segunda-feira, 30 de setembro de 2019

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – mais sobre a influência dos romances epistolares sobre personalidades dos movimentos sociais; Jefferson e o interesse também por personagens masculinos de Sterne; os dramas das heroínas dos romances do século XVIII e o lugar mesmo das mulheres reais na sociedade; sobre os epílogos, ansiedade pela autonomia e o interesse dos iluministas pela temática

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/09/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_44.html antes de ler esta postagem:

Até aqui se fez referências aos três romances epistolares que foram objetos de estudo de Lynn Hunt para parte de seu “A Invenção dos Direitos Humanos”... Vimos que as leituras de “Júlia”, “Pâmela” e “Clarissa” contribuíram significativamente para o desenvolvimento de empatia que, por sua vez, “semeou” a discussão em torno dos “direitos humanos”.
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Jacques-Pierre Brissot, abolicionista e agente político revolucionário girondino, sempre citava “Júlia” em suas conversas e discursos... Para ele, o principal romance inglês era “Cecília”, de 1782, escrito por Fanny Burney. Isso mostra que também as escritoras tinham seus entusiastas.
Temos de considerar que não eram apenas as “heroínas” que atraíam o público leitor e sensibilizado com a condição dos seus semelhantes, pois alguns personagens masculinos também chamavam a atenção dos leitores. A autora dá conta de que Thomas Jefferson, por exemplo, mostrava muito interesse pelo Tristam Shandy, do romance biográfico (1759-67) de mesmo nome publicado por Laurence Sterne. Em “Uma viagem sentimental” (1768), Sterne escreveu sobre suas experiências de viagem pela Europa em forma de romance protagonizado por Yorick (seu alter ego). Este também recebia especial atenção de Jefferson.
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Mas chegamos ao ponto em que se faz necessário problematizar a questão da condição e lugar da mulher na sociedade ocidental do século XVIII... As três protagonistas dos citados romances eram evidentemente moças criadas por autores masculinos (Rousseau e Richardson).
O importante aqui é destacar o fenômeno da “devoção às heroínas” dos livros destacados em “A Invenção dos Direitos Humanos”.
A afinidade em relação a elas pode ter ocorrido por causa do panorama concreto vivenciado pelas mulheres reais. As protagonistas dos livros buscavam uma autonomia que todos sabiam impossível para as mulheres, sempre submissas aos pais e aos maridos.
A reflexão sobre os epílogos das novelas nos dá uma dimensão a respeito da dramática jornada das heroínas e, por extensão, da condição de todas as mulheres conhecidas dos leitores. Pâmela termina aceitando as limitações à sua liberdade na medida em que aceita se casar e conviver com o sr. B.... Clarissa é levada ao suicídio depois de se recusar casamento com Lovelace que a havia estuprado... Júlia renunciou ao seu amor, se submeteu às imposições paternas, e na última cena também morreu.
As interpretações atuais podem mesmo relacionar esses trágicos finais a masoquismo ou martírio... Mas os leitores do século XVIII veneravam as personagens porque entendiam que elas tinham personalidade marcante e eram exemplos de força de vontade. O público se interessava pelo modo como os livros evidenciavam o conflito entre os desejos e vontades das heroínas com a repressão social.
A personalidade de Júlia revelava sua disposição para a luta interior para manter-se virtuosa, ainda que isso significasse abandonar o seu amor por Saint-Preux e devotar-se a Wolmar, como desejava o pai. Parece claro que o exemplo de Pâmela só podia ser enaltecido, já que em sua luta interior “para manter o seu senso de virtude e o seu senso de individualidade” acabou conquistando a estima do sr. B.... Também Clarissa manteve-se firme ao resistir às imposições da família e ao Lovelace, que abusou dela e que, depois apaixonado, revelou-se disposto a se tornar seu marido.
Ressalta-se que em cada história prevalece a constante busca das protagonistas por independência... A participação dos personagens masculinos ainda mais realçava essa necessidade. Cada uma das tramas provocava a empatia dos leitores, que passavam a sentir que “até as mulheres aspiravam uma maior autonomia”... Eles “experimentavam imaginativamente o esforço psicológico que a luta acirrava”.
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A autonomia era, portanto, uma das preocupações culturais dos romances do século XVIII...
Em relação a este conceito, a autora destaca que ele foi fundamental para os filósofos do Iluminismo... Eles se consideravam “pioneiros” na temática, e quando tratavam da liberdade faziam referência à “autonomia individual” enquanto capacidade e “liberdade de expressar opiniões ou praticar a religião escolhida”, ou ainda a “independência ensinada aos meninos”, temática sobre a qual muitos deles se debruçaram.
Mas isso é assunto para a próxima postagem.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

sábado, 28 de setembro de 2019

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – Henry Home e suas considerações positivas sobre os romances epistolares em “Elements of Criticism”; do transe provocado pela leitura e do entendimento que o mesmo nos leva a adotar uma boa conduta moral; Jefferson indica a leitura do texto de Home; disputa em torno dos fundamentos da vida secular; os novos sentimentos provocados pela leitura de ficções epistolares amadureceram as proposições em torno dos “direitos humanos”

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/09/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_28.html antes de ler esta postagem:

Em “Elements of Criticism”, de 1762, Henry Home (Lorde Kames) dispensa um tratamento filosófico às ditas leituras de ficção. O escocês, que era jurista e filósofo, dizia que a leitura dos romances criava o que ele chamava de “presença ideal” ou “sonho acordado” do leitor que, ao se aprofundar no texto, se sentia “transportado para as cenas descritas”.
Para Kames, a experiência era similar a um transe no qual o sujeito se via “lançado numa espécie de devaneio”, “perdendo a consciência do eu e da leitura, sua presente ocupação”, concebendo “todo incidente como se ocorresse na sua presença, precisamente como se ele fosse uma testemunha ocular”.
Vale destacar que também para este pensador, esse fato era imensamente positivo na medida em que promovia a moralidade, pois a dita “presença ideal” abria o leitor à reflexão sobre os sentimentos de identidade que envolvem a sociedade. Cada um que passasse pelo exercício da leitura intensa dos romances se enxergaria como que “arrancado de seus interesses privados” e, dessa forma, motivado a praticar “atos de generosidade e benevolência”. Essa “presença ideal” pode ser relacionada à ideia de “feitiço da paixão e do significado” aludida por Aaron Hill.
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Ao que tudo indica, Thomas Jefferson tinha opinião muito parecida...
“A Invenção dos Direitos Humanos” faz referência a um episódio em que Robert Skipwith (que se casara com a meia-irmã de Jefferson) lhe solicita uma lista de livros que ele não podia deixar de ler e que não podiam faltar em suas prateleiras...
Corria o ano de 1771... Jefferson escreveu uma carta a Skipwith e ao mesmo tempo elaborou a lista com vários títulos clássicos (da política, religião, ciência, filosofia e história) antigos e modernos.
Poesia, dramaturgia e romances constavam da lista. Autores como “Laurence Sterne, Henry Fielding, Jean-Fronçois Marmontel, Oliver Goldsmith, Rchardson e Rousseau” foram citados. Na sequência aparece o livro de Kames, “Elements of Criticism”.
Em sua missiva, Jefferson justificava “as diversões da ficção” com os mesmos argumentos de Kames, ou seja, a leitura dos romances permitiria “gravar na memória tanto os princípios como a prática da virtude”. Ele fez referência à própria experiência e garantiu que a leitura de textos de Shakespeare, Marmontel e Henry Home podia nos levar ao “forte desejo de praticar atos caridosos e gratos”. Insistiu ainda que as más ações ou condutas imorais que aparecem nas ficções nos levam à repugnância.
(...)
Neste ponto, Lynn Hunt esclarece que a discussão em torno das opiniões sobre os romances evidenciava “a valorização da vida secular comum como o fundamento da moralidade”.
Como vimos, os que defendiam os romances entendiam que eles podiam contribuir para que os indivíduos se tornassem melhores em sua “natureza interior” e, dessa forma, colaborariam para a organização de “uma sociedade mais moral”. Já os que criticavam (especificamente os romances epistolares), insistiam que a simpatia que os textos promoviam às “heroínas” só podia estimular “o que havia de pior” nas pessoas: “desejos ilícitos e autorrespeito excessivo”, o que resultava em “degeneração do mundo secular”.
Os defensores dos romances entendiam que a ”natureza interior” dos que formam a sociedade constituída é ponto de partida e “base para a autoridade social e política”. Nesse sentido, podemos dizer que, para eles, Richardson e Rousseau forneciam elementos essenciais para um cotidiano calcado na valorização do próximo... Mais ou menos como sugerem as religiões.
Como vimos no início dessas postagens, os “novos sentimentos” possibilitaram o amadurecimento das proposições em torno de “direitos humanos”, pois as pessoas passaram a entender as demais “como seus iguais” e “semelhantes em algum modo fundamental”.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – Diderot e sua apologia a Richardson e aos seus livros; fragmentos diversos; o leitor, sua “inserção” na obra, identificação e empatia; uma “conscientização para o bem”

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/09/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_27.html antes de ler esta postagem:

Diderot, que também escrevia romances além de ser conhecido por redigir o texto sobre “Direito Natural” para a “Enciclopedia”, foi um dos grandes defensores da obra de Richardson.
No ano da morte do escritor inglês, 1761, Diderot redigiu e manifestou uma apologia na qual comparava Richardson a espetaculares autores da antiguidade (Moisés, Eurípedes e Sófocles). Especificamente sobre o quanto o texto de Richardson introduzia o leitor no enredo e o levava a adotar juízos, Diderot destacou que:

                   “Apesar de todas as precauções, assume-se um papel nas suas obras, somos lançados nas conversas, aprovamos, censuramos, admiramos, ficamos irritados, sentimos indignação.”

Na sequência, o filósofo e escritor francês confessa que ele mesmo não conseguia se conter ao ler os episódios e por isso reagia como se estivesse vivendo aquele mundo de tensões criado pelo autor: “Quantas vezes não me surpreendi gritando, como acontece com as crianças que foram levadas ao teatro pela primeira vez: ‘Não acredite, ele está enganando você. (...) Se você for lá, estará perdido’”.
Como que a justificar as próprias reações à escrita de Richardson, Diderot admitia que: “Os seus personagens são tirados da sociedade comum (...) as paixões que ele pinta são as que sinto em mim mesmo”.
(...)
Alguém aí poderia dizer que Diderot não se referia diretamente à “identificação” ou à “empatia”... E está correto, pois ele não usa tais termos. Todavia suas palavras definem perfeitamente os dois conceitos...
Isso se evidencia na medida em que ele admite que todo leitor se reconhece nos personagens ao mesmo tempo em que sente e percebe os seus mesmos sentimentos (naqueles descritos pelo autor). Isso é a empatia por alguém que, nesse caso, por motivos óbvios, jamais terá qualquer contato físico conosco! E há que se ressaltar que o leitor passa a se enxergar no próprio personagem, pois com ele se identifica.
E não é essa mesma a manifestação que vimos em (https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/09/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_23.html) quando Panckoucke confessou a Rousseau que sentia passar pelo próprio coração “a pureza das emoções de Júlia”?
A identificação leva os leitores à empatia... Outras passagens do texto-manifesto de Diderot ainda mais evidenciam isso:

                   “No espaço de algumas horas, passei por grande número de situações que a mais longa das vidas não pode nos oferecer ao longo de sua total duração. (...) Senti que tinha adquirido experiência” (...) “Tive a mesma sensação que experimentam os homens que, intimamente entrelaçados, viveram juntos por um longo tempo e agora estão a ponto de se separar. No final tive de repente a impressão de que haviam me deixado sozinho”.

Podemos dizer que enquanto esteve envolvido com a leitura, Diderot sentiu-se diante do “próprio eu”. Terminada a leitura, sente-se como que “abandonado” ou “solitário”... Mas essa experiência certamente contribui para a percepção da individualidade dos demais. Sem dúvida, esse “sentimento interior” foi condição fundamental para a reflexão em torno dos “direitos humanos”.
Ainda a respeito dos argumentos de Diderot em defesa de Richardson e do gênero literário ao qual se dedicou, precisamos destacar o quanto o francês valorizou a contribuição do romance na “conscientização para o bem”:

                   “Nós nos sentimos atraídos para o bem com uma impetuosidade que não reconhecemos. Quando confrontados com a injustiça, experimentamos uma aversão que não sabemos explicar para nós mesmos”.

Obviamente o romance de Richardson não era nenhum “tratado de moral”, mas, indiretamente, pelo modo como conseguia envolver os leitores na narrativa, exercia o efeito evidenciado anteriormente por Diderot.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – “editores” da publicação das cartas em vez de autores; longo título, trecho do prefácio da primeira edição de “Pâmela” e garantia de boa instrução às mentes jovens; Rousseau admite que seu livro se trata de um romance e polemiza logo na introdução

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/09/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_25.html antes de ler esta postagem:

Ao se assumirem como editores, em vez de autores, Richardson e Rousseau atribuíam o conteúdo das polêmicas cartas que constavam em seus romances às heroínas protagonistas. De certo modo isso tinha o efeito de mantê-los mais distantes das críticas e reputação duvidosa que atribuíam aos livros.
Richardson não se referia ao “Pâmela” como um romance. Como se antecipasse às críticas e a todo tipo de repercussão negativa, cravou no título da obra (em sua primeira edição) uma extensa descrição tal como segue e foi registrada em “A Invenção dos Direitos Humanos”:

                   “Pâmela: Ou a virtude recompensada. Numa série de cartas familiares de uma bela donzela a seus pais; agora publicadas pela primeira vez para cultivar os princípios da virtude e religião nas mentes jovens de ambos os sexos. Uma narrativa que tem o seu fundamento na verdade e na natureza; e ao mesmo tempo em que agradavelmente entretém, por uma variedade de incidentes curiosos e patéticos, é inteiramente despida de todas aquelas imagens que, em muitas obras calculadas apenas para a diversão, tendem a inflamar as mentes que deveriam instruir”.

Também no prefácio, o “editor das cartas” apresentou suas justificativas ressaltando o caráter moral... Garantiu que as missivas instruiriam e aperfeiçoariam as mentes dos mais jovens, além disso, religião e moralidade seriam inculcadas em suas consciências ao mesmo tempo em que, nelas, os vícios seriam reconhecidos “em suas cores apropriadas”.
(...)
Apesar de também se apresentar como “editor da publicação das cartas” de seu “Júlia”, diferentemente de Richardson, Rousseau classificava o seu livro como romance.
Logo no início do prefácio, o autor iluminista polemiza com a frase “As grandes cidades devem ter teatros; e os povos corruptos, Romances”. Na sequência, Rousseau apresenta um diálogo sobre “Romances” entre um “Editor” e um “Homem de Letras”. No trecho há considerações de certo “R” (que ao que tudo indica só pode ser o próprio Rousseau) sobre as acusações que imputam aos romances de um modo geral... Sobretudo aquelas que atribuem ao gênero literário o jogo perigoso de “brincar com a imaginação para criar desejos que os leitores não podem satisfazer virtuosamente”.
O livro cita um fragmento do referido prefácio que ilustra bem o anteriormente citado:

                   “Escutamos que os Romances perturbam as mentes das pessoas; posso muito bem acreditar. Ao dispor interminavelmente diante dos olhos dos leitores os pretensos encantos de um estado que não é o deles, eles o seduzem, levam-nos a ver o seu próprio estado com desprezo e trocam-no na imaginação por um estado que os leitores são induzidos a amar. Tentando ser o que não somos, passamos a acreditar que somos diferentes do que somos, e esse é o caminho para a loucura”.

Como vimos, apesar da observação polêmica, Rousseau anunciou o seu livro como um romance... Para muitos isso seria uma indicação de provocação... Tanto é que ele mesmo admitiu que suas ideias escandalizariam os críticos. A esse respeito, garantia que eles até poderiam criticá-lo por escrito, mas deviam fazer isso a outras pessoas, e não diretamente a ele, porque jamais teria qualquer estima por alguém que discordasse das considerações reveladas no prefácio de “Júlia”...
Isso à parte, podemos concluir que Rousseau esperava “reações violentas” de seus leitores.
(...)
Apesar das evidentes preocupações dos autores (talvez seria melhor dizer “editores das cartas”) com a própria reputação após o lançamento dos romances, vimos que alguns críticos vinham se posicionando favoravelmente... Sarah Fielding e Von Haller fizeram isso em relação ao “Clarissa” de Richardson. E admitiram mesmo que o livro propiciava aos leitores uma compreensão melhor dos seus semelhantes.
Na próxima postagem conheceremos um pouco das ideias de Diderot sobre a escrita de Richardson.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – críticas dos protestantes ingleses, e em particular as de Vicesimus Knox, aos romances epistolares; fragmentos de “Lady’s Magazine” contrários ao “Pâmela”; o médico suíço Samuel-Auguste Tissot e suas considerações sobre os prejuízos da masturbação aos organismos excitados pelas leituras dos romances epistolares; das relações entre o aumento dos casos de ultrajes à moral e o crescimento das publicações de romances na Inglaterra da segunda metade do século XVIII

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/09/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_90.html antes de ler esta postagem:

Também os protestantes da Inglaterra redigiram críticas e fizeram discursos contra os romances epistolares... “A Invenção dos Direitos Humanos” destaca as palavras do reverendo Vicesimus Knox em fins da década de 1770... Para ele, os referidos livros desviavam os jovens das leituras mais sérias e edificantes. Aqueles romances que colocavam em destaque os desencantos de moças comuns transformadas em heroínas só podiam levar os leitores à degeneração e a “prazeres culpados”! O religioso salientava que os britânicos cumpriam o feio papel de “disseminar hábitos libertinos franceses” entre os jovens do Reino.
Especificamente sobre os livros de Richardson, Knox afirmava que eles haviam sido redigidos com “as intenções mais puras”, o problema é que determinadas cenas narradas certamente levavam os leitores à excitação de sentimentos que nada tinham de virtuosos.
Neste ponto o texto há uma citação de “Lady’s Magazine” de 1771 cujo conteúdo reforçava o desprezo pelo “Pâmela”, de Richardson:


“Pâmela, só de nome,
Mais não conheço;
Como romances odeio,
Minha mente é sem defeito”

(...)
Não foram poucos os que se colocaram contra os romances por entenderem que seu conteúdo tinha potencial para gerar descontentamentos entre criados e moças em geral.
Samuel-Auguste Tissot, médico suíço, levantou críticas ainda mais radicais. Ele entendia que aquele tipo de leitura podia levar as pessoas a se masturbarem, e isso podia provocar “degeneração física, mental e moral”.
Para o médico, os organismos tendem a se deteriorar naturalmente... Mas ele salientava que, tanto para homens quanto para as mulheres, a masturbação fazia com que esse processo avançasse descontroladamente.
O livro cita alguns fragmentos de Tissot nos quais são apontadas situações em que as pessoas corriam mais riscos de se entregarem à citada degeneração:

                   “Só o que posso dizer é que o ócio, a inatividade, ficar tempo demais na cama, uma cama que seja demasiado macia, uma dieta rica, picante, salgada e cheia de vinhos, amigos suspeitos e livros licenciosos são as causas mais propensas a gerar esses excessos”.

Lynn Hunt ressalta que “licenciosos” aí relaciona-se mais a “erótico”, e não necessariamente a “obsceno”. Ela lembra que os romances do século XVIII eram geralmente “histórias de amor” e, assim sendo, invariavelmente classificavam-nos como “licenciosos”.
As advertências a respeito da “leitura indevida” dos romances recaíam normalmente sobre as moças que viviam em internatos... Acreditava-se mesmo que elas eram as que mais corriam perigo, já que conseguiam os “livros imorais e repugnantes” e os liam em suas camas.
(...)
Do exposto até aqui, fica a ideia de que para os religiosos, e também para alguns médicos, a leitura dos romances epistolares levava à “perda de tempo, de fluidos vitais, de religião e de moralidade”. Muitos entendiam que as leitoras, principalmente as mais vulneráveis, estariam propensas a se deixarem levar pelo exemplo das heroínas... Imitariam suas ações e certamente se arrependeriam no futuro, quando já “seria tarde demais”.
No caso da leitura de “Clarissa”, por exemplo, os críticos acreditavam que as jovens poderiam ignorar os conselhos e desejos da família... Poderiam mesmo chegar à conclusão de que a personagem agira corretamente ao fugir com um devasso.
Ainda sobre as considerações anteriores, em 1792 um crítico inglês escreveu anonimamente que o aumento dos casos de prostituição, adultério e de “fugas” por todo o Reino podia estar relacionado à disseminação dos romances. Esse entendimento estava em consonância com a máxima de que “os romances estimulavam exageradamente o corpo, encorajavam uma absorção em si mesmo moralmente suspeita e provocavam ações destrutivas em relação à autoridade familiar, moral e religiosa”.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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