quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – mulheres de Nazaré e considerações de santo Antonino; sítios religiosos e outras paisagens; expectativas na chegada a Jerusalém; enfim, a “área católica”

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Em Nazaré, os estrangeiros avistaram formosas judias que se dirigiam à fonte com seus utensílios de barro... Não vemos Teodorico demonstrar interesse por elas... Não ousou flertá-las... Em vez disso, pensou sobre o cotidiano que remontava a tempos bem mais antigos... A própria mãe de Jesus teria feito caminho como aquele, por entre figueiras, em busca de água... Assim como aquelas mulheres, Maria também devia vestir-se de branco e cumprir alegremente a tarefa de todas as tardes.
Suas reflexões o remeteram a Santo Antonino que, por ocasião de sua romagem à Terra Santa, encheu-se de ternura ao avistar as mulheres em seu trajeto rumo à fonte... E não havia sido ele o santo a vinculá-las à mãe de Jesus? E não havia sido ele que as denominara “virtudes claras, herdadas de Maria cheia de graça”?
Enquanto Teodorico manteve-se convicto em sua neutralidade, o guia Pote animou-se a chamar a atenção delas cantarolando madrigais... Elas apenas sorriam discretamente...
(...)
Chegaram à parte mais alta de Nazaré...
Passaram por vinhas e figueiras que abrigavam casebres... Tudo muito humilde... E isso, no entendimento de Teodorico, combinava bem com o modo de ser Daquele que ensinava a humildade.
O vento soprava forte no topo do morro onde haviam se posicionado. Com solenidade, Topsius reverenciou as planícies. Depois passou a apontar para os locais de importância religiosa... Teodorico enrolava um cigarro e entediado o ouvia dizer “Esdrelon, Endor, Sulém, Tabor”...
(...)
O mais eram paisagens... O Monte Carmelo e sua neve; a poeira que subia das planícies da Pérea; o azulado Golfo de Caifa; as tristes montanhas da Samaria; e, no céu acima dos vales, o voo das grandes águias.
Teodorico sentenciou que a vista era “catita”, e isso parecia sintetizar o que havia a ser dito a respeito de toda paisagem.
(...)
Numa madrugada iniciaram a descida para Jerusalém...
O caminho desde a Samaria até Ramá foi de chuva torrencial... O tempo só se tornou claro nas proximidades da colina de Gibeá. Teodorico registrou que naquela localidade existiu o jardim, onde, tocando sua harpa, Davi passava o tempo a contemplar a cidade sagrada.
Teodorico lembrou-se da Jerusalém que conhecera no sonho... Que tipo de visão lhe reservava aquela que se avizinhava? Certamente não seria a mesma das formidáveis torres que guardavam o suntuoso templo resplandecente “ao sol de Nizam”... Reconheceria as colinas de Acra (repleta de palácios) ou a de Bezeta (“regada pelas águas de Enrogel”)?
Não demorou e o velho beduíno que os acompanhava anunciou “EL-Kurds”, que era como desde muito tempo os árabes chamavam Jerusalém.
Ansioso, Teodorico seguiu firme em sua montaria... Tremeu quando avistou o vale do Cédron... Nada das imponentes muralhas “visitadas” durante o sonho! Em vez disso, avistou umas ruínas caducas e, no seu entorno, um aglomerado de conventos...
(...)
Passaram pela Porta de Damasco e avançaram pelas lajes da Rua Cristã.
A primeira figura que viram foi a de um frade gorducho... O religioso seguia pelo caminho tirando boas tragadas de um cachimbo. Carregava um guarda-sol e um livro de orações que indicava seu compromisso beato.
Chegaram ao Hotel Mediterrâneo e logo tiveram uma mostra do que era a “Jerusalém Católica”... No pátio via-se o “anúncio das Pílulas Holloway” (indicadas para os males do fígado, do estômago e para o tratamento de disenterias) que destacava um folgado tipo inglês de olhos claros e com o “Times” nas mãos.
Mais adiante avistaram uma varanda onde haviam estendido umas “ceroulas brancas com nódoas de café”... Desde aquele ponto ouviram uma voz fanhosa francesa a pronunciar “C'est le beau Nicolas, holà!”
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – das fontes para a composição do polêmico sonho de Teodorico; a romagem à Galileia; tédio e saudade da experiência na “bárbara Jerusalém”

Ficamos admirados com a grande quantidade de informações contidas no sonho em que Teodorico se viu no tempo da Paixão de Cristo. Elas estão no Capítulo III de “A Relíquia” e se referem ao cotidiano das pessoas e seus afazeres, ao templo e seu funcionamento, à administração romana, e também às personagens citadas nos Evangelhos.
Diversos sites (https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Rel%C3%ADquia e outros) destacam a importância de “Vida de Jesus”, de Ernest Renan, e “Memórias de Judas”, de Ferdinando Petruccelli dela Gattina para a produção textual de Eça de Queiroz no citado capítulo. Para alguns, o autor plagiou a produção de Petruccelli.


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Topsius e Teodorico deixaram Jericó num ensolarado domingo... Seguiram pelo Vale de Querite tendo a Galileia como destino...
Os bons cristãos que chegassem à Terra Santa não perderiam a oportunidade de mais esta romagem. Teodorico não se sentia animado. Nenhuma emoção o motivava a percorrer mais esses “e ermos caminhos da Síria”.
O fato é que manteve-se indiferente ao “país de Efraim e de Zebelon” e logo cansou-se das paisagens.
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Acamparam em Betel assim que a noite caiu... A lua cheia que surgiu atrás dos montes de Gileade convidava à proza e à conversa sobre antigas histórias. O guia Pote foi logo indicando o solo sagrado onde o patriarca Jacó tivera o espetacular sonho da “escada que faiscava” desde o chão até as estrelas, e que era utilizada por anjos de “asas fechadas”.
Maravilhado, o rapaz dizia que as entidades celestiais subiam e desciam... Teodorico apenas bocejou e disse que aquilo tinha “o seu chic”... A sua reação exemplifica bem o que foi o resto da viagem pela “terra dos prodígios”... Nada chamava a sua atenção! As ruínas pouco lhe diziam... Até mesmo o “poço de Jacó”, sítio dos mais concorridos pelos peregrinos, o enfastiou.
À sua volta todos sabiam que aquelas eram as mesmas pedras onde um dia Jesus se sentou e saciou a sede “bebendo do cântaro de uma samaritana”... Também Teodorico, cansado da calma daquelas estradas, podia acomodar-se nelas e beber da mesma água.
(...)
Tudo entediava...
O fato de saber que certos monumentos estavam impregnados da história bíblica  parecia piorar a sua condição... Teodorico queixou-se, por exemplo, da ocasião em que passou a noite numa cela de mosteiro tendo ao fundo “os cedros que abrigaram Elias” e “as ondas, vassalas de Hirão, Rei de Tiro”.
Mesmo quando galopou pela planície de Esdrelon ou remou no Lago de Genesaré sentiu-se massacrado pelo tédio.
Mas eventualmente o rapaz sentia um aperto diferenciado no coração... Era como que uma “saudade fina e gostosa” do tempo antigo, “vivido” no sonho. Ao fumar diante das tendas, ou a cavalgar solitariamente pelos córregos secos, pensava na “terma romana, onde uma criatura maravilhosa de mitra amarela se ofertava, lasciva e pontifical”... Isso o agradava.
Isso e tudo o mais! A casa de Gamaliel, onde o belo Manassés manifestou toda a sua disposição para a luta ao levar a mão à rica espada cravejada de pedras preciosas; os mercadores no templo e suas diversas negociações; “a sentença do Rabi com um traço vermelho, num pilar de pedra, à porta Judiciária”; a gente local e a gente estrangeira... Tudo isso parecia chamá-lo de volta.
(...)
Ele mesmo achava graça... Evidentemente não podia ser... Abandonar a sua condição de bacharel e o conforto de seu tempo em troca da “bárbara Jerusalém”? Exatamente por causa do disparate da ideia, o saudosismo logo se esmorecia...
Ao notar-se “diante das ruínas do Monte Ebal, ou sob os pomares que perfumam Siquém (o vale onde no passado foi erguida a cidade levita de mesmo nome)”, voltava a se sentir enfastiado.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

domingo, 28 de janeiro de 2018

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – prédios e paisagens desvanecem; retorno ao acampamento; despertando da longa noite

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Como se viu, o longo e conturbado sonho* de Teodorico reservou-nos uma versão conturbadora a respeito dos episódios que se seguiram à crucificação de Cristo...
A polêmica que a envolve só pode ser inaceitável pelos cristãos, e torna “A Relíquia” um dos romances mais controversos.

                   * acesse desde http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/11/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_32.html / http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/11/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_20.html para conferir o polêmico sonho.


(...)
A “viagem ao passado de mil e oitocentos anos” chegou ao fim...
Topsius conduziu Teodorico às carreiras pela “praça rodeada de pálidos arcos”... E foi como se tudo começasse a se desmanchar...
Há alguns trechos que evidenciam isso. Os pilares de mármore, por exemplo começaram “a tombar, sem ruído e molemente”... Os registros dão conta de que os dois seguiram ao portão da casa de Gamaliel, onde “um escravo, tendo ainda nos pulsos pedaços de cadeias partidas” os aguardava com os cavalos prontos para a viagem de retorno.
A pleno galope passaram pela Porta de Ouro enquanto ouviam o estrondo de pedras que se descolavam das estruturas...
Pegaram a estrada de Siquém no rumo de Jericó... Estavam perturbados e sequer tinham certeza de que os cavalos pisassem as lajes de basalto do caminho. As colinas que constituíam as paisagens pareciam “correr no sentido oposto” e lembravam “dorsos de camelos na debandada de um povo”.
À sua frente, Teodorico notava a agitação da capa de Topsius “por uma rajada furiosa”... O rapaz agarrou-se às crinas de sua égua, que seguia esbaforida e dardejando “jatos de fumo avermelhado” pelas narinas.
Depois de algum tempo, avistaram a planície avizinhada pelas serras de Moabe. O acampamento que haviam deixado desde que partiram para Jerusalém surgiu e logo os cavalos estacaram.
(...)
Da fogueira, restara somente algumas “brasas dormentes”.
Chegaram à tenda e encontraram apenas um resto de pavio com tímida chama. O toco era o que restara da vela que Topsius havia acendido para se vestir.
Exausto, Teodorico atirou-se sobre o precário colchão... Sequer tirou as botas empoeiradas.
Não demorou e ele sentiu que a tenda estava sendo invadida por estupenda luminosidade... Pensou mesmo que fosse alguém com uma fumegante tocha de radiante luz dourada...
(...)
Enfim, o despertar...
Teodorico arregalou os olhos e levantou-se... Então entendeu que a luz provinha dos raios de sol desde os montes de Moabe. O astro já banhava o acampamento, e o alegre Pote chegava para despertá-lo...
O rapaz trazia suas botas!
Para melhor conferir o que se passava, Teodorico afastou os cabelos que cobriam seus olhos e viu sobre a mesa as várias garrafas esvaziadas na noite anterior... Aos poucos recordou-se que haviam brindado “à ciência e à religião”...
Viu que à sua cabeceira estava o embrulho com a coroa de espinhos... No outro catre estava Topsius “com um lenço amarrado na testa”. Certamente a bebedeira da noite anterior resultara em dores de cabeça. O alemão ajeitava os óculos de aros dourados e bocejava.
Pote achava graça da preguiça dos dois estrangeiros... Ao notar que estavam satisfatoriamente despertos, perguntou-lhes se desejavam “tapioca ou café” para iniciarem o dia...
Teodorico suspirou e, bastante aliviado por se perceber novamente em sua individualidade de “criatura do final do século XIX”, pulou sobre o colchão e manifestou que desejava uma “tapioca bem docinha” e macia tal como as de sua terra natal.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,


Prof.Gilberto

sábado, 27 de janeiro de 2018

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – o fim da narrativa sobre os últimos momentos do Rabi da Galileia; Topsius e a ideia do “nascimento da lenda inicial do cristianismo”

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Como se vê, o longo e conturbado sonho de Teodorico reserva-nos uma versão conturbadora a respeito dos episódios que se seguiram à crucificação de Cristo...
A polêmica que a envolve só pode ser inaceitável pelos cristãos, e torna “A Relíquia” um dos romances mais controversos.
(...)
O companheiro de Gade que articulava o grupo dos que conduziriam o Rabi da Galileia ao oásis de Engada explicou-lhe que fizeram de tudo para salvá-Lo, mas Ele não resistiu... O homem chegou a dizer que provavelmente o ocorrido tinha a ver com “coisas mais altas”.
Gade caiu de joelhos... Foi como se tivesse perdido a razão de viver...
(...)
O misterioso homem foi se retirando... Topsius o deteve e quis que ele dissesse o que ocorreu na sequência...
Quer dizer que o Rabi havia morrido “com a cabeça sobre o peito de Nicodemo”... O alemão não deixou escapar a chance de perguntar.
O homem se dispôs a falar aos dois estrangeiros... Com todo cuidado, levou-os para junto de um dos pilares e disse que “era necessário, para bem da terra, que se cumprissem as profecias!”... Depois explicou que José de Ramata recolheu-se em oração por cerca de duas horas. Seus adeptos permaneceram em silêncio até que ele se pôs a gritar “Elias veio! Elias veio! Os tempos chegaram!"
Será que o próprio Senhor falara em segredo a José de Ramata? Isso era algo que os que estavam presentes em sua casa não podiam responder. O certo é que logo depois ele pediu que enterrassem o Rabi numa caverna que ficava logo atrás do moinho em sua propriedade.
(...)
O homem afastou-se de Topsius e Teodorico... Pegou sua lâmpada e ia se recolher quando foi interrompido por Gade mais uma vez.
O essênio ainda soluçava e voltou sua face para lhe dizer que “Grande é o Senhor, na verdade!”... Depois perguntou a respeito do primeiro túmulo, onde Ele fora deixado com os panos perfumados.
O homem parecia querer encerrar de uma vez por todas aquele assunto e já avançava em meio à escuridão quando respondeu que o outro túmulo ficou “aberto e vazio”.
(...)
Não havia mais o que fazer ali...
Topsius conduziu Teodorico arrastando-o para a saída... Os dois tropeçavam e batiam contra os pilares.
Por fim chegaram a uma porta que se abriu assim que suas travas se desprenderam... Do outro lado havia “uma praça, rodeada de pálidos arcos, triste e fria, com erva entre as fendas das lajes dessoldadas, como numa cidade abandonada”...
Topsius sentenciou que a noite terminara e que era momento de deixarem Jerusalém.
(...)
Assim terminava a “viagem ao passado”, o fim do “longo e polêmico sonho” de Teodorico.
Seus registros ainda reservaram algumas considerações sobre as últimas palavras de Topsius...
Após deixarem o sítio onde abandonaram o deprimido Gade, o pesquisador alemão deu a entender que tivera a oportunidade de conhecer como se fez “a lenda inicial do Cristianismo” que colocaria fim ao “mundo antigo”.
A cada palavra do companheiro de viagem, Teodorico se via mais apavorado... Ele notava a agitação que dominava o especialista...
Topsius prosseguiu dizendo que logo que o Sabá terminasse, as mulheres voltariam ao sepulcro de José de Ramata e o encontrariam aberto e vazio. Após se certificar do desaparecimento do Rabi, a “crente e apaixonada” Maria de Magdala sairia a gritar que Ele havia ressuscitado.
Topsius não escondeu sua ironia quando disse que o amor daquela mulher “mudaria a face do mundo e daria uma religião mais à humanidade”.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – uma polêmica narrativa sobre os últimos momentos do Rabi desde o sepultamento

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Como se vê, o longo e conturbado sonho de Teodorico reserva-nos uma versão conturbadora a respeito dos episódios que se seguiram à crucificação de Cristo...
A polêmica que a envolve só pode ser inaceitável pelos cristãos, e torna “A Relíquia” um dos romances mais controversos.
(...)
Gade anunciou sua chegada soltando gritos como os chacais...
Não demorou e sob a varanda surgiu o clarão de uma lâmpada carregada por um tipo de barbas escuras... Deu para notar pelo manto pardo que vestia que se tratava de um galileu.
Tudo tornou-se escuridão novamente assim que ele soprou o fogo da lâmpada... Silenciosamente, caminhou na direção dos recém-chegados... E foi Gade quem primeiro pronunciou “ a paz seja contigo, irmão!”... Depois emendou que “estavam prontos”.
O homem chegou perto do poço, deixou a lâmpada sobre as tábuas e disse que tudo estava consumado. Gade entendeu o que aquilo significava, estremeceu e gritou perguntando pelo Rabi... O outro conseguiu abafá-lo e com preocupação observou as sombras dos arredores tal como “um animal do deserto”.
O tipo começou a dizer que o ocorrido tinha a ver com “coisas mais altas” do que eles podiam entender... Explicou que haviam feito tudo certo, bem como planejaram... E, como que a sustentar o que dissera anteriormente, afirmou que a esposa de certo Rosmofim era experiente no preparo do “vinho narcotizado”...
Contou também que conhecia o centurião, e que em certa ocasião o salvara “na campanha de Públio”, na Germânia... Ele deu a entender que graças a isso puderam negociar o resgate do corpo do Rabi...
(...)
O homem disse que quando rolaram a pedra sobre o túmulo cedido por José de Ramata, o corpo do Rabi ainda estava quente...
Depois dessa revelação, silenciou... Muito desconfiado, mais uma vez observou todo o entorno com toda atenção... Tocou o ombro de Gade e deu a entender que deviam se recolher a um canto ainda mais escuro e protegido... E foi assim que chegaram às pedras do muro, abaixo da varanda.
Topsius e Teodorico os acompanharam sem pronunciar palavra... Ansiosos, ouviram o tipo dizer que voltaram ao túmulo ao anoitecer... Emendou que olharam pela fenda e notaram a “face serena e cheia de majestade” do Rabi. Levantaram a pedra e o retiraram...
Emocionado, o homem disse que o Rabi “parecia adormecido, tão belo, como divino, nos panos que o envolviam”. Contou que o levaram pelo Garebe e que caminharam pelo arvoredo o mais rápido que podiam.
Graças à lanterna de José de Ramata puderam chegar à fonte, onde se depararam com um grupamento de soldados. Ao serem indagados pela ronda, disseram que conduziam “um homem de Jopé” que caíra enfermo... Explicaram que o levavam “à sua sinagoga”... Os soldados não fizeram caso e liberaram o caminho.
(...)
Com tristeza, o tipo sisudo prosseguiu dizendo que chegaram à casa de José, onde já se encontrava Simeão, “o Essênio”, que vivera em Alexandria e era um conhecedor das propriedades de plantas e raízes...
A condição física do Rabi piorara muito. Simeão fez de tudo! Utilizou inclusive a “raiz do baraz” (que muitos acreditavam ser eficaz no tratamento da lepra). Deitaram-No na esteira e deram-Lhe licores conhecidos por reanimarem a circulação sanguínea... Mas o Rabi não reagiu e nada respondeu quando O chamaram...
José e seus companheiros decidiram orar enquanto esperavam... Aos poucos perceberam que o corpo do Galileu ainda mais se arrefecia. Então Ele abriu os olhos e pronunciou umas palavras pouco compreensíveis... Do que o homem pôde entender, o Rabi “parecia que invocava seu pai, e que se queixava de um abandono”... Depois estremeceu. Via-se que a um canto da boca escorria um pouco de sangue... Foi o fim... O Rabi morreu ”com a cabeça sobre o peito de Nicodemo”.
(...)
Aterrorizado e a soluçar copiosamente, Gade caiu de joelhos.
O outro, que havia narrado os últimos suspiros de Jesus, virou-se como se mais nada tivesse a dizer... Caminhou em direção ao poço para pegar a lâmpada, mas Topsius o segurou a tempo de dizer que precisava ouvir mais a respeito do que ocorreu na sequência. Enfatizou que queria “toda a verdade”.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
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Prof.Gilberto

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – o essênio convoca Topsius e Teodorico para participarem do polêmico plano de resgate e transferência de Jesus ao oásis de Engada; os riscos do lúgubre caminho; “três espaçados gritos de chacal” anunciam a chegada aos companheiros de missão

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Gade desejou que a paz estivesse com os dois estrangeiros e parou diante deles... Ele encarou os olhos de Teodorico como quem busca o mais profundo da alma e disse que a lua nasceria em breve.
O essênio impressionava pela brancura de sua túnica e mais ainda espantava pela convicção com que se manifestava sobre as “coisas” que os seguidores de Jesus aguardavam. Ele perguntou se Teodorico e Topsius sentiam o coração fortalecido a ponto de acompanhar o Rabi “até o oásis de Engada”.
Teodorico ergueu-se assombrado e exclamou a sua falta de entendimento... Como podia ser aquilo, se todos sabiam que Jesus havia morrido e jazia “sob uma pedra, numa horta do Garebe?”
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Como se vê, o longo e conturbado sonho de Teodorico reserva-nos uma versão conturbadora a respeito dos episódios que se seguiram à crucificação de Cristo...
A polêmica que a envolve só pode ser inaceitável pelos cristãos, e torna “A Relíquia” um dos romances mais controversos.
(...)
A mensagem que o essênio trazia era a de que, ao nascer da lua, os seguidores de Jesus O levariam para Engada...
Teodorico agarrou o braço de Topsius... Talvez esperasse que o intelectual pronunciasse uma explicação, mas também ele se mostrava perturbado.
O alemão respondeu que tinham o coração forte... Parece que pretendia dar prosseguimento ao raciocínio que costurava, mas o interrompeu dizendo que “não tinham armas”...
(...)
Gade insistiu que deviam seguir com ele... Garantiu que passariam na casa de uma pessoa que os orientaria e que lhes entregaria as armas que desejassem.
Teodorico tremia dos pés à cabeça... Perguntou ao essênio onde Jesus estava naquele momento... Atento aos arredores, o essênio respondeu que Ele se encontrava na casa de José de Ramata... E emendou que despistaram a gente do templo ao depositarem o Rabi no túmulo novo localizado no “horto de José”.
Gade prosseguiu dizendo que a pedra não fechava totalmente o túmulo e que isso estava de acordo com os ritos... Assim, o rosto do Rabi podia ser contemplado por quem se aproximasse... Esse foi o caso das mulheres que choraram por três vezes sobre a pedra.
Os do templo que assistiram àquelas manifestações, e conferiram o jazigo, deram-se por satisfeitos e se recolheram aos seus lares... Gade disse que entrou pela porta de Gená e que, apesar de não ter visto nada mais, sabia que José de Ramata buscaria o corpo de Jesus acompanhado de uma pessoa de sua confiança. Orientando-se a partir das receitas “no livro de Salomão”, José de Ramata O faria “reviver do desmaio em que O deixou o vinho narcotizado e o sofrimento”.
Por fim, Gade insistiu uma vez mais, dizendo que Topsius e Teodorico deviam segui-lo... Era o que deviam fazer se O amavam e Nele acreditavam!
Teodorico admirou-se ao ver que o companheiro alemão encheu-se de decisão, tomou sua capa e movimentou-se dando a entender que seguiria o essênio...
(...)
Em silêncio, desceram a escada do terraço e seguiram para um “caminho de pedra miúda colado à muralha nova de Herodes”.
Topsius e Teodorico orientavam-se pela brancura das vestes de Gade. O caminho era todo escuridão e marcado por ruínas de casebres, onde eventualmente um cão aparecia saltando e uivando. O animal parecia denunciar que os passos dos três estavam sendo vigiados.
Soldados faziam a ronda no alto da muralha... A parca luz de suas lanternas escapava pelas aberturas (ameias). Então os caminhantes sabiam que podiam mesmo ser vistos a qualquer momento.
Mas isso não ocorreu...
(...)
A certa altura do caminho, uma sombra surgiu junto a uma árvore... A triste figura que parecia ter saído de uma sepultura, puxou a capa de Topsius e, em meio a gemidos e “baforadas de alho”, sugeriu que se recolhessem a um leito que ela preparara e perfumara de nardo.
Repudiaram o tipo e prosseguiram pelo lúgubre caminho até chegarem a um muro. Passaram por uma precária entrada prejudicada por arbustos. Depois caminharam por um corredor bastante umedecido por fino fio d’água até chegarem “a um pátio rodeado por uma varanda” sustentada por vigas de madeira que não inspiravam a menor segurança.
Interromperam os passos abafados pelo piso amolecido e aproximaram-se da beirada de um poço que estava coberto por tábuas... E foi então que Gade soltou “três espaçados gritos de chacal.”
(...)
Quem olhasse para o céu naquele instante contemplaria uma escuridão “impenetrável como o bronze”.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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