Até aqui se fez referências aos três romances epistolares que foram objetos de estudo de Lynn Hunt para parte de seu “A Invenção dos Direitos Humanos”... Vimos que as leituras de “Júlia”, “Pâmela” e “Clarissa” contribuíram significativamente para o desenvolvimento de empatia que, por sua vez, “semeou” a discussão em torno dos “direitos humanos”.
(...)
Jacques-Pierre Brissot, abolicionista e agente político
revolucionário girondino, sempre citava “Júlia” em suas conversas e discursos...
Para ele, o principal romance inglês era “Cecília”, de 1782, escrito por Fanny
Burney. Isso mostra que também as escritoras tinham seus entusiastas.
Temos de considerar que não eram apenas as “heroínas”
que atraíam o público leitor e sensibilizado com a condição dos seus semelhantes,
pois alguns personagens masculinos também chamavam a atenção dos leitores. A
autora dá conta de que Thomas Jefferson, por exemplo, mostrava muito interesse
pelo Tristam Shandy, do romance biográfico (1759-67) de mesmo nome publicado
por Laurence Sterne. Em “Uma viagem sentimental” (1768), Sterne escreveu sobre
suas experiências de viagem pela Europa em forma de romance protagonizado por
Yorick (seu alter ego). Este também recebia especial atenção de Jefferson.
(...)
Mas
chegamos ao ponto em que se faz necessário problematizar a questão da condição
e lugar da mulher na sociedade ocidental do século XVIII... As três
protagonistas dos citados romances eram evidentemente moças criadas por autores
masculinos (Rousseau e Richardson).
O
importante aqui é destacar o fenômeno da “devoção às heroínas” dos livros destacados
em “A Invenção dos Direitos Humanos”.
A afinidade em relação a elas pode ter ocorrido por
causa do panorama concreto vivenciado pelas mulheres reais. As protagonistas
dos livros buscavam uma autonomia que todos sabiam impossível para as mulheres,
sempre submissas aos pais e aos maridos.
A
reflexão sobre os epílogos das novelas nos dá uma dimensão a respeito da
dramática jornada das heroínas e, por extensão, da condição de todas as mulheres
conhecidas dos leitores. Pâmela termina aceitando as limitações à sua liberdade
na medida em que aceita se casar e conviver com o sr. B.... Clarissa é levada
ao suicídio depois de se recusar casamento com Lovelace que a havia estuprado...
Júlia renunciou ao seu amor, se submeteu às imposições paternas, e na última
cena também morreu.
As
interpretações atuais podem mesmo relacionar esses trágicos finais a masoquismo
ou martírio... Mas os leitores do século XVIII veneravam as personagens porque entendiam
que elas tinham personalidade marcante e eram exemplos de força de vontade. O
público se interessava pelo modo como os livros evidenciavam o conflito entre os
desejos e vontades das heroínas com a repressão social.
A personalidade de Júlia revelava sua disposição para a
luta interior para manter-se virtuosa, ainda que isso significasse abandonar o
seu amor por Saint-Preux e devotar-se a Wolmar, como desejava o pai. Parece
claro que o exemplo de Pâmela só podia ser enaltecido, já que em sua luta
interior “para manter o seu senso de virtude e o seu senso de individualidade”
acabou conquistando a estima do sr. B.... Também Clarissa manteve-se firme ao
resistir às imposições da família e ao Lovelace, que abusou dela e que, depois apaixonado,
revelou-se disposto a se tornar seu marido.
Ressalta-se que em cada história prevalece a constante
busca das protagonistas por independência... A participação dos personagens
masculinos ainda mais realçava essa necessidade. Cada uma das tramas provocava a
empatia dos leitores, que passavam a sentir que “até as mulheres aspiravam uma
maior autonomia”... Eles “experimentavam imaginativamente o esforço psicológico
que a luta acirrava”.
(...)
A autonomia era, portanto, uma das preocupações culturais
dos romances do século XVIII...
Em
relação a este conceito, a autora destaca que ele foi fundamental para os
filósofos do Iluminismo... Eles se consideravam “pioneiros” na temática, e
quando tratavam da liberdade faziam referência à “autonomia individual”
enquanto capacidade e “liberdade de expressar opiniões ou praticar a religião
escolhida”, ou ainda a “independência ensinada aos meninos”, temática sobre a
qual muitos deles se debruçaram.
Mas isso é assunto para a próxima postagem.
Leia: A
Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto