Sem Medo acendeu outro cigarro... No movimento de aproximação do fogo, o Comissário Político pôde notar o brilho de seus olhos, então disse que podia confiar nele e que, se quisesse se abrir com ele a respeito de qualquer situação que lhe sufocasse, podia se sentir à vontade. De sua parte, jamais sairia a divulgar o que ouviria de sua boca.
O comandante admitiu que em outra oportunidade poderia mesmo falar-lhe a respeito de certas situações e até segredos, mas que não se pensasse que era algo especial. Todos possuem seus “pequenos dramas”... Ele sempre fora um solitário...
Então contou que quando era pequeno vivia a se esconder para inventar “aventuras extraordinárias” nas quais era sempre o herói. Certa feita ocorreu uma confusão entre os rapazes e ele terminou apanhando de um tipo mais velho. Desde então passou a inventar estórias que sempre terminavam em duelos de morte. Nesses, o seu oponente era sempre o tipo que lhe havia surrado no passado. Não demorou a entender que não lhe bastava inventar aqueles enredos, mas que era preciso vivenciar experiências conflitivas. A Revolução deu-lhe a oportunidade que esperava... Talvez, não houvesse Revolução, terminaria como escritor. Mas não é que os escritores são também uns solitários?
Pelo visto essa solidão pertencia ao seu temperamento... Mas o Comissário percebeu que aquele não era o “grande segredo” que pudesse explicar a solidão do camarada.
(...)
Mais
à frente conheceremos um pouco mais do passado de Sem Medo.
No momento importa saber que o Comissário sugeriu que
ele precisava se casar... A resposta foi um “trop tard”... Tarde demais para
quem já está mais que habituado a não partilhar da própria companhia. Talvez
viesse a encontrar uma mulher a quem inculcasse ordens... Mas ele mesmo não
poderia se sujeitar a uma condição que nada tinha a ver com o seu modo de ser.
De outro modo, escolher uma mulher a quem respeitasse em todas as opções,
desejos e contrariedades e aceitar que ela divergisse e se decidisse em relação
às diversas dificuldades do relacionamento, era algo que não tinha a menor
possibilidade. Até porque, mulher excepcional como essa jamais conhecera.
Evidentemente
poderia se relacionar com uma ou outra mulher que lhe despertasse o desejo, mas
já que havia se feito independente, o melhor era que assim permanecesse...
(...)
Sem
medo abriu-se para o camarada Comissário, mas ressaltou que já estavam há um
bom tempo distantes do assunto que os havia reunido naquela noite... Além do
mais, ainda não havia jantado. Neste ponto, o camarada disse que por sua culpa
haviam se prolongado demais... Disse que era muito egoísmo de sua parte.
Sem Medo observou que mais uma vez o pegava a se
desculpar, e tudo como se ele próprio não estivesse espontaneamente decidido a ficar.
Por fim o Comissário voltou a tratar das discussões Tribalistas
na Base e perguntou sobre as divisões entre kimbundos e kikongos. Disse que os
dois grupos queriam vê-los em litígio e liderando as facções. Sem medo lembrou
que havia também os destribalizados e que esses eram pela unidade.
O Comissário respondeu que conhecia a situação e acrescentou
que a tensão só aumentara desde a missão... Os kimbundos não concordavam com a
punição ao Ingratidão do Tuga e viviam reclamando do André. Em relação a essa
última queixa, Sem Medo sentenciou que estavam com a razão. Neste ponto, o
camarada acrescentou que os kimbundos incluíam o próprio comandante em seus
protestos, pois os dois eram os “kikongos mais em vista”.
(...)
Então,
em síntese, os kimbundos desejavam que o Comissário os liderasse numa luta
contra Sem Medo. Já os kikongos não criticavam o André e ao mesmo tempo esperavam
que o Sem Medo expulsasse seus adversários do Comando.
O próprio Sem Medo admitiu que não tinha como enfrentar o
André, e nisso estaria o “azar dos kikongos”.
O
Comissário emendou que o “azar” do outro pessoal era que entre ele e o Chefe de
Operações não havia sintonia... Sequer chegou a terminar o raciocínio porque os
dois se puseram a rir.
(...)
Ao longe, Muatiânvua, Ekuikui e o professor ouviram os
risos e se cumprimentaram aliviados.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/03/mayombe-de-pepetela-consideracoes-do.html
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto