sexta-feira, 31 de março de 2017

“Minha Vida de Menina”, de Helena Morley – da observação do céu para se conhecer a “hora do dia”; o canto dos galos, a “hora da noite” e prenúncios folclóricos; os registros de 5 de novembro de 1893; a missa das quatro da madrugada na igreja da Sé

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Na região de exploração de pedras preciosas, e certamente em várias partes do Brasil de fins do século XIX, havia quem acreditasse que o canto do galo em determinados momentos do dia fosse prenúncio de que algo (bom, ruim ou escandaloso) estava para ocorrer.
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Entendia-se que o cantar do galo, além de anunciar as horas, “denunciava”...
Todos conheciam bem o episódio sempre lembrado na Semana Santa em que, depois de Jesus ter sido entregue aos seus algozes, por três vezes o apóstolo Pedro o renegou.  Isso ocorreu antes do cantar do galo, como havia sido antecipado ao apóstolo pelo próprio Jesus.
Ao ouvir o galo, Pedro sentiu-se envergonhado. Amava o mestre, mas sua própria fraqueza o levara a renegá-lo.

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Em Diamantina, as pessoas levavam a sério o canto do galo e acreditavam que o cacarejar específico do “despertar da aurora” jamais falhava.
Até hoje há os que garantem que podem informar as horas da alta madrugada porque sabem ouvir os galos e outros bichos da noite.
Não se pode desprezar o conhecimento que emerge do cotidiano da gente simples. Evidentemente é daí que desponta a riqueza de nosso folclore.

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Em seus escritos de 5 de novembro de 1893, Helena explica que muita gente já não dava crédito aos dizeres populares a respeito do canto do galo. Dizia-se por exemplo que quando a ave cantava às nove horas era sinal de que alguma moça estava fugindo de casa para se casar.
Ela desconfiava... Sempre ouvia o galo cantar às nove, mas ninguém dava notícias de moças fugindo do convívio dos familiares.
Helena garantia que quando morava na Boa Vista, as pessoas olhavam para o céu, verificavam a posição do sol e informavam as horas. Muitas vezes, depois de ouvir os mineiros mais simples das lavras, ela confirmava a informação em “relógios de verdade”. Ficava encantada ao saber que eles tinham razão.
É por isso que em seus tempos de infância acreditava em ”hora do galo”. Assim como o sol marcava as horas do dia, o galo marcava as horas da noite.
(...)
Todavia, aos treze anos, ela começava a entender que era perigoso tomar o canto do galo como referência para certos compromissos do dia-a-dia. As pessoas podiam ser levadas a cometer enganos desagradáveis.
Foi o que ocorreu naquele domingo...
Dona Carolina acordava as filhas um pouco antes das quatro da manhã (isso mesmo) para se encaminharem à missa da madrugada. Na ocasião, Helena protestou ao dizer que não era possível que já fossem quatro horas, pois sentia que fazia pouco tempo que estava dormindo.
A mãe insistiu e explicou que ela podia dormir após a missa porque o galo já havia cantado duas vezes. Estavam mesmo no horário! Então o único remédio era desafiar a sonolência e se preparar para a celebração.
Helena obedeceu, lavou o rosto e se arrumou. O café já estava coado. Logo saíram.
No caminho, ela observou a rua deserta, olhou a lua e as estrelas. Observou que talvez o galo tivesse “errado a hora dessa vez”. Dona Carolina não lhe deu ouvidos e seguiu conduzindo as duas filhas, cada uma por um braço.
Ao passarem pelo quartel, o soldado quis saber o que a mulher fazia com as duas meninas àquela hora na rua. Dona Carolina respondeu que iam à missa da igreja da Sé. Então o moço respondeu que ainda era meia-noite e pelo que sabia não era véspera de Natal.
(...)
O soldado falou rispidamente e isso deixou Helena assustada.
Dona Carolina mostrou-se admirada com a informação e disse que pensava que fossem quatro horas. Agradeceu e puxou as meninas de volta para casa.
As três deitaram-se vestidas como haviam saído. Dormiram novamente e perderam a hora da missa.
Chegaram à igreja quando o “Padre Neves já estava nas ave-marias”.
Leia: Minha Vida de Menina. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quinta-feira, 30 de março de 2017

