quinta-feira, 30 de setembro de 2021

“1984”, de George Orwell - o cansaço de todos ao fim da Semana de Ódio; o livro enviado por O’Brien já estava com Winston há seis dias; discurso de ódio numa praça de Londres no sexto dia das festividades, intensa participação dos estudantes ligados aos Espiões, anúncio da guerra contra a Lestásia e louca agitação da multidão contra as faixas e cartazes “adulteradas” pelos agentes de Goldstein


A “Semana do Ódio” foi de muito trabalho para todos... Winston sentiu-se esgotado e ele comparava a própria debilidade à da consistência de uma gelatina. Percebeu que os sentidos estavam mais aguçados pelo esgotamento físico. O macacão pesava mais do que o normal sobre os ombros, e o simples caminhar ou o abrir e fechar as mãos eram-lhe doloridos demais. E não era para menos, já que o pessoal do Ministério da Verdade trabalhou por mais de noventa horas durante cinco dias. Ao final das atividades todos receberam a merecida folga...
Estando livre de novas tarefas, pelo menos até a manhã do dia seguinte, Winston calculou que “podia passar seis horas no esconderijo e nove na própria cama”.
Escolheu uma rua das emporcalhadas para encaminhar-se à lojinha do Senhor Charrington. Caminhou prestando atenção à movimentação geral, sobretudo para certificar-se de que não havia nenhuma patrulha em ação.
Talvez pelo cansaço extremado e pelo excesso de atividades da “Semana do Ódio”, não considerou sinceramente que fosse enquadrado por agentes da repressão enquanto seguia para o refúgio. Em vez disso, seu pensamento voltava-se principalmente ao formigamento que sentia na perna devido às batidas de sua pasta conforme caminhava.

(...)

Neste ponto é bom que se saiba que na pasta ia livro enviado por O’Brien e que, mesmo estando há seis dias em sua posse, sequer o abrira. Também é importante sabermos como o material chegou-lhe às mãos.
A “Semana do Ódio” já estava no sexto dia... O evento havia sido marcado por “discursos, gritaria, cantoria, bandeiras, cartazes, filmes, esculturas em cera, rufar de tambores e guinchar de clarins, reboar de pés em marcha, ronco das esteiras dos tanques, zumbido dos aviões no ar, troar dos canhões”. As atividades levaram os participantes ao clímax do ódio em relação à Eurásia, e de tal modo externavam sua ferocidade que parecia estarem prontos para “esquartejar com as unhas” os dois mil prisioneiros que seriam executados na forca no último dia.
Mas aconteceu que um anúncio oficial fez saber que o inimigo da Oceania era a Lestásia e não a Eurásia. Obviamente não se falou de alteração de fatos... Simplesmente o ódio extravasado passava a se direcionar “automaticamente”, como se o conflito “de sempre” tivesse sido com os “lestasiáticos”. Portanto, a guerra era contra a Lestásia enquanto os eurasianos eram aliados!
Evidentemente os trabalhadores do Ministério da Verdade tiveram de mobilizar esforços imediatos para efetivar as devidas alterações.
(...)
Winston, por exemplo, estava numa aglomeração em uma das praças centrais de Londres... Acompanhava as apresentações no meio de milhares de fanáticos e suas bandeiras avermelhadas iluminadas por refletores. Entre os mais empolgados estavam mil estudantes em seus uniformes do grupamento dos Espiões.
À toda gente falava um tipo de baixa estatura e magro que pertencia ao Partido Interno e que se destacava ainda pelos longos braços e tamanho avantajado da cabeça de poucos cabelos. O ódio que propagava desde o microfone adquiria um nível avassalador na medida em que seus gritos amplificados pela aparelhagem de som eram acompanhados da movimentação ameaçadora dos enormes braços. De resto, as palavras que faziam parte das ações do Partido e as denúncias eram as “mesmas de sempre”: “atrocidades, massacres, deportações, pilhagens, violações, tortura de prisioneiros, bombardeio de civis, propaganda mentirosa, agressões injustas, tratados desrespeitados”.
Apesar da mesmice, as reações dos manifestantes eram insanas. E isso porque todos se convenciam do conteúdo do discurso... Eventualmente a voz do tipo era sufocada pela reação furiosa do público.
Os jovens estudantes eram os que mais berravam quando um assistente entregou um papel ao orador, que o desenrolou e deu prosseguimento à sua falação furiosa sem alterar o tom de voz ou os gestos teatrais... O conteúdo continuou o mesmo, porém a partir de então anunciou que a guerra que a Oceania travava era com a Lestásia.
De repente as pessoas se voltaram para os anúncios das inúmeras faixas e cartazes que traziam mensagens de ódio à Eurásia. Logo se convenceram que a gente de Goldstein havia sabotado as festividades e espalhado o “material errado” por toda a praça. Primeiro percebeu-se o silêncio tomando conta da multidão, mas, assim que passaram a providenciar a destruição do material, a agitação voltou a tomar conta de todos.
A moçada que pertencia aos Espiões se destacou no ataque às faixas e cartazes... Moços e moças escalaram paredes, subiram nos telhados e agarraram-se às chaminés para arrancar e rasgar faixas e cartazes.
Depois do tumulto, e isso nem demorou muito, o baixinho do Partido Interno voltou a falar ao público e a gesticular as ameaças contra os “inimigos de sempre”: a Lestásia. Na sequência, a multidão retomou as manifestações de ódio...
Winston contemplava a tudo e se surpreendia com a facilidade da mudança do alvo. O orador passou de “um inimigo a outro” no meio de uma frase, e fez isso sem qualquer pausa ou “ofensa à sintaxe”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

