Sem Medo deu as costas e os comentários dos guerrilheiros não cessaram... A maioria sentiu-se incomodada pela presença do comandante, responsável provisório por Dolisie... Muitos reclamavam do autoritarismo de suas palavras... Talvez esperassem qualquer vacilo de sua parte para darem início a um incidente tribalista sem precedentes, mas todos viram que o homem era bem diferente do André... Hungo foi um dos que deixou escapar um elogio à sua conduta... Também o chefe do depósito foi da opinião de que o panorama estava mudando.
(...)
Dirigindo
o jipe no caminho para Dolisie, o comandante pensava a respeito de como aqueles
militantes já haviam se acostumado aos desmandos e aos inquéritos demorados que
deixavam de ter qualquer eficácia. No caso da fuga do Ingratidão, pensavam que
nenhuma apuração seria feita... Os tipos deviam entender que, pelo menos
enquanto ele estivesse na área, as coisas seriam bem diferentes. Os tempos de
desmandos do André ficariam para trás.
Ao chegar ao escritório político encontrou o Comissário...
O camarada estava com a fisionomia bem abatida. Ele explicou que a Ondina já
estava no quarto, que haviam discutido mais uma vez e que ela o rejeitava
definitivamente.
O Comissário pediu ao Sem Medo que falasse com a
mulher... Esperava que ele intercedesse em seu favor. Sem Medo nada disse, mas
seguiu para o quarto bem de frente para o seu (que era ocupado pelo André) onde
Ondina estava instalada.
Bateu
à porta e teve autorização para entrar... Trocaram os bons-dias e Sem Medo foi
dizendo que acabara de falar com o João, que lhe dissera que ela havia rompido
o relacionamento de vez. Ondina deu de ombros e pediu um cigarro dizendo que
ninguém mais se importaria se ela fumasse, pois a afastaram das aulas e das
crianças por causa do flagrante com o André.
Sem Medo acendeu um cigarro e lhe deu... Via-se que
ela estava decepcionada por ter perdido a confiança das famílias dos pequenos
alunos. Disse que o João era muito complicado e parecia não querer compreender
a situação entre ambos. Um dos problemas era que dava a entender que aceitava
as coisas, mas no fundo ela sabia que não era bem assim. Além disso, ela via
que não podia ceder e isso era-lhe bem difícil porque a delicadeza do
companheiro quase sempre a fazia voltar atrás... Se tivesse de decifrá-lo diria
que ele estava mais para uma criança. No momento aceitava a situação, mas era
certo que futuramente a reprovaria. Tudo indicava que ela o dominaria no
relacionamento. Ondina sabia disso e disparou que quando nova traição ocorresse
provavelmente ele a perdoaria.
Sem
Medo entendeu que Ondina não pretendia ser injusta com o noivo. Disse-lhe que
podia notar que ela sabia que o desequilíbrio do relacionamento lhe era
favorável, mas não podia aceitar essa condição.
Ondina
disse que embora respeitasse o João, tinha certeza de que chegaria a abusar de
sua fraqueza outras vezes. Isso a atormentaria demasiadamente. Neste ponto, Sem
Medo pensou sem se pronunciar que talvez aquela mulher não fosse tão livre
quanto ele imaginava. Resolveu dizer que o Comissário não era um fracote e que
aquela situação poderia levá-lo a um amadurecimento. Ela concordou, mas
acrescentou que o rompimento poderia trazer mais benefícios para ele.
Sem Medo observou que nesse caso o João poderia tentar
reconquistá-la... Ela respondeu que não haveria tempo para isso porque em breve
a tirariam de Dolisie. Ele tratou de dizer que o movimento poderia levar em
consideração o caso dos dois... Poderiam mesmo encaminhar cada um para uma
parte, mas sempre seriam consideradas todas as “possibilidades de
reconciliação”.
De repente ela tocou o braço do comandante e pediu
desculpa por isso... Na sequência solicitou que ele fosse sincero ao responder
se de fato achava que ela era a mulher que o João merecia. Insistiu no
questionamento porque ela mesma não pensava assim.
Sem Medo respondeu que discordava. Disse que se a questão
fosse aquela, teria de admitir que sim, ela era mulher para o Comissário... Mas
acrescentou que não se tratava do João a que ela se habituara, e sim o que
estava saindo transformado da crise.
Ondina
disse que teria de dedicar-lhe mais amor do que até então lhe dedicara... O
caso é que parecia não haver cura para a situação... Não fosse a guerra e
passariam mais tempo juntos.
Sem Medo fez essa última observação esperando que a outra
manifestasse qualquer reação, mas ela nada disse. Então ele se retirou do
quarto para encarar o camarada Comissário e seu desespero.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/04/mayombe-de-pepetela-sem-medo-trata-com.html
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto