sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – alguns fragmentos de Sterne sobre a sensibilidade; a criação é produto da sensibilidade presente em tudo e em todos; alterações psicológicas e culturais pesaram no embate contra as torturas e castigos judiciais; pequenos fragmentos do doutor Rush em defesa da empatia pelos que sofrem nos processos; breve introdução sobre a continuidade das reflexões

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Esperava-se que os procedimentos em relação aos que haviam cometido crimes mudassem. Em vez dos castigos e torturas públicas, punições que envolviam a educação...
A ideia negativa que se fazia das paixões deu lugar à valorização de uma moralidade que se baseava na sensibilidade (entendida como “reação emocional” às sensações físicas). A educação com base nessa moralidade (reeducação) passou a ser valorizada enquanto processo responsável por alterações do comportamento em direção a uma interação social marcada pelo respeito às sensibilidades.
O livro cita fragmentos de Laurence Sterne nos quais o personagem Yorick (seu pseudônimo em “Uma Viagem Sentimental”) tece elogios à sensibilidade:

                   “Cara sensibilidade! (...) eterna fonte de nossos sentimentos! – é aqui que te descubro – e esta é a tua divindade que se agita dentro de mim (...) que sinto algumas alegrias generosas e afetos generosos além de mim mesmo – tudo vem de ti, grande – grande SENSÓRIO do mundo! que vibra mesmo quando um único fio de cabelo cai sobre o chão, no deserto mais remoto da tua criação”.

Para Sterne tudo à nossa volta inspira a sensibilidade. Como não se sensibilizar com a condição dos menos favorecidos? A carência dos mais rudes camponeses só podia ser contemplada pelos mais ricos (desde que devotados ao cultivo da sensibilidade) que se dispunham às viagens às longínquas paragens.
(...)
Depois de todas as reflexões acerca das mudanças que se processaram nos modos de ser das pessoas no decorrer do século XVIII (o esmero em relação aos cuidados pessoais e a gentileza em meio aos demais; o simples uso do lenço para assoar o nariz; a audição mais introspectiva das músicas; a leitura de romances; a atenção e gosto pelos retratos; as críticas à tortura e castigos judiciais), Lynn Hunt reconhece que não é fácil (parece mesmo exagerado) estabelecer relações entre elas... Mas há que se ressaltar que não foi simplesmente porque os juízes abandonaram o sentenciamento das torturas que elas deixaram de ser aplicadas...
Também não se pode superestimar a atuação dos que escreviam textos iluministas contra os procedimentos tradicionais... A autora considera que a mentalidade de reconhecimento de que cada um tem direitos desde a interioridade, de garantias da individualidade, de “pertencimento dos próprios corpos” e de sua inviolabilidade tomou o lugar da estrutura que se baseava na dor e sofrimento dos sentenciados por incorrerem em atos (produtos de paixões) que ultrajavam o Estado.
As pessoas passaram a entender melhor as paixões... Afastaram-se das críticas mais tradicionalistas e defenderam que todos somos dotados de “paixões, sentimentos e simpatias”.
Para finalizar o raciocínio, mais uma vez o livro cita palavras do doutor Rush que sintetizam o anteriormente exposto. Ele lembrava que também as pessoas detestadas pela sociedade (os criminosos condenados) “possuem almas e corpos compostos dos mesmos materiais que os de nossos amigos e conhecidos”. E por se por se tratar de um pensador dos códigos penais preocupado com a exposição dos suplícios, alertava que a contemplação das misérias dos sentenciados produzia espíritos insensíveis, “sem emoção ou simpatia” e, dessa maneira, o “princípio da simpatia cessará completamente de atuar; e (...) logo perderá o seu lugar no coração humano”.

(...)

Na sequência, o livro trata das Declarações que são os documentos que resultaram dos processos históricos (há que se acrescentar psicológicos e culturais) e que são objeto de tantos estudos e questionamentos: Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776); Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789); Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).
Na abertura das reflexões lemos uma definição de “Declaração” e uma pergunta sobre por que os direitos “devem ser apresentados numa Declaração”. Esses são assuntos das próximas postagens.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

sábado, 14 de dezembro de 2019

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – ainda as ideias de Benjamin Rush contrárias aos castigos públicos e a oposição às concepções tradicionalistas; Antônio Damásio, influências de Espinosa e valorização das paixões; paulatina adesão aos princípios reformistas e definições do fisiologista Charles Bonnet; aperfeiçoamento do indivíduo através da experiência e educação

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Como vimos na postagem anterior, o doutor Rush entendia os seres humanos de modo bem diferente do formulado por Muyart de Vouglans.
Rush era um crítico ferrenho dos castigos públicos, já que os espetáculos de horrores “travavam a simpatia” dos que os presenciavam... Podemos dizer que, para ele, o bom convívio entre os humanos e o “bem moral” só podiam derivar da empatia nutrida por princípios cristãos e, desse modo, a exposição dos suplícios em tudo contrariava o que pretende a “benevolência divina”.
Muyart insistia que as pessoas não conseguem controlar suas paixões, e que isso era uma consequência do “pecado original”... Assim, sua defesa dos castigos e tortura impostos aos que cometiam crimes se baseava nesse princípio religioso. Ele entendia que a razão deve controlar as paixões que podem levar a atos de rebeldia... Nem todos possuem o autocontrole, daí a importância da religião e as imposições da própria sociedade. Seu argumento pretende sustentar que os crimes acontecem quando o indivíduo perde a razão (se deixa dominar por paixões, desejos e medos), e quando isso acontece o Estado não pode deixar de atuar com rigor.
A honra e justiça são sufocadas quando os desejos (de possuir o que não se tem e o que é inalcançável) e o medo (de perder as posses) se exacerbam... Por isso, ainda no entendimento de Muyart, as sociedades compreendem que Deus as submetem a reis investidos de suprema autoridade e poder “sobre a vida dos homens”. Como se sabe, esse poder era delegado a juízes e os monarcas guardavam para eles mesmos o direito de perdoar. Essa visão tradicional que fundamentava os códigos de leis sobre os crimes arrogava que apenas dessa forma se faria prevalecer as virtudes sobre os desvios comportamentais dos vícios. Para Muyart, havia eficiência nesse modelo e assim “o mal inerente da humanidade” podia ser combatido.
(...)
Evidentemente os que pretendiam reformar a Justiça contrariavam os princípios filosóficos e políticos tradicionais... Como vimos na postagem anterior, notadamente a partir das ideias de Rush, propunham um modelo baseado no “cultivo de qualidades humanas inerentemente boas” através da educação e práticas de valorização da pessoa.
Pensadores iluministas trataram da questão das paixões tão problematizadas por Muyart e outros tradicionalistas... Eles tomaram por base as ideias do neurologista Antônio Damásio, que entendia que “as emoções são cruciais para o raciocínio e a consciência, e não hostis a eles”.
Damásio admitia que Espinosa (pensador e filósofo holandês do século anterior) era a sua principal influência intelectual, todavia as reflexões mais positivas em torno das paixões só passaram a ser admitidas pelos círculos mais esclarecidos da Europa durante o século XVIII. Para muitos, as ideias advindas do pensamento de Espinosa levavam ao materialismo, já que concluía-se que “a alma é apenas matéria, por isso não há alma”... Portanto, refutavam tais ensinamentos, ainda mais porque endossavam o ateísmo na medida em que relacionava Deus à natureza e, assim sendo, “não poderia haver Deus”.
Bem aos poucos os mais cultos começaram a aceitar um “materialismo implícito ou mitigado” que não provocava maiores comprometimentos em relação às discussões “teológicas sobre a alma”... No máximo permitiam-se às reflexões sobre a matéria e sua capacidade de “pensar e sentir”. Daí as conclusões a respeito da condição de igualdade entre os seres humanos em sua “organização física e mental” e, além disso, as noções a respeito da experiência e da educação como fatores primordiais (em vez do nascimento) na explicação a respeito das diferenças entre grupos humanos de origens diferentes.
(...)
Somos tentados a pensar que a maioria dos que frequentavam os grupos mais esclarecidos aderisse à filosofia “de viés materialista”... Mas não foi isso o que ocorreu. Apesar de bem poucos se declararem afinados com o “espinosismo”, as ideias de Muyart sobre as paixões se tornaram menos aceitas e sofreram várias críticas.
Podemos dizer que as emoções deixaram de ser vistas como prejudiciais à razão... O livro cita afirmação de Charles Bonnet (fisiologista suíço) que define a nova ideia sobre as paixões: “o único Motor do Ser Sensível e dos Seres Inteligentes”. E como passaram a ser vistas como boas, as paixões deviam ser trabalhadas pelo processo de educação e, dessa maneira, contribuir para o “aperfeiçoamento da humanidade”.
Em consonância com as novas ideias sobre os processos judiciais, a humanidade passava a ser entendida como “aperfeiçoável”, ao mesmo tempo em que as teses sobre os vínculos entre paixões humanas e os vícios e maldades eram refutadas.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

“Rei do Congo – A mentira que virou folclore”, de José Ramos Tinhorão – iniciativas técnico-científicas fundamentais à navegação em águas fundas e de alto mar; balestilha e quadrante; contribuições portuguesas para a evolução do astrolábio; Afonso X de Castela e a coletânea de informações astrológicas em “Libros del saber de Astrologia IV”; sobre a “rodela” e navegação a bolina

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A opção pela navegação do Atlântico forçou os lusitanos a buscarem as técnicas que permitissem o avanço das embarcações rumo ao sul e em altas águas. Como se sabe, isso foi fundamental para o processo que marcou as conquistas na África, América e extremo da Ásia.
Os portugueses exploraram tudo o que a antiga “navegação de rumo e estima” permitia ao mesmo tempo em que contribuíam para o desenvolvimento da “navegação astronômica” que, como o nome sugere, baseava-se na observação de astros, como o sol ou a estrela polar (que é de primeira grandeza). Esse recurso permitiu estabelecer a localização da embarcação quando se efetuava a observação. Evidentemente, isso foi resultado de muitas iniciativas técnico-científicas datadas do final do XIV.
(...)
A balestilha, por exemplo, foi instrumento importante para se calcular “a altura dos astros”. Isso ocorria sempre que se apontava o canudo do aparelho para a estrela tomada por referência e, a partir do deslizamento do “virote” (uma haste), obtinha-se os dados cravados na “soalha” (que era uma “régua graduada”).
Já o quadrante podia revelar a “hora solar” a partir do deslocamento da sombra no correr do dia. Podia revelar ainda a altura dos astros sobre o horizonte e a latitude em que se encontrava o observador.
De todos os instrumentos de navegação, o astrolábio é o que melhor ilustra os avanços técnicos da navegação portuguesa. Este aparelho era basicamente uma evolução da invenção por muitos atribuída a Hiparco (o grego dos anos 150 d,C), o “pai da Astronomia”.
Entre os componentes do astrolábio de fins do século XIII havia a “esfera armilar”, que indicava dados historicamente coletados por astrônomos árabes.... O livro esclarece que tais informações já eram anunciadas em “Libros del saber de Astrologia IV: Libro del astrolábio redondo e Libro del astrolábio llano”, de Afonso X, o “rei Sábio” de Castela, falecido em 1284.
As muitas lâminas dispostas no astrolábio dificultavam a leitura da “altura dos astros e outros acidentes da esfera celeste”. Conforme se tornaram mais familiarizados com o aparelho, os portugueses proporcionaram inovações que resultaram na confecção do “astrolábio plano”, que simplificou a verificação em um:

                   “aro graduado, com duas pínulas ou lâminas providas de um orifício em cada uma das extremidades que, ao coincidirem para deixar passar os raios de luz, proporcionavam o alinhamento ótico que permitia medir os ângulos ou afastamentos angulares indispensáveis ao cálculo da altura do objeto observado”.

Os astrolábios confeccionados pelos portugueses podiam ser de madeira ou latão... Havia os que mediam 10 ou 15 centímetros... Os maiores chegavam a 50 centímetros. Os menores eram erguidos na direção do “astro-guia” pelos pilotos. Já os maiores podiam ser suspensos “por um cabo preso a um ponto fixo”.
O instrumento plano e simplificado, constituído pelo aro e pelas pínulas para a leitura, era comumente chamado de “rodela” pelos navegantes portugueses.
(...)
Sem dúvida, a “navegação a bolina” tornou-se especialidade dos portugueses no correr do século XV e foi recurso técnico fundamental para suas pretensões marítimas.
Basicamente esse tipo de navegação demandou mudanças na “ordenação do velame”. Até então, a disposição visava o aproveitamento máximo do “vento a favor”. Para conseguirem a “navegação a bolina”, os portugueses passaram a utilizar um cabo que enviesava “a vela no sentido do aproveitamento do vento de lado, de forma a permitir que a embarcação continuasse a avançar” mesmo com o vento contrário.
Leia: Rei do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“Rei do Congo – A mentira que virou folclore”, de José Ramos Tinhorão – embarcações a vela e remo utilizadas pelos portugueses no começo do século XV; cáravos percursores das caravelas; fragmentos do professor Pedro Agostinho publicadas na “Revista Quinto Império”, nº 15; carta-portulanos e bússolas, instrumentos para a navegação de rumo e estima pelo Mediterrâneo; o “Cabo do Não”

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Tinhorão dá destaque à divergência entre as informações (quanto ao número de embarcações utilizadas pelos portugueses durante a conquista de Ceuta) apresentadas por Pisano e Zurita... Todavia o que mais chama a atenção é o fato de a frota plenamente capacitada para as manobras ser constituída por muitos navios tradicionais e comumente avistados no Mediterrâneo desde longa data. Muitos deles conjugavam velas e remos.
Neste ponto, o livro cita informações extraídas de “Os navios do Infante D. Henrique”, do historiador das navegações e da ciência náutica Quirino da Fonseca. Assim, entre os modelos utilizados pelos portugueses do começo do século XV devemos destacar “galés a remos, barinéis, de maior porte, mas também a remo ou velas, fustas a remo, com vela única e, possivelmente, barcos do tipo cáravos dos mouros”.
A respeito desses últimos, esclarece-se que foram aperfeiçoados e tempos depois possibilitaram a construção das “caravelas de vela latina, capazes de navegar com vento contrário”.
(...)
Para melhor ilustrar o anteriormente mencionado, vale ressaltar ainda outro estudo citado em nota sobre os avanços obtidos pelos portugueses na navegação em águas sujeitas a correntes adversas... No caso, as investigações do professor Pedro Agostinho publicadas na “Revista Quinto Império, nº 15, do Gabinete Português de Leitura/centro de Estudos Portugueses” (Salvador, dezembro/2001), informam que no Recôncavo Baiano praticou-se a navegação contra o vento (a bolina) graças às manobras dos navegantes e à versatilidade de suas embarcações que permitiam “aproximar a proa, ao máximo, da linha do vento avançando contra ele aos ziguezagues, em bordos sucessivos, todos referidos, a um rumo médio previamente determinado”.
(...)
A conquista de Ceuta evidenciou a necessidade de aprimoramento das embarcações e instrumentos de navegação. Tornou-se claro para os portugueses que o avanço pelo Atlântico exigiria maiores esforços do governo, algo bem entendido pela burguesia vinculada aos empreendimentos portuários e a chamada “moderna nobreza dos ‘filhos segundos’” que despontou com a dinastia de Avis. Os resultados da aliança entre os dois grupos começaram a surgir conforme buscaram soluções para os novos desafios da expansão marítima. A vastidão do oceano, os ventos adversos e o avanço para o desconhecido levaram os atores a investirem nos meios possibilitados pelas novidades científicas de então.
Nesse sentido, pode-se dizer que houve uma ciência a serviço dos negócios relacionados à navegação. Desde o século XIV vários estudos geográficos contribuíam para a construção do conhecimento de roteiros mais seguros pelo Mediterrâneo... A Cartografia Moderna tem sua origem nessas carta-portulanos, como eram chamados os mapas dos referidos roteiros.
De posse dessas cartas, e com o auxílio bússola (invenção chinesa logo disseminada entre as nações mediterrâneas graças aos empreendimentos árabes), os navegantes podiam atingir seus objetivos com maior precisão. A bússola indicava o norte magnético, então nos mapas marcava-se o destino. Depois traçava-se a “linha de rumo”... O método, que nos dias de hoje parece simples demais, foi amplamente utilizado nas navegações pelo Mediterrâneo até o século XV e era comumente chamado de “navegação de rumo e estima”.
Como o Mediterrâneo está cercado e limitado pelas terras do sul da Europa, norte da África e pela Península Arábica, a “navegação de rumo e estima” manteve-se satisfatória por muito tempo e pôde ser concluída por embarcações a vela e remo sem maiores traumas (aliás, esses foram os meios utilizados por fenícios, gregos, romanos durante a antiguidade, e tempos depois pelos árabes).
A conquista de Ceuta mostrou aos portugueses que teriam muitas dificuldades para prosseguir com o expansionismo, sobretudo porque a presença de mouros pela costa marroquina era intensa... Eles ainda dominavam a Andaluzia (em terras espanholas), desse modo a navegação mediterrânea tornava-se inviável. Então, a alternativa “óbvia e imprescindível” eram as águas do Atlântico.
(...)
Navegar mais ao sul era temerário...
O livro dá conta de que o ponto máximo que os portugueses podiam atingir era o “Cabo do Não”, na costa africana... O nome se deve à incógnita que alimentavam a respeito do avanço a partir dali: “quem passar do Cabo do Não, ou tornará ou não”. A única certeza que alimentavam era a de que os recursos utilizados para a navegação pelo Mediterrâneo eram insuficientes para os riscos de além do “Cabo do Não”.
Leia: Rei do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – Muyart, defensor da tortura como forma eficiente de se obter confissões; petição de Dupaty agitou a opinião pública e provocou oposição declarada do tribunal parisiense; Condorcet e sua publicação a favor de Dupaty; decreto real abolindo a tortura anterior às execuções; simpatia, como reflexo do amor divino e mentalidade de valorização dos corpos; ideias de Benjamin Rush contrárias aos castigos públicos

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/11/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_27.html antes de ler esta postagem:

Em 1780, Muyart havia escrito o seu tratado sobre a legislação referente às punições judiciais aplicadas na França. Em postagens anteriores, vimos que ele considerava válidas as confissões firmadas após sessões de tortura. Portanto se colocava contra a corrente de advogados e pensadores reformadores, todavia evitava o debate direto ao mesmo tempo que afirmava que seus oponentes eram “polemistas”, e garantia que “a força do passado” estava ao seu lado.
(...)
De tal modo a petição de Dupaty inflamou os ânimos dos que já se sensibilizavam com os sofrimentos dos acusados injustamente que logo a opinião pública colocou-se declaradamente a favor dos processados e contra o sistema judiciário...
Isso alarmou o “Parlament de Paris”, que decidiu queimar publicamente o texto. O tribunal questionou o gênero textual adotado no documento (o estilo romanesco) e contra-atacou afirmando que a petição transmitia a ideia de que o advogado assumia a condição de “porta-voz” de toda nação e que, em nome dela, formulava os juízos catastróficos... É como se toda humanidade fizesse parte “de uma terra desgrenhada”, lhe mostrasse “as feridas” e se colocasse ao seu lado “tremendo e estendendo-lhe as mãos”.
Apesar dessa ofensiva, não houve como conter o avanço das ideias reformadoras... O Marquês de Condorcet (Jean Caritat), que viria a se tornar “o defensor mais coerente dos direitos humanos” ao tempo da Revolução, redigiu panfletos nos quais defendia Dupaty (fins de 1786). De modo simplificado, lançou novos ataques ao modo como as autoridades jurídicas desprezavam o ser humano e ao modo como violavam a “lei natural”. Como se sabe, dois anos depois o próprio rei Luís XVI tomou atitudes mais afinadas com as reivindicações e aboliu (provisoriamente) “a tortura antes da execução para obter nomes de cúmplices”. O livro cita trechos do decreto real e suas providências:

                   “reafirmar a inocência (...) remover do castigo qualquer excesso de severidade (...e) punir os malfeitores com toda a moderação que a humanidade exige”.

A campanha cresceu de tal forma que, em 1789, quando se vislumbrava a reunião dos Estados Gerais, “a correção dos abusos no código criminal” tornou-se uma das questões mais citadas nas “listas de queixas” propostas para a assembleia.
(...)
“A Invenção dos Direitos Humanos” não nos deixa perder de vista que toda polêmica em torno da tortura judicial e das demandas por uma reforma nos códigos se relacionam à empatia pelos sofredores e pelos “novos significados atribuídos ao corpo”... Tanto os ossos quebrados de Calas quanto a gangrena de Lardoise (aquele acusado defendido por Dupaty) provocaram a inquietação nas mentes que exigiam dignidade no trato dos corpos.
O breve panfleto de Benjamin Rush (1787) já apontava “os defeitos do castigo público”, demonstrando que tal procedimento não estava de acordo com as noções de indivíduo autônomo e solidário. Rush era médico e até entendia a sanha dos magistrados tradicionais pela aplicação de castigos aos condenados, provocando-lhes dores corporais. Mas de sua parte preferia punições mais relacionadas a “trabalho, vigilância, solidão e silêncio”, pois isso atendia às prerrogativas “da individualidade e potencial utilidade do criminoso”.
Evidentemente Rush era dos que se colocavam contrários aos castigos em público, pois isso destruía a simpatia (ou empatia), algo tão precioso e que ele considerava “a vice-regente da benevolência em nosso mundo”.
A “simpatia” lembra que temos de reconhecer que os demais possuem interioridade e direitos que devem ser respeitados. A preocupação de Rush indica que essa percepção vinha fundamentando uma nova moralidade e sinalizava “a centelha do divino” na vida e relações humanas. Não por acaso, o doutor relacionava a sensibilidade ao senso de justiça, um “reflexo condicionado para o bem moral”. Assim, não podia aceitar os castigos públicos proporcionados pela Lei, pois eles travavam a simpatia, o “amor universal” e a percepção de que também os criminosos possuem “corpos e almas semelhantes” aos nossos.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – de críticas de Brissot e medidas adotadas por Luís XVI; fragmentos de Joseph-Michel-Antoine Servan em defesa da reforma penal; sobre a Sociedade dos Amigos dos Negros e a “Bibliotèque Philosophique du Législateur, du Politique et du Juriconsulte”, de Brissot; metodologia dos advogados nas petições em que se liam depoimentos de condenados na primeira pessoa; o exemplo de Charles-Marguerite Dupaty, “voz aos supliciados”, apelação aos juízes e súplica ao rei

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O texto de Brissot foi considerado agressivo pelos críticos da reforma da lei penal. O governo francês temia radicalismos e por isso deu ordens para que não mais se imprimisse o ensaio premiado em 1780 pela academia de Châlons-sur-Marne... O livro traz um fragmento do autor:

                   “Esses direitos sagrados que o homem recebeu da natureza, que a sociedade viola tão frequentemente com o seu aparato judicial, ainda requerem a supressão de muitos de nossos castigos mutiladores e a suavização daqueles que devemos preservar. É inconcebível que uma nação gentil (douce), vivendo num clima temperado sob um governo moderado, possa combinar um caráter amável e costumes pacíficos com a atrocidade de canibais. Pois os nossos castigos judiciais exalam apenas sangue e morte, e só tendem a inspirar fúria e desespero no coração do acusado”.

Obviamente o governo francês não se sentiu confortável com a referência adotada por Brissot, que o comparou aos canibais... Mas o final do século XVIII prosseguiu marcado pela defesa da reforma penal e pelos ataques contra “a barbárie da tortura judicial e o castigo cruel”, que haviam se tornado muito comuns. Os debates públicos e as publicações apresentaram tantos protestos que o rei Luís XVI acabou abolindo a tortura como instrumento de obtenção de confissões de culpa.
Joseph-Michel-Antoine Servan, histórico defensor das mudanças, foi um dos que aplaudiram a decisão do monarca. O advogado manifestou-se (1781) nesse sentido salientando que: “essa infame tortura que por tantos séculos usurpou o templo da própria justiça e o transformou numa escola de sofrimento, onde os carrascos professavam o refinamento da dor”... Para ele, nem mesmo entre os “selvagens” poderia haver quem defendesse a tortura judicial, algo só comparável a um “monstro absurdo indigno”.
(...)
Brissot era jovem e apesar de sua pouca experiência no campo do Direito, envolveu-se nos assuntos e tornou-se ativista político. Entre 1782 e 1785 escreveu dez volumes de sua “Bibliotèque Philosophique du Législateur, du Politique et du Juriconsulte”... A obra, que continha textos da autoria de outros defensores da reforma, foi impressa na Suíça e somente através do contrabando é que chegou à França.
Definitivamente, ele relacionava a temática da tortura à questão dos “direitos humanos”. Indignado, levantava a questão sobre a importância de “defender os direitos ultrajados da humanidade”... Importava, neste caso, a pouca idade dos que os defendem? Brissot fundou, em 1788, a Sociedade dos Amigos dos Negros, pioneira entre os franceses na defesa da abolição dos escravos. Isso nos leva a concluir que a luta pela reforma judicial se integrava definitivamente à “defesa dos direitos humanos”.
Brissot e os que escreviam petições na defesa dos injustamente acusados teciam severas críticas ao “sistema legal como um todo”, e não era incomum os advogados redigirem textos em primeira pessoa, dando voz aos seus clientes, sujeitos de experiências dramáticas... Faziam isso e, através de “narrativas romanescas melodramáticas”, sensibilizavam a opinião pública ao mesmo tempo em que procuravam legitimar as teses que defendiam.
(...)
Charles-Marguerite Dupaty, advogado em Bordeaux e residente na capital francesa, foi um dos muitos correspondentes de Brissot. Dupaty destacou-se por sua intervenção como as anteriormente citadas. O livro esclarece que ele assinou petições em nome de três processados por “roubo agravado” e que acabaram condenados ao suplício da roda.
Em sua primeira petição (1786), Dupaty atacou o processo desencadeado e forneceu detalhes do sofrimento de seus clientes na prisão. Fez isso “dando voz” aos condenados com a narrativa em primeira pessoa. Em trechos selecionados por “A Invenção dos Direitos Humanos” lemos: “E eu, Bradier (um dos presos), então disse, metade do meu corpo ficou inchado por seis meses”; “E eu, Lardoise (outro), graças a Deus fui capaz de resistir (referindo-se a uma epidemia que havia atingido a prisão), entretanto, à pressão de meus ferros”... Mais adiante, Dupaty assinalava que podia “muito bem acreditar” que o condenado havia suportado “trinta meses nos ferros!”... E voltando “à fala” de Lardoise, “machucou tanto a minha perna que ela gangrenou; quase tiveram de amputá-la”. Por fim, os registros dão conta de que Dupaty não conseguiu segurar as lágrimas diante dos clientes.
O advogado passou a dirigir-se aos juízes do caso e no final ao próprio rei:

                   “Juízes de Chaumont, Magistrados, Criminalistas, vós o escutais? (...) Eis o grito da razão, da verdade, da justiça e da Lei”.

                   Ao monarca implora que ele “escute o sangue dos inocentes”: “digne-se da altura de seu trono, digne-se a dar uma olhada em todas as ciladas sangrentas de sua legislação criminal, onde perecemos, onde todos os dias inocentes perecem”.

Por último, ainda dirigindo-se a Luís XVI, a petição em tom de súplica pede que o rei “reforme a legislação criminal de acordo com a razão e a humanidade”.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – ainda o debate entre as ideias de Beccaria e a tradicional defesa da tortura judicial; disseminação das traduções do tratado pela Europa e América; os adversários associavam o texto ao caso Calas; fragmentos de Linguet acusando uma “conspiração iluminista” contra o direito tradicional; ideias expostas na “Enciclopédia” de Diderot; premiações e incentivos aos textos em defesa da reforma e acirramento da crítica

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/11/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_20.html antes de ler esta postagem:

As traduções do texto de Beccaria se multiplicaram pela Europa... Em 1766 a Igreja Católica o incluiu no Index, mesmo assim, até 1800 quase 30 edições italianas (várias delas com notas apócrifas e falsas) e outras 9 francesas foram publicadas. Um ano após a condenação papal do tratado, os ingleses conheceram a publicação traduzida de Beccaria, e logo a seguir apareceram novas edições em Glasgow, Dublin, Edimburgo. Charleston. Com a publicação na Filadélfia, também a América passou a debater as ideias de reforma do Direito... Surgiram edições traduzidas também na Alemanha, Polônia, Holanda e Espanha.
Os tempos eram mesmo de sensibilização em torno dos sofrimentos dos processados judicialmente. Em Londres, o tradutor da obra de Beccaria assinalava que:

                   “as leis penais (...) ainda são tão imperfeitas, e se fazem acompanhar por tantas circunstâncias desnecessárias de crueldade em todas as nações, que uma tentativa de reduzi-las ao padrão da razão deve interessar a toda humanidade”.
(...)
Os inimigos do movimento iluminista passaram a implicar com a disseminação do texto de Beccaria e afirmaram que só podia haver uma conspiração para abalar o direito penal vigente nas sociedades... O fato é que após toda polêmica em torno do caso Calas houve intensa mobilização para se definir a reforma das leis judiciárias. Criticava-se o fato de Beccaria, um italiano “ignoto” e de ”conhecimento apenas superficial da lei”, exercer tanta influência entre os pensadores do Direito.
Simon-Nicolas-Henri Linguet, era dos críticos mais ferrenhos. Em 1779, o jornalista anunciou que ouvira de certa testemunha que:

                   “Pouco depois do caso Calas, os enciclopedistas, armados com os tormentos da vítima e aproveitando circunstâncias propícias, embora sem se comprometer diretamente, como é o seu costume, escreveram ao reverendo padre Barnabite em Milão, que é seu banqueiro italiano e um famoso matemático. Contaram-lhe que era o momento de desencadear uma catilinária contra o rigor dos castigos e contra a intolerância; que a filosofia italiana devia fornecer a artilharia, e eles fariam uso dela secretamente em Paris”.

Para Linguet, o tratado de Beccaria não passava de petição para favorecer Calas e outros que se tornassem vítimas dos processos entendidos como injustos. Pode-se dizer que a obra do italiano influenciou a campanha que se desencadeou contra a tortura judicial, todavia os resultados não foram imediatos e não foi de um momento para outro que os simpatizantes da causa se uniram em torno de suas ideias.
O livro cita dois artigos de 1765 publicados na “Enciclopédia” organizada por Diderot para exemplificar o anteriormente exposto. O texto de Antoine-Gaspard Boucher d’Argis trata da “jurisprudência da tortura” e faz referências a “tormentos violentos” aplicados em processados sem proferir qualquer julgamento a respeito da questão... O outro artigo, de Louis de Jaucourt (comumente chamado Chevalier de Jacourt), considera a tortura um expediente próprio do processo penal, mas condena a sua prática e, para isso, recorre a termos e argumentos que vão desde a “voz da humanidade” até a ineficácia do expediente em se comprovar evidências de culpa ou inocência.
(...)
O final da década de 1760 conheceu a publicação de outros cinco livros em defesa da reforma judiciária... Durante a década de 1780 foram 39 publicações! O período intermediário foi marcado por intensa campanha pelo fim das torturas e pela “moderação dos castigos”. Em países como França, Itália e Suíça ofereciam-se premiações para os melhores textos em defesa da reforma.
Como podemos depreender, na França o debate era dos mais ferrenhos e, para evitar maiores transtornos devido às críticas mais exaltadas, o governo tomou providências para impedir que a academia de Châlons-sur-Marne continuasse a “imprimir cópias do ensaio vencedor de 1780, de autoria de Jacques-Pierre Brissot”.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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