terça-feira, 28 de setembro de 2021

“1984”, de George Orwell - antecipando a própria desgraça; pastilhas para disfarçar o cheiro do vinho; brindando ao passado; falando do “esconderijo” sobre a loja do Senhor Charrington; de como o livro indestrutível chegaria às mãos de Winston; O’Brien conhecia todos os versos da antiga canção e percebeu que o rapaz imaginava que se encontrariam em algum momento; fim do “incidente”

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/09/1984-de-george-orwell-frieza-e.html antes de ler esta postagem:

É claro que a mensagem de O’Brien não era para qualquer um. Pelo visto, ele resolveu participar da fantasia criada por Winston e apresentou-lhe uma “Fraternidade” envolvida em panorama sombrio, do qual apenas os mais convictos podiam participar.
Pelo visto, Winston e Júlia se convenceram a respeito do fatalismo ao qual estariam sujeitos e também da impossibilidade de voltarem a contatar O’Brien, já que ele mesmo garantia que sua captura era certa e pelo visto para breve.
Deviam ler o livro, aguardar as tarefas que seriam enviadas por Martin e atuar da melhor maneira possível. O certo é que não sobreviveriam. E isso porque a Polícia do Pensamento era implacável na perseguição, repressão e eliminação dos inimigos do regime.
Tudo muito obscuro... Ao que tudo indica, os dois anteciparam a própria desgraça.
(...)
O’Brien parou e mais uma vez consultou o relógio... Dirigiu-se à Júlia, tratou-a por camarada e disse que já estava quase na hora de se retirar. Voltou a encher os copos e perguntou a que brindariam pela última vez...
Suas palavras soavam à ironia, então sugeriu que o brinde podia ser à “confusão da Polícia do Pensamento”; à “morte do Grande Irmão”; à “humanidade”; ao “futuro”. Neste ponto Winston o interrompeu e disse que podia ser “ao passado”. O’Brien concordou e por incrível que pareça emendou que achava “o passado mais importante”.
Esvaziaram os copos e Júlia levantou-se... Antes que saísse, recebeu “uma pastilha branca” do anfitrião. Este explicou que deveria deixá-la dissolver na boca, pois aquilo inibiria o cheiro do vinho. Ressaltou que dessa forma evitavam desconfianças dos ascensoristas do prédio.
(...)
A moça se retirou, O’Brien fechou a porta e logo “pareceu esquecer que ela existia”. Cainhou na direção de Winston e disse-lhe que precisavam providenciar “algumas minúcias” e perguntou se possuía um esconderijo. Ele respondeu que utilizava o quarto sobre a loja do Senhor Charrington...
O’Brien sentenciou que por hora podiam manter o refúgio, mas depois ele os ajudaria a se mudarem para outro e justificou dizendo que as mudanças eram imprescindíveis.  Esclareceu ainda que em breve enviaria o “livro de Goldstein”, que devia ser lido e muito bem entendido.
Ler e apreender as informações do livro o quanto antes eram a primeira tarefa. Todavia,  O’Brien explicou que talvez o envio do material demorasse um pouco porque não era fácil conseguir uma edição, já que a Polícia do Pensamento destruía os exemplares “quase no mesmo ritmo” em que eram produzidos. Acrescentou que, apesar disso, o livro “permanecia indestrutível” porque mesmo se o regime conseguisse destruir todos, a “Fraternidade” teria condições de “reproduzi-lo quase palavra por palavra”.
(...)
Perguntou ao Winston se ele costumava levar uma pasta de couro ao trabalho... Sim, normalmente ele levava uma. E como era a pasta? Ela tinha duas alças, era preta e já bastante usada.
O’Brien admitiu que se tratasse de um bom acessório... Depois explicou que o rapaz devia estar atento em relação a uma situação específica no trabalho. Sem precisar a data, deixou claro que em determinado dia receberia certa tarefa logo pela manhã, quando notaria um erro de imprensa que demandaria uma repetição. Então, no dia seguinte, faria a solicitação à repartição, mas teria de ir até lá sem a pasta.
E por quê? Porque no caminho, em algum ponto da rua, um homem se aproximará e lhe dirá algo como “Acho que o senhor deixou cair esta pasta”. Então deverá pegar a pasta como se fosse sua... Nela estará um exemplar do “livro de Goldstein”, que terá de ser devolvido depois de duas semanas.
(...)
Os dois se calaram por um instante até O’Brien dizer que lhes restavam alguns poucos minutos. Ia dizendo que poderia ocorrer de tornarem a se encontrar... Winston o interrompeu para perguntar: “onde não há treva?” O tipo confirmou sem demonstrar qualquer surpresa pela indagação, “como se reconhecesse a alusão”.
Por fim quis saber se o rapaz tinha algo mais a acrescentar, um recado ou uma pergunta... Parecia mesmo que não havia nada a se dizer, mas Winston pensou em coisas completamente apartadas da “Fraternidade” e do mentor que pertencia ao Partido Interno. Por um momento viu-se refletindo sobre o quarto escuro onde morava com a mãe e a pequena irmã... Depois lhe veio à mente o pequeno quarto que alugara do Senhor Charrington, o peso de papel e a gravura da igreja... Então, quase que mecanicamente perguntou se O’Brien conhecia a antiga canção que falava das laranjas, limões e sinos de São Clemente...
O outro respondeu que a conhecia e recitou:

                   “Laranjas e limões, dizem os sinos de S. Clemente; Me deves três vinténs, dizem os sinos de S. Martinho; Quando me pagarás? dizem os sinos de Old Bailey; Quando eu ficar rico, dizem os sinos de Shoreditch."

Winston espantou-se... O’Brien conhecia o último verso! Este confirmou e advertiu que não tinham mais tempo. Entregou-lhe uma das pastilhas para disfarçar o cheiro do vinho e estendeu-lhe a mão para um forte aperto.
Ao passar pela porta, o rapaz voltou o olhar para a sala... O anfitrião acionava a teletela e certamente procurava eliminar a imagem do visitante de sua consciência. Mais atrás estavam a mesa de trabalho, o abajur de luz esverdeada, o “falascreve” e as cestas com papéis descartados:

                   “O incidente estava encerrado. Dali a trinta segundos, O'Brien mergulharia no seu trabalho interrompido e de grande importância para o Partido”.

Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“1984”, de George Orwell - frieza e personalidade altiva de O’Brien em sua palestra a respeito da “Fraternidade”, da falta de informações a respeito de suas movimentações e pessoal envolvido e da atuação de cada um; contatos rotativos, limitados e quase invisíveis; viver “sem resultados ou esperança” e seguir adiante sustentado pela “ideia indestrutível”; certamente não experimentariam da “vida verdadeira”, pois o que podiam fazer limitava-se a expandir o conhecimento às gerações futuras

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/09/1984-de-george-orwell-advertencias.html antes de ler esta postagem:

A promessa de O’Brien em relação ao livro era a de que, após a leitura, Winston e Júlia passariam a ser membros da “Fraternidade”, mas não teriam como saber a respeito dos objetivos gerais do movimento e tampouco conheceriam “as tarefas imediatas do momento”.
Ele não podia adiantar muita coisa sobre o movimento rebelde e podemos dizer que suas informações eram bem vagas. Disse que não podia afirmar nada sobre a quantidade de agentes... Talvez fossem cem ou dez milhões, mas cada um deles não podia dizer que passassem de uns doze, pois teriam apenas “três ou quatro contatos que seriam renovados de tempos em tempos”. Essa rotatividade se devia ao fato de haver perseguição implacável e muitos terminarem capturados e eliminados pelo regime.
O’Brien salientou que, de início, o contato de ambos com a organização seria com ele, e que suas ordens chegariam a eles através de Martin. Por fim, deixou claro que quando fossem presos acabariam confessando, pois isso era inevitável. No entanto não teriam muito a dizer aos inquiridores e provavelmente trairiam um ou outro membro “sem importância” da organização... Nada diriam a seu respeito, até porque já o teriam matado ou estaria transformado em um tipo completamente diferente, com aparência totalmente transformada.
(...)
O’Brien transmitiu essas informações enquanto esteve caminhando de um lado para outro da sala. Apesar de seu porte avantajado, suas elegantes passadas não produziam qualquer ruído no macio tapete azul.
De certo modo, era com ironia que se referia aos “expedientes inevitáveis”, como assassinatos, suicídios, amputações e cirurgias plásticas radicais... Winston se impressionava com os mínimos gestos do tipo que transmitia confiança e força. A seriedade de suas palavras desprovidas de fanatismo o levava a crer que haviam acertado ao se abrirem com ele.
Era certo que falava dos “expedientes inevitáveis” ressaltando que deviam ser praticados sem qualquer vacilação e “sem piedade”, mas não deixava de lembrar que depois de transformarem a realidade nada disso mais ocorreria, pois a “a vida de novo valeria a pena ser vivida”.
A postura do homem e o seu modo de falar provocavam em Winston uma profunda admiração e “quase adoração”. No momento Goldstein era personalidade remota e sua referência só podia ser O’Brien, que lhe transmitia a confiança da invencibilidade... Seus fortes ombros e sua aparência civilizada pareciam confirmar isso. Sua frieza de cálculo certamente previa os perigos iminentes. Dessa forma, não havia como não crer que podiam lograr êxito no projeto que iniciavam.
(...)
Júlia também estava impressionada e sequer percebeu o cigarro apagar, pois dedicava toda a sua atenção às palavras de O’Brien.
Ele passou a falar a respeito da “Fraternidade” e da ideia que tipos como o casal faziam da mesma... Certamente a imaginavam como uma realidade clandestina repleta de conspiradores que se encontravam secretamente, que se dedicavam a transmitir mensagens que rabiscavam em paredes, e que se reconheciam “por meio de códigos ou gestos especiais”.
Explicou que nada daquilo existia, já que os que pertenciam à organização não tinham como reconhecerem-se uns aos outros. Isso era impossível, e até mesmo se Goldstein fosse capturado pelo regime não teria condições de fornecer qualquer lista de conspiradores ou informações que possibilitassem a investigações de nomes. Não existia uma lista desse tipo e desse modo não havia como relacionar a “Fraternidade” ao modelo de organização que as pessoas concebiam.
Na sequência, falou que o alicerce da “Fraternidade” era a sua “ideia indestrutível”. Seus asseclas sabiam que não podiam esperar nenhum amparo material, pois tinham convicção de que eram animados e moralmente sustentados unicamente pela “ideia indestrutível”. Sabiam que não podiam contar com camaradagem ou incentivos e que, ao serem capturados, não receberiam qualquer socorro. Eventualmente conseguiam fazer chegar às suas celas uma lâmina de barbear.
O casal devia compreender a mensagem... O’Brien a transmitiu dando a entender que, a partir de então, Winston e Júlia teriam de aprender “a viver sem resultados e sem esperança”. Basicamente atuariam por algum período, seriam presos, confessariam e logo seriam executados... E esses seriam os únicos resultados que poderiam vislumbrar.
Deviam compreender também que nenhuma “mudança perceptível” ocorreria durante a própria existência e que, tendo isso em mente, seria mais fácil admitir que na verdade já estavam mortos e que a “vida verdadeira” a que almejavam estava no futuro.
(...)
Quase que poeticamente, O’Brien disse que eles, e nisso se incluía, tomariam parte da “vida verdadeira” apenas “como punhados de pó e esquírolas de ossos”.
Poderiam perguntar-lhe a respeito do tempo que os separava da realidade idealizada, e a esse respeito tinha a dizer que não havia como saber. Talvez mil anos! Tudo o que sabia era que faziam parte de uma realidade que lhes permitia apenas “alargar a zona de sanidade mental”. E como não podiam agir coletivamente, deviam expandir o conhecimento “de indivíduo a indivíduo, geração após geração”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

“1984”, de George Orwell - advertências a respeito da ousadia de se fazer acompanhar de Júlia para a visita; um interrogatório sobre a disposição e fidelidade de Winston em relação às tarefas arriscadas e assombrosas que viesse a receber da organização rebelde; O’Brien fica sabendo que o casal não está disposto a se separar; de cirurgias e outras manobras para alterar a identidade; mais sobre Martin e a ideia de que ele podia ter sido submetido a operações plásticas; cigarros de boa qualidade e promessa de envio de livro com as estratégias da organização


Depois de conferir a hora em seu relógio, O’Brien esclareceu que até para tipos como ele, que pertenciam ao Partido Interno, não era aconselhável manter a teletela desligada por muito tempo. Meia hora era tempo demais... Depois advertiu que Winston não fizera bem em trazer a garota e lembrou que teriam de se separar em sua retirada. Aconselhou Júlia a sair antes e lembrou que podiam conversar por mais uns vinte minutos.
Voltando-se para Winston, esclareceu que tinha de fazer-lhe algumas perguntas e indagou-lhe de início a respeito de suas intenções, ou seja, a que tipo de ação estavam dispostos... O rapaz respondeu que fariam qualquer coisa que estivesse ao alcance.
O’Brien voltou sua cadeira na direção dele e praticamente não levou em consideração a presença de Júlia... É como se admitisse que Winston falasse por ambos. Baixou a voz e, dando a entender que introduzia uma conversação rotineira destinada aos acertos subversivos, fez uma série de questionamentos a respeito de sua abnegação em relação à causa.
(...)
Winston deu respostas afirmativas... Sim, estava disposto a dar a vida, a assassinar, a cometer atos de sabotagem que certamente resultariam na morte de centenas de inocentes... Sim, estava disposto a trair a pátria e a “fraudar, forjar, fazer chantagem, corromper a mente infantil, distribuir entorpecentes, incentivar a prostituição, disseminar doenças venéreas” e dessa forma desmoralizar o Partido e comprometer sua estabilidade política... Sim, não mediria esforços para favorecer as potências inimigas.
A confirmação de fidelidade aos princípios da organização clandestina de luta contra o Grande Irmão e o IngSoc era quase catequética e exigia o sim de Winston para questões medonhas... Ele confirmou, por exemplo, que jogaria ácido sulfúrico no rosto de uma criança se fosse escolhido para essa missão. Além disso, garantiu estar disposto a renunciar à própria identidade e passar “o resto da vida como garçom ou estivador”, e por fim confirmou que, se lhe fosse pedido, poderia se suicidar pela causa.
(...)
Depois de ouvir várias afirmativas, O’Brien perguntou se o casal estava disposto a se separar e nunca mais voltarem a se encontrar. Júlia se intrometeu no mesmo instante e respondeu que não. Winston não esperava a reação da namorada e emudeceu por um instante. E tanto se demorou que teve dificuldade de pronunciar a própria resposta até que conseguiu repetir o “não” da jovem.
O’Brien disse que o rapaz fizera bem em responder com franqueza, pois precisava “saber tudo”. Depois, dirigindo-se à Júlia, tornou a voz mais expressiva para perguntar-lhe (e ao mesmo tempo explicar-lhe) se ela podia entender que, ainda que Winston sobrevivesse. poderia vir a tornar-se uma pessoa bem diferente da que ela conhecia... Deixou claro que possivelmente ele teria de assumir uma nova identidade, e isso incluía modificações no rosto, cabelos e alterações nos gestos e modos de se expressar. Até a voz talvez tivesse de ser mudada.
E não era só Winston que estaria sujeito às transformações... O’Brien esclareceu que, de acordo com as necessidades do movimento, também ela poderia passar por cirurgias... Emendou que a organização possuía médicos especialistas em tornar as pessoas irreconhecíveis. Em certos casos amputavam algum membro do ativista para uma nova e inimaginável identidade.
Neste momento, Winston pensou em Martin e sua fisionomia de asiático amarelo... Olhou-o com o canto dos olhos e notou que o tipo não carregava nenhuma cicatriz evidente... Júlia tornou-se pálida e suas sardas ainda mais se destacaram, apesar disso não deixou de encarar o anfitrião nos olhos enquanto pronunciou algumas frases tímidas que confirmavam sua aceitação.
(...)
Na sequência, O’Brien concluiu a conversa... Disse que estava “resolvido”, pegou uma bonita carteira de cigarros que estava sobre a mesa e ofereceu aos demais. Pegou um para si e pôs-se a caminhar de um lado para outro.
Winston não pôde deixar de conferir a excelente qualidade dos cigarros, firmes e enrolados em delicado papel... O anfitrião voltou a olhar para o relógio e solicitou ao Martin que retornasse ao seu posto na cozinha, mas antes devia captar bem as fisionomias dos visitantes, pois era certo que voltaria a vê-los. Ao dizer isso, emendou que ele mesmo talvez não os revisse.
O criado dirigiu-se à porta e deteve-se por alguns segundos na tarefa de encarar o casal para que suas fisionomias permanecessem nítidas em sua memória... Evidentemente não tinha o menor interesse por eles, desempenhando sua tarefa de modo automático.
Winston pensou mais a respeito do tipo... Calculou que seu rosto tivesse passado por transformações como as que o anfitrião havia dito e que por isso não era capaz de alterar a expressão. Martin saiu sem nada falar e sem cumprimentar os que permaneceram na sala fechou a porta.
O’Brien continuou a caminhar pensativamente... Manteve uma das mãos no bolso do macacão preto enquanto a outra segurava o cigarro. Perguntou a Winston se ele havia compreendido que estava se engajando numa luta em que teria de manter-se “no escuro”. Receberia ordens e teria de obedecê-las sem pestanejar e sem ter ideia dos motivos.
De resto, teria de aguardar... Ele mesmo lhe enviaria um livro com matéria explicativa a respeito da “verdadeira sociedade” na qual viviam e sobre as estratégias que desenvolveriam para destruí-la.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

sábado, 25 de setembro de 2021

“1984”, de George Orwell - se O’Brien nada sabia das infrações de Júlia e Winston, não demorou a conhecê-las, confessadas que foram pela própria visita; Martin, o criado de confiança tem autorização para participar da conversa “de negócios”; vinho e brinde a Goldstein; início de esclarecimentos a respeito do líder dos rebeldes e da Fraternidade


Ao acreditarmos que O’Brien havia chamado Winston ao seu apartamento apenas para entregar-lhe um exemplar da novíssima edição do dicionário, temos de considerar que o fato de o rapaz ter chegado acompanhado por Júlia deve ter chamado sua atenção...
Aquilo era incomum! Mas podemos pensar que o tipo do Partido Interno já havia recolhido informações a respeito da vida pessoal de seu convidado. Nesse sentido, somos tentados a imaginar que ele já soubesse de várias “infrações” cometidas pelo casal.
(...)
Fiquemos com a possibilidade de O’Brien não alimentar qualquer desconfiança do trabalhador do departamento de Registro que se destacava por suas publicações no "Times”...
Depois de ter desligado a teletela, ele não deixou de observar as reações de ambos... Obviamente desconfiou, mas, partindo da premissa anteriormente colocada, não sabia que tipo de segredo eles escondiam, como o interpretavam e o que esperavam dele. Não foi por acaso que permaneceu alguns instantes em silêncio, já que precisava de respostas para essas dúvidas.
Winston sentiu-se atormentado pelo silêncio até que a fisionomia do anfitrião mudou... Este ajeitava os óculos no nariz e esboçava um sorriso, depois, quase que em tom de brincadeira, perguntou qual dos dois começaria a falar.
Winston adiantou-se dizendo que começaria... Na sequência quis que O’Brien confirmasse que os equipamentos estavam mesmo desligados. Ele confirmou e emendou que “estavam a sós” no momento.
(...)
Começou a dizer o motivo da visita, mas interrompeu a frase ao perceber que ainda não havia sistematizado as ideias a respeito e sequer sabia que tipo de conselho, auxílio ou orientação esperava de O’Brien...
Mesmo sabendo que suas palavras eram vacilantes e ousadas ao mesmo tempo, explicou que ele e Júlia acreditavam que havia “alguma conspiração, alguma organização secreta trabalhando contra o Partido”, e que O’Brien estava envolvido... Depois confessou que os dois pretendiam se juntar a ele e à oposição ao regime, pois eram “inimigos do Partido” e não acreditavam “nos princípios do IngSoc”.
Este início de conversa já foi mais do que suficiente para que o membro do Partido Interno concluísse que estava diante de dois “ideocriminosos”. Aconteceu que o próprio Winston garantiu que era isso mesmo o que eram e que, além disso, também eram adúlteros. Disse ainda que estavam ali porque contavam com as orientações que O’Brien poderia fornecer-lhes para que pudessem participar das ações contra o regime.
Por fim, o rapaz salientou que se estivessem equivocados aceitariam a incriminação.
(...)
