatismo de suas cartilhas e manuais, o futuro seria dos mais tenebrosos e com a infeliz possibilidade de contribuírem para o advento de uma ditadura catastrófica.
Ele prosseguiu dizendo que fatalmente o Partido, soberano na realidade que surgiria, tenderia a se “cristalizar no poder”... E isso se tornaria ainda mais concreto quanto menos se proporcionasse a comunicação e o confronto de opiniões e ideias... Simplesmente não mais haveria contestação.
Então, todo aquele que viesse a se atrever a contestar seria automaticamente classificado como antirrevolucionário. O forte aparelho burocrático cuidará de apagá-lo da História! Os devidamente afinados prosseguirão com seu trabalho cada vez mais automático e “desapaixonante”.
Isso será a negação do “organismo vivo”, ou seja, daquele que se nega para “renascer de forma diferente” e (assim) gerar o novo.
(...)
O Comissário Político continuou a ouvir com atenção... Então resolveu dizer que o futuro dependeria muito dos atores... Dependeria dos homens que estivessem à frente do Partido... Sendo revolucionários, saberiam reconhecer as necessidades da população, corrigiriam erros de percurso e mudariam as estruturas que julgassem necessárias.
Sem Medo lembrou que os que viriam a ocupar os principais cargos seriam os da “velha guarda”... teriam certa idade e não estariam dispostos a perder cargos e privilégios. A menos que fossem tipos excepcionais!
O Comissário sugeriu que existem mesmo homens excepcionais... Mas Sem Medo emendou que raramente eles aparecem. Além disso, ressaltou que seria bom lembrar que um homem excepcional isoladamente pode bem pouco... Por algum tempo, ele e suas ideias podem prevalecer, mas aí corre-se o risco do culto à personalidade, a deificação... Algo bem típico dos povos subdesenvolvidos e marcados por intensa religiosidade.
Ao se pensar em um país como Angola, ainda teríamos de levar em consideração que apenas uns poucos (a “vanguarda”) se dispunham à luta... Não seria absurdo pensar que num caso desses a responsabilidade de liderança pudesse recair sobre apenas um homem.
(...)
Sem Medo queria dizer que quanto menor o grupo, menores são as possibilidades (e até viabilidade) de contestação. Dizer que o proletariado chegaria ao poder é demagogia pura! Os que tomam o poder são os que pertencem ao grupo de ação política que propaga que representa o proletariado. Isso significa que, dizerem que “o proletariado tomará o poder”, com o triunfo da Revolução, será sempre uma grande mentira. O Comissário e todos os demais quadros sabiam bem que para se tornar membro da restrita equipe de governo, a pessoa deve ter formação política e cultural... Qual operário obterá essas credenciais? Apenas os bem pouco aceitos pela organização e que se dedicarem por muito tempo aos estudos.
(...)
Sem Medo ainda destacou que os operários que passassem a participar dos principais quadros do movimento se tornariam intelectuais e, assim sendo, na verdade deixariam de pertencer à antiga classe.
Lembrou também que entre os militantes havia certas ressalvas ao reconhecerem o intelectual como quadro ativo... Deixou claro que este não era o seu caso, pois tinha os intelectuais em boa conta.
Seria preciso refletir também a este respeito! Tomando como exemplo a condição mesma do Comissário Político, garantiu que ninguém podia chamá-lo de camponês apenas porque vinha de família camponesa. Já fazia muito tempo que a sua atividade era o trabalho político, havia estudado muito e era leitor contumaz. Então não havia como não dizer que não se tratasse de um intelectual! A menos que se quisesse fazer populismo e demagogia!
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

“Mayombe”, de Pepetela – reflexões de Sem Medo sobre o provável panorama de pós-triunfo revolucionário; ansiedades das massas x realidade prática; contradições e riscos de se contribuir para o avanço totalitarista

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A crítica de Sem Medo era contra o dogmatismo, a “fé cega” com a qual os militantes se engajavam no movimento revolucionário...
Como os que integravam os altos comandos o entenderiam? Como um tipo como o Comissário Político o entenderia? Apesar dessas indagações, ele fez questão de apontar ao camarada que se encontrava ao seu lado que, se não conseguissem romper com a ideia de que basta seguir teorias e cartilhas para levar a Revolução ao triunfo, jamais vivenciariam um socialismo real.
O Comissário Político se defendeu dizendo que ninguém precisaria se sentir obrigado a se tornar dogmático para se integrar à realidade que viria após o triunfo do movimento... Sem Medo respondeu que seria preciso “abandonar a capela”.
(...)
Na sequência, o comandante argumentou que estavam engajados num processo de tomada de poder. Ressaltou que seria interessante refletir a respeito do que ocorreria depois... Certamente diriam ao povo que construiriam o Socialismo... Mas as mudanças demorariam... Elas levariam uns quarenta ou cinquenta anos para começarem a despontar, mas bem antes disso o povo daria mostras de insatisfações e reclamaria que vários problemas permaneciam sem a prometida resolução.
Essa é uma situação previsível... Até porque há muitas mazelas na sociedade que demandam muito tempo para serem sanadas. E há que se considerar que quanto mais atrasado é o país, maiores são os desafios! Cinco anos seriam tempo insuficiente para um governo revolucionário iniciar todas as reformas necessárias, mas para o povo este intervalo seria algo difícil de se tolerar.
Dessa forma, não é preciso ser analista político/social para prever as inúmeras pressões populares. A questão que o Comissário Político deveria refletir era a respeito das decisões que os dirigentes tomariam. O que fariam ao perceberem que os contrarrevolucionários exerceriam influência sobre os insatisfeitos?
De fato, reações contra o novo regime deviam ser consideradas porque os “elementos de oposição” resultam de novas contradições... Também está claro que o imperialismo não aceitaria a mudança e logo articularia forças armadas e as de propaganda.
Logicamente o governo revolucionário trataria de organizar os mecanismos de repressão à contrarrevolução. Então o partido equiparia sua estrutura de vigilância e isso levaria ao expurgo todos os não disciplinados. A polícia política entraria em ação e ganharia preeminência.
Um problema que se originaria daí é o de não se reconhecer as críticas construtivas ainda que elas surjam dos quadros mais bem-intencionados... Sempre haverá os que as rejeitam e que, por serem ambiciosos, as incriminará, levando seus autores a processos nocivos.
(...)
Por tudo isso, Sem Medo não alimentava grandes esperanças. Achava mesmo que a crítica seria completamente anulada pelos detentores do poder cada vez mais centralizado. Como pensar em democracia num cenário como este? O Comissário Político respondeu que tudo aquilo dependeria muito dos homens que viriam a conduzir a Revolução...
Sem Medo sorriu desanimadamente. Disse que as próprias estruturas que haveriam de ser criadas pelos dirigentes gerariam a repressão e as prisões. As mesmas estruturas se tornariam empecilhos para os que chegassem aos postos de direção, pois elas fariam o regime se fechar sobre si mesmo... O ambiente aí será dos mais hostis... Não demoraria e a desconfiança invadiria as mentes de todos.
(...)
O que talvez pudesse ser feito para se evitar essa dramática condição seria o partido garantir a “confrontação constante dos homens na prática”.
Mas evidentemente isso seria algo completamente excepcional. O próprio Comissário Político, por tudo o que já haviam falado, poderia testemunhar o quanto essa alternativa estava distante no horizonte.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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