“Minha Vida de Menina”, de Helena Morley – o aniversário de Siá Aninha – segunda parte; Helena na mesa “mais bem servida” da festa; discurso do padre e situação vexatória provocada pelo professor Leivas; seu Antônio do Rego, o comilão que sabia remediar “situações calamitosas”; registros de 5 de novembro de 1893; de relógios e de “tempo da natureza”

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O jantar em homenagem à Siá Aninha foi dos mais concorridos e animados. O padre Augusto compareceu e recitou versos que desejavam saúde à aniversariante.
Helena estava na primeira mesa, onde os pratos e copos eram muito bem servidos. Seu Antônio do Rego, conhecido como “o maior comilão da cidade” estava numa das cadeiras.
Quem também marcava presença na “mesa preferencial” era o professor Leivas, que lecionava na escola onde Helena estudava. O pobre homem tinha a fama de embriagar-se nas festas das quais participava. Dizia-se que ele sempre acabava “bicudo” (que era como chamavam os bêbados).
(...)
Aconteceu que após as palavras do padre, Helena olhou para o professor e viu que ele estava com as bochechas cheias e de boca fechada. O tipo estava fazendo uma “careta muito engraçada”.
A menina não conseguiu parar de encará-lo e não pôde conter o riso. Sua gargalhada tornou-se ainda mais inevitável depois que notou o seu Antônio do Rego preocupado em retirar a travessa de lombo de porco com batatas que estava à sua frente. Ele simplesmente escondeu-a debaixo da mesa!
Só depois de algum tempo é que Helena entendeu o motivo daquele procedimento. O professor encheu ainda mais as bochechas até que “dois esguichos de cerveja” escaparam de seu nariz e emporcalharam a mesa e os demais pratos.
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A cena degradante era também muito engraçada.
O professor foi levado para outro cômodo enquanto outra toalha era providenciada para a mesa. Com ares de “salvador da pátria”, seu Antônio do Rego recolocou a travessa e disse que pelo menos aquele prato estava salvo. O melhor que tinham a fazer, emendou, era comê-lo antes que o Leivas voltasse.
Helena explica que não teve mais condições de continuar a comer. Não era apenas pela repugnância provocada pela embriaguez do professor. O caso é que ela não conseguiu parar de rir da confusão e do modo como os adultos se arranjavam para “remediar imprevistos”.
Depois de saciados, começaram a “cantar os coretos” (que eram cantigas típicas de reuniões festivas como aquela).
Os doces estavam dispostos num cômodo separado. Helena se retirou depois que certo Caetaninho do Palácio a convidou para experimentar do manjar e da geleia que ele mesmo havia feito e guardado especialmente para ela.

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Também o registro de 5 de novembro de 1893 apresenta uma situação muito engraçada.
Helena começa explicando que apenas os homens usavam relógios. As pessoas que moravam na cidade não sentiam a menor falta do acessório porque a maioria das igrejas tinham relógio numa de suas torres.
Logo que ela e Luisinha chegavam da escola, dona Carolina sabia que estava na “hora do almoço”. À tarde nenhum dos filhos se esquecia da “hora de jantar”. Como a vida que levavam era das mais simples, pode-se dizer que os relógios não lhes eram necessários.
Mas era certo que quando o pai de Helena estava com a família ninguém se confundia com as horas. Como ele passava a maior parte do tempo trabalhando na lavra, algumas vezes dona Carolina fez confusão com alguns horários.
(...)
A casa ficava próxima ao quartel, então ouvia-se a corneta de hora em hora até às nove da noite. Depois a boa mulher contava com sinais da natureza, principalmente o canto do galo.
Não foram poucas as vezes que dona Carolina se equivocou por causa dos galos que “erraram no horário que deviam cantar”.
Evidentemente isso proporcionou boas histórias. Uma delas ocorreu na madrugada de 5 de novembro de 1893, um domingo.
Leia: Minha Vida de Menina. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quarta-feira, 29 de março de 2017

“Minha Vida de Menina”, de Helena Morley – registros de 6 de julho de 1893 – um dia na casa de tia Aurélia; ajudando os primos a fazer doces para vender atrás da Sé; fiasco da receita e irritação de João Afonso; três pés-de moleque com qualidade suspeita vendidos a cem réis; registros de 24 de julho de 1893 a respeito do aniversário de Siá Aninha – primeira parte

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No registro de 6 de julho de 1893, Helena apontou que num dos dias passados estivera com Luisinha na casa da tia Aurélia.
As duas tiraram umas horas para brincar com as primas. Helena destaca que a casa da tia ficava na cidade. Como já foi destacado na postagem anterior, tio Conrado era muito rigoroso com os filhos. Eles não podiam brincar na rua e para complicar ainda mais, a casa deles sequer tinha jardim.
A brincadeira das meninas resumia-se a “dar comidinha para as bonecas” o dia inteiro. Helena confessa que, aos treze anos, já não tinha o menor interesse nesse passatempo. Por isso ficou com os primos mais velhos que se inspiravam na própria mãe e faziam doces para vender.
(...)
Dona Aurélia arranjou dinheiro para os dois. João Afonso comprou amendoim, Sérgio comprou coco. Helena se divertiu ajudando-os. O primeiro pôs-se a fazer pés-de-moleque enquanto que o outro parecia levar jeito na confecção de cocadas.
As cocadinhas ficaram boas. Mas João não conseguiu acertar o seu doce, que parecia não ter a liga ideal. Era visível que o ponto não tinha ficado bom, então os demais experimentaram e passaram a caçoar e dar boas risadas da situação.
João irritou-se e subiu na mesa para espezinhar o resultado de seu esforço tão logo notou que as cocadas estavam prontas para serem vendidas.
Helena e Sérgio convenceram-no a deixar de nervosismo e que melhorasse o melado. As pessoas que comprassem não teriam a menor ideia do que tinha ocorrido... Ele se convenceu depois que lhe disseram que “o que os olhos não veem o coração não sente”.
O doce foi colocado novamente no tacho. O rapaz requentou a mistura e mexeu até que acertasse o ponto. Depois voltou a despejá-la na mesa para cortar no tamanho adequado. Todos notaram que a correção se dera em bem-sucedida. Então o rapaz organizou tudo numa bandeja e entregou à Delmira, que era a negra encarregada de vender as quitandas atrás da igreja da Sé. Cada doce era vendido por “um cobre”, três doces saíam por “cem réis”.
(...)
Os primos se posicionaram na sacada para observar a movimentação em torno da bandeja de Delmira. Eles queriam ver se as pessoas comeriam os pés-de-moleque que tinham sido pisoteados pelo João.
O rapaz não conseguia esconder o seu nervosismo a cada vez que isso acontecia. Andava de um lado para outro e desejava que a negra trouxesse os doces de volta. Se doía de remorso e dizia que sua maldade o levara a cometer um pecado. 
Aconteceu que Helena se divertiu com aquilo tudo. Com a ajudo dos demais, convenceu-o a aceitar que “porcaria cozida não faz mal”.
Afinal, quem se importava com aquilo?


(...)

Os registros do dia 24 de julho de 1893 fazem referências a um jantar de aniversário que ocorrera no dia anterior, um domingo.
No momento mesmo em que escrevia, Helena manifestava sua satisfação por poder relatar em seu diário os episódios que vivenciava. Dava razão ao pai, que a incentivara a escrever também para guardar as recordações.
Poderia guardar na memória casos tão engraçados como o que havia assistido no aniversário de Siá Aninha? Concluiu que pelo menos teria motivos para boas gargalhadas quando retomasse o caderno no futuro.
(...)
A aniversariante convidou dona Carolina para o jantar e salientou que levasse também os filhos, pois haveria muita comida.
De fato, seu Antônio Manuel costumava caprichar quando recebia as pessoas em sua casa.
Helena não esconde que nessas ocasiões aproveitava o mais que podia e, esperta como ela só, sentou-se à primeira mesa, “onde tudo é melhor”.
Tratou de não chamar a atenção de ninguém e permaneceu quieta junto aos que tinham fama de bons comedores e bebedores.
Foi assim que acabou presenciando situações nunca imaginadas por ela ou pelas colegas de escola.
Leia: Minha Vida de Menina. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

segunda-feira, 27 de março de 2017

“Minha Vida de Menina”, de Helena Morley – registros de 22 de abril de 1893 – o feriado de 21 de abril; passeio com os primos e os tios Conrado e Aurélia na Prata; das diferenças entre os modos de ser dos primos e primas; Deus “castiga a gente educada”; lições de Renato para uma boa pescaria

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Os registros de 22 de abril de 1893 dão conta de como Helena e Luisinha passaram o feriado do dia anterior*.

                  * o 21 de abril em homenagem ao herói da Inconfidência Mineira, o Tiradentes condenado à morte em 1792, havia sido instituído em 1890.

Conrado e Aurélia, os tios, as convidaram a passar o dia numa localidade conhecida como Prata. A menina destacou que a paisagem era das mais agradáveis, com um rio “encachoeirado” e vários sítios para passear.
Infelizmente para elas, o tio Conrado não permitia que seus filhos (e também as duas) andassem descalços rio abaixo, subissem nas árvores ou procurassem gabirobas e outras frutas em locais mais afastados.
“Não se pode fazer nada”! Assim Helena sintetizava as proibições impostas pelo tio.
O que levava as garotas a toparem passar o dia com aquela família era o fato de tia Aurélia ser quituteira das boas. Ela fazia doces tão bons quanto os de Siá Generosa.
Se não podiam se divertir como queriam, pelo menos aproveitavam os “bolos, pastéis, craquinéis e tudo do que a tia fazia para vender”.
(...)
Outra reclamação de Helena era a pescaria que o tio Conrado proporcionava. As crianças tinham de se comportar à beira do rio e não podiam falar. O menor movimento que faziam era motivo de advertência!
O tio levava a sério a pesca do lambari e organizava uma bela tralha com muitas varas e anzóis. Mas os peixes sequer “beliscavam a isca”!
Neste ponto de suas considerações, Helena afirma que gostaria que os tios, primos e primas fossem passar um dia de “passeio no campo” com seus pais no Rio Grande. Evidentemente seu Alexandre e dona Carolina eram mais tolerantes em relação ao divertimento dos filhos.
Ao comparar as duas famílias, Helena lamenta o fato de as primas terem “um pai tão metódico”, como elas mesmas diziam. O seu dia-a-dia era marcado por regras e horários para tudo. Elas tinham de ter muito cuidado com o modo de falar e como se comportavam.
(...)
Primos e primas observavam que os pais de Helena e Luisinha não lhes davam da educação que eles estavam habituados, mas sempre as convidavam para os passeios.
Ela confessa que ao final de “um dia de lazer” com os primos e familiares ficava mais cansada do que se tivesse trabalhado o tempo inteiro, de tanto que tinha de fingir-se educada perto deles.
Helena sentia pena das primas e primos... Era bem provável que eles também tivessem pena dela e de seus irmãos por causa de seu modo de ser.
(...)
Não devia ser nada fácil para a garota definir um juízo a respeito de quem estava certo naquela história. Todavia ela concluía que “Deus castiga gente educada”.
A esse respeito, Helena argumentava que nunca vira o tio Conrado levar para casa um lambari sequer depois de uma de suas pescarias. Também os primos não conseguiam capturar passarinhos em suas armadilhas.
Bem o contrário era o que acontecia quando ela e os irmãos iam passear pelo campo. Renato e Nhonhô pegavam tantos lambaris e bagres que até vendiam alguns... Também traziam muitos passarinhos para casa (pintassilgos, curiós e muitos outros).
Certa vez Renato explicou-lhe por que o tio Conrado não conseguia pescar os lambaris. O rapaz disse que provavelmente ele insistisse em colocar no anzol uma bolinha de algodão envolvida num “angu de farinha de mandioca”. Os peixes “não são bobos”, gostam de minhoca e não dão a mínima atenção para esse tipo de massa.
Leia: Minha Vida de Menina. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

domingo, 26 de março de 2017

“Minha Vida de Menina”, de Helena Morley – registros de 13 de junho de 1895 – as quatro filhas do velho Botelho passaram viver na mesma rua de tia Agostinha; o estranho caso da morte e ressureição de Donana

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Depois daquela história da “ressurreição do rajá” (postagem de 25/março de 2017) que aparece em “A Volta ao Mundo em Oitenta Dias”, de Júlio Verne, deu vontade de voltar a tratar do diário de Helena Morley. Especificamente dos registros de 13 de junho de 1895.
(...)
Ela explica que fazia pouco tempo que uma nova família passara a viver numa casa na localidade do “Jogo da Bola”, que era como um bairro mais afastado.
A casa ficava na mesma rua da tia Agostinha. Sabia-se que quatro moças moravam nela, mas ninguém as conhecia muito bem. O pai delas era certo Botelho, fazendeiro no Serro, e por isso tornou-se comum referirem-se a elas como “as Botelhos”.
Chamava a atenção o fato de passarem a maior parte do tempo na janela. Tudo indicava que não tinham nenhuma ocupação regular já que à tarde costumavam acomodar-se na calçada para passar o tempo.
Não se pode dizer que fossem orgulhosas, pois sempre que eram cumprimentadas respondiam “de cara aberta”.
(...)
Somos levados a entender que o seu Botelho era “homem de fazenda” porque não era visto na cidade.
Helena explica que uma das moças era rica e que as outras três viviam às custas dela. Elas eram “solteironas e pobres. A rica se chamava Donana (dona Ana), era a mais velha e também mais gorda.
Depois de algum tempo, as moças se habituaram de tal forma aos cumprimentos de Helena e da tia Agostinha que sempre que elas passavam em frente à casa trocavam umas poucas palavras... As irmãs convidavam-nas a entrar, mas as duas sempre recusaram.
(...)
Aconteceu que numa das tardes Helena e a tia notaram que a casa das irmãs estava com uma “armação de defunto” (panos pretos com rendados dourados caíam dos portais).
Tia Agostinha achou que faziam bem em entrar. Helena não alimentava nenhum tipo de rejeição aos velórios e outros cerimoniais fúnebres... Pode-se dizer mesmo que ela não perdia esse tipo de ocasião. Também por isso concordou com a tia no mesmo instante.
Entraram na casa das Botelhos e viram a irmã rica estendida no caixão. Elas não puderam deixar de notar que a moça parecia dormir muito sossegadamente, seu aspecto era tão bom que foi difícil crer que ela estivesse morta.
As três outras explicaram que a mais velha morreu de um “sono pesado” porque dormiu e não acordou mais. Para Helena, as moças falavam com tanta desenvoltura “que nem parecia que havia morte em casa”.
Depois que saíram, a tia Agostinha comentou que aquela alegria toda só podia ser porque as irmãs mais novas sabiam da riqueza que a defunta deixaria... E emendou que “o dinheiro é que tira o sentimento das famílias”.
(...)
No dia seguinte não houve nenhum sepultamento. Sem dúvida, algo muito estranho... Sobretudo porque na casa das Botelhos o pano preto tinha sido retirado. Helena queria saber o que elas tinham feito do cadáver. Aquilo não podia ficar sem uma explicação!
(...)
A curiosidade de Helena a levou a passar novamente em frente à casa das Botelhos. É bem provável que sua tia Agostinha a acompanhasse porque ela registrou sem eu diário que “estávamos com os olhos pregados na casa” para conferir a verdade a respeito daquele mistério.
Por sorte, a cozinheira saía naquele mesmo instante. Helena a abordou, cumprimentou-a e quis saber por que não houve enterro. A mulher mostrou-se espantada com a pergunta porque àquela altura todos já sabiam os motivos.
A cozinheira explicou que “siá Donana tornou a viver”. Helena perguntou como aquilo era possível. Um tanto confusamente, a mulher respondeu que Donana ‘tava morta, mas não ‘tava... Completou dizendo que “parecia que ‘tava”.
Naturalmente a pobre mulher tinha opinião a respeito do que ocorrera, mas não se sentia confortável para falar... Disse que aquilo só podia ser “coisa feita”.
Justificou-se ao perguntar se Helena já vira um morto escutar o que os vivos “‘tão falando”.
Foi a própria Donana quem disse que do caixão podia ouvir as irmãs brigarem por causa de seus bens (vacas, prata e tudo o mais). Donana podia ouvir, mas não podia reagir, então ficava muito nervosa, embora permanecesse num estranho estado de pesado sono.
Quando o enterro estava para sair, um dos homens deixou escapar um dos lados do pesado caixão. Quando ele bateu no piso, a defunta despertou.
A cozinheira disse que o susto de Donana ao “reviver” deve ter sido muito maior “do que o da morte”. Logo que despertou, passou a discutir com as irmãs e as expulsou da casa por causa do interesse delas apenas em suas coisas de valor.
O seu Botelho já havia sido chamado para levá-las para a fazenda. Donana preferia viver sozinha. Enquanto isso, as malvadas permaneciam trancadas no quarto e não saíam nem mesmo para se alimentar.
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Um abraço,
Prof.Gilberto

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