Winston se calou... Percebeu que a porta se abriu e que o criado que parecia chinês entrou sem se anunciar. Ele trazia uma garrafa de cristal e alguns copos. No mesmo instante, O’Brien disse que Martin, este era o nome do tipo, era de confiança, “um dos nossos”. Depois solicitou em voz alta que a bebida fosse servida e que a bandeja fosse colocada sobre a mesa redonda.
O’Brien pediu aos convidados que se sentassem e ao Martin que providenciasse uma cadeira para si, pois falariam “de negócios” e por uns dez minutos ele podia “deixar de ser criado”.
Winston notou que, apesar de manter a fisionomia de serviçal, o criado mostrou-se à vontade ao ocupar o lugar à mesa. O rapaz pensou que talvez aquele tipinho passasse a vida a “desempenhar um papel específico” na casa e que tinha certa dificuldade de distanciar-se do “script” mesmo que por poucos minutos.
A garrafa continha vinho, algo que as pessoas comuns não conheciam... Conforme o líquido vermelho era despejado nos copos, Winston procurou resgatar da memória alguma lembrança relacionada... A “bebida brilhava como um rubi” e “tinha um cheiro agridoce”. Antes de beber, Júlia experimentou do aroma enquanto O’Brien explicava que a bebida tinha o nome de vinho, que certamente os dois deviam ter lido a respeito em livros.
O’Brien quis mostrar que o vinho era um privilégio que podiam gozar no momento, já que nem todos do Partido Interno conheciam a bebida. Na sequência, ergueu o copo e sugeriu um brinde à saúde de Emmanuel Goldstein, o líder de todos os rebeldes...
(...)
Winston estava mesmo ansioso para experimentar do vinho e deu pouca atenção às palavras do anfitrião. Sua curiosidade se explicava pelo fato de ter lido a respeito... Assim como o peso de papel ou as cantigas antigas ensinadas pelo Charrington, aquela raridade remontava ao passado, a um tempo “desaparecido e romântico”. Imaginava que o líquido vermelho deixasse gosto adocicado, algo como “geleia de amora” e que inebriasse logo que fosse ingerido. Mas se decepcionou ao não sentir nada disso. Tantos anos de bebedeiras de gin haviam tornado seu paladar insensível às preciosidades.
Depois do primeiro trago fez referência ao brinde mostrando-se surpreso pela referência a Goldstein. Então ele existia mesmo? Sim, foi o que O’Brien garantiu ressaltando que não se sabia de seu paradeiro... Winston perguntou se a conspiração e a organização também eram reais. Não seriam invenções da “Polícia do Pensamento”?
O’Brien garantiu que existiam e que a organização era conhecida como “Fraternidade”. Mas esclareceu que não havia como saber maiores detalhes a respeito da organização liderada por Goldstein. Explicou que ao convidado era importante saber que ela era real e que era possível fazer parte de seus quadros. Acrescentou que por hora era importante que conversassem, pois assim teria oportunidade de saber mais a respeito.
O membro do Partido Interno disse essas últimas palavras ao mesmo tempo em que dirigia o olhar ao relógio que trazia no pulso. Evidentemente a visita não poderia se prolongar por muito mais tempo.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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