sexta-feira, 26 de novembro de 2021

“1984”, de George Orwell - a prisão e seu universo de ilicitudes e decadência humana; uma mulher de sessenta anos atirada sobre o colo de Winston, seu péssimo estado e simpatia pelo estranho; aquela bem podia ser sua mãe; os pavores dos presos políticos encarcerados; necessidade de não pensar em Júlia; a imagem de O’Brien trazia esperança e talvez lhe chegasse uma lâmina de barba às mãos; talvez fosse melhor prosseguir existindo e “aceitar mais dez minutos de vida”

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/11/1984-de-george-orwell-charrington.html antes de ler esta postagem:

Obviamente Winston não podia ter a menor ideia a respeito do submundo dos presídios... Subornos, “favoritismo e roubalheira de todo gênero”, além das práticas homossexuais e da prostituição.
Ficaria escandalizado ao saber que os detentos que quisessem podiam obter destilados de batatas ilícitos, e não era por acaso que certas funções que demandavam a confiança dos agentes de segurança fossem destinadas somente aos presos comuns que tinham vínculos com grupos criminosos e relações com assassinatos... Os demais os viam como “aristocratas”, enquanto aos presos por razões políticas sobravam tarefas “menos prestigiosas” e relacionadas à faxina.
O pouco tempo de permanência na detenção transitória foi suficiente para Winston reconhecer que por ali passavam criminosos de todas as modalidades imagináveis: “vendedores de entorpecentes, ladrões, bandidos, traficantes, bêbados, prostitutas”. Entre os bêbados encontravam-se os mais violentos, e alguns eram tão agitados que os demais se juntavam para controlá-los.
(...)
Num determinado momento os agentes chegaram com uma mulher que devia contar uns sessenta anos. O seu tipo lembrava o de uma velha prostituta de avantajados seios, cabelos esbranquiçados e despenteados... Ela deu muito trabalho aos tiras, já que resistiu à detenção com pontapés e gritaria.
Depois que arrancaram as botas da delinquente, a jogaram no colo de Winston e seu peso quase o machucou gravemente. No mesmo instante ela os ofendeu com palavrões, mas eles se retiraram sem perda de tempo.
Nem se pode dizer que a mulher tivesse percebido que estava no colo de um estranho... Ao se dar conta da situação, escapou para o lado acomodando-se no mesmo banco. Ela pediu desculpas ao Winston chamando-o “queridinho” e justificando que os “policiais sacanas” a atiraram sobre ele.
Talvez tenha considerado que o rapaz fosse mais distinto do que os de sua convivência já que emendou que os agentes não sabiam tratar uma senhora... Na sequência deixou escapar um arroto escandaloso, explicou que era da opinião de que não se deve “segurar a vontade” e novamente pediu desculpas. Vomitou, despejando um volume asqueroso no chão e disse que não se sentia bem, mas que “ter soltado tudo enquanto está fresco no estômago” era o melhor para os casos como o dela.
Voltando-se para Winston, mostrou que havia se simpatizado por ele e o envolveu com o seu braço avantajado puxando-o para mais perto. O vapor da cerveja barata e do vômito o inebriou enquanto ela procurava sua identificação estampada na roupa... Ao constatar que ele era um Smith, comentou que esse também era o seu nome de família e que o mais engraçado é que ela bem podia ser sua mãe.
Winston tinha muito em que pensar, mas por um instante considerou que não seria impossível que aquilo fosse verdade... A mulher tinha idade e físico que condiziam com as prováveis características da mãe. É certo que se estivesse viva teria mudado muito, e isso sem contar os trabalhos forçados a que fora submetida, mas a sugestão da outra o incomodou por um instante.
(...)
A indisposição de ambos para uma conversa mais séria colocou fim na falação da mulher e depois disso ninguém mais se dirigiu a ele.
Os detentos relacionados aos crimes comuns nem faziam caso da presença dos presos políticos, os tratavam por “politiqueiros” e não tinham qualquer interesse por eles. De qualquer modo, o pessoal que pertencia ao Partido estava bem assustado e sem qualquer intenção de conversar com quem quer que fosse, evitando principalmente os “companheiros de infortúnio”.
Num determinado momento, duas que pertenciam ao Partido Externo cochicharam algo a respeito de certa sala “um-zero-um”. Winston ouviu sem conseguir relacionar a informação a qualquer contexto. Sentia que já estava há um bom tempo no cárcere provisório, mas na verdade haviam se passado umas três horas apenas. A fome e a dor de barriga o incomodavam... Essas desagradáveis sensações interferiam nos pensamentos. Nos momentos de dor mais aguda avaliava que precisava comer urgentemente, e isso lhe ocupava a mente. Quando a dor diminuía, enchia-se de pavor e expectativa pelo que estava por vir.
A tal ponto se apavorava que notava o coração disparar ao mesmo tempo em que lhe faltava a respiração. Imaginava-se apanhando das forças de repressão, dentes quebrados e ele rolando pelo chão a pedir misericórdia. Não pensava em Júlia, embora de vez em quando sua imagem aparecesse em suas reflexões... Entendia que não podia pensar nela, apesar de manter-se convicto de que a amava e que jamais a trairia... Encarava a situação como paradoxal, já que “não sentia amor por ela e quase não tinha vontade de saber o que lhe estava acontecendo”.
(...)
O’Brien é que lhe vinha aos pensamentos com maior frequência. Encarava isso como “um raio de esperança”. Imaginava que ele já devia saber que o casal havia sido capturado. Winston não se esquecia de suas palavras a respeito de a “Fraternidade” não se mobilizar em socorro aos membros que caíam nas garras da Polícia do Pensamento... Lembrou-se da “lâmina de barba” e imaginou que talvez lhe entregassem uma às escondidas.
A esse respeito, imaginou que talvez pudesse fazer uso da lâmina quando o levassem para as grades. Imaginou-se cortando o pulso até os ossos... A dor que aquilo provocaria seria tanta que duvidava da própria intenção de chegar ao ato extremo. Talvez nem tivesse tempo ou ocasião para cortar-se devidamente. Talvez fosse melhor aguardar e “existir de momento a momento” e “aceitar mais dez minutos de vida mesmo com a certeza de mais tortura”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

“1984”, de George Orwell - Charrington remoçado e muito modificado, um verdadeiro integrante da Polícia do Pensamento, apareceu no quarto; isolamento e extrema vigilância em cela do Ministério do Amor; detenção provisória de presos comuns e políticos; postura abusada dos detidos por delitos comuns e arranjos para ilicitudes diversas

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Logo que o velho Charrington entrou os agentes de repressão pareceram adotar uma postura menos agressiva... Winston notou que a aparência do antiquário também estava mudada. Surpreendeu-se ao ouvi-lo ordenar que recolhessem os pedaços do peso de papel que estavam espalhados pelo piso.
Não foi difícil reconhecer que sua voz era a mesma que havia saído da teletela momentos antes. O tipo trajava o mesmo paletó de ocasião, todavia sua aparência estava mudada, já que não mais trazia o grisalho nos cabelos ou óculos... Virou-se por um momento na direção do capturado e o olhou com agressividade sem nada dizer... Parecia ter conferido que aquele era mesmo Winston e depois não mais se voltou para ele.
De sua parte, Winston tinha certeza de que aquele era mesmo o antiquário com quem se entendera a respeito dos objetos antigos e do aluguel do quarto, mas o homem apresentava postura física bem diferente... Não tinha as costas curvadas como antes e sua estatura havia aumentado.
Charrington trazia pequenas mudanças no rosto, significativas para uma “completa transformação”. Nada de rugas... Além disso, as sobrancelhas pareciam ter se afinado. Também o nariz parecia outro, já que não estava tão proeminente quanto antes... No conjunto, as alterações deram-lhe uma aparência de um tipo bem mais jovem, contando uns trinta e cinco anos.
Winston teve a convicção de que estava diante de um integrante da Polícia do Pensamento.

(...)

O rapaz acabou sendo levado para uma instalação no Ministério do Amor... Mas antes passou por um centro comum de detenção, onde permaneceu por algum tempo em meio a outros presos políticos e outros por delitos comuns...
O ambiente no Ministério do Amor era de total isolamento e vigilância... A sala muito branca e iluminada por “lâmpadas ocultas” não tinha qualquer janela e em cada uma das paredes havia uma teletela. O silêncio só não era pleno devido a um constante zunido certamente relacionado ao sistema de refrigeração. Em quase toda extensão das paredes havia espécie de prateleira que servia de assento. Num determinado ponto localizava-se uma porta que dava acesso a um vaso sanitário desprovido de tampo.
O rapaz estava sem qualquer noção do tempo que havia se passado desde que o encaminharam para ali... Ainda estava perturbado pelo fato de não saber em que momento se efetuara a sua captura, se era noite ou dia. Sabia apenas que sentia forte dor de barriga e que estava esfomeado sem saber quantas horas haviam se passado desde que fizera a última refeição... Provavelmente mais de um dia e meio.
Sentado no estreito banco, Winston mantinha as mãos sobre os joelhos e permanecia imóvel o mais que podia. Qualquer movimento repentino que fizesse era repreendido pela teletela. Ele parecia bem treinado a permanecer na imobilidade, mas a fome o incomodava muito e por um momento imaginou que trazia algumas migalhas de pão no bolso... Não conseguiu resistir e levou a mão ao local onde supunha estarem as migalhas, mas no mesmo momento a placa metálica vociferou: “Smith! 6079 Smith W! tira a mão do bolso!”
Decepcionado, obedeceu tornando-se novamente imóvel e cruzando as mãos sobre os joelhos.
(...)
Como se afirmou anteriormente, antes de ser encaminhado para as instalações do Ministério do Amor, Winston passou um tempo em um local que parecia ser “uma prisão comum ou um depósito temporário” utilizado pelas forças de repressão.
Não sabia por quanto tempo permaneceu no ambiente sujo, malcheiroso e barulhento... A sala era bem parecida com a que foi deixado isolado, com a diferença de que parecia malcuidada e, por alguns momentos, abarrotada de detidos.
No local havia alguns presos políticos como ele, mas a maioria era de presos comuns... Logo que chegou, colocou-se em silêncio no longo banco e em pouco pôde perceber a companhia de tipos pouco acostumados aos banhos diários. Apesar da fome e dor de barriga, além de amedrontado, não podia deixar de notar o comportamento dos presos.
Os que tinham vínculos com o Partido permaneciam calados e tinham um olhar aterrorizado... Os presos comuns se comportavam extravagantemente e não se importavam com os demais, além disso, esbravejavam com os carcereiros, implicavam com a repressão e rabiscavam palavrões no piso.
Podia-se perceber que alguns deles conseguiam comida por meios não conhecidos pela polícia... E quando se cansavam da falação das teletelas, se injuriavam e provocavam gritaria para que fossem silenciadas. Conseguiam seu intento, já que a balbúrdia que provocavam era insuportável.
Os guardas usavam de violência contra eles, mas até quando os estapeavam demonstravam certa consideração. Winston entendeu que no mundo dos criminosos sempre havia aqueles que lidavam com contrabandos e ilícitos que, uma vez tramados com as “pessoas certas”, podiam garantir alguns privilégios. Um dos tipos chegou mesmo a dizer-lhe que, se conhecesse “bons contatos e os truques certos”, não enfrentaria muitos problemas nos campos de trabalho forçado.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

“1984”, de George Orwell - forças de repressão tomaram conta da situação e usaram de violência também contra a proletária do quintal vizinho; Júlia entendeu que o momento era de se despedirem; a “voz de ferro” declamou pequeno trecho da cantiga sobre os sinos das igrejas; brutamontes em uniformes negros quebram o peso de papel, chutam o calcanhar de Winston; Júlia violentamente golpeada e retirada do quarto; pensamentos desconexos, confusões com o horário e preocupações com o velho Charrington e a pobre lavadeira; o antiquário chega ao cômodo

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/11/1984-de-george-orwell-dos-proles.html antes de ler esta postagem:

Infelizmente para Winston e Júlia a aventura amorosa e de rebeldia contra o sistema terminou... No quarto sobre a loja de antiguidades, até então o esconderijo ideal, havia uma teletela que passou a transmitir ordens ao casal... Estavam detidos.
Os dois tiveram de se manter no meio do quarto e com as mãos na nuca... A “voz de ferro” exigiu que não se tocassem. Amedrontados, fizeram exatamente como lhes era exigido. Winston imaginava sentir a tremedeira da companheira, mas podia ser que o maior tremor fosse o do próprio corpo. Sequer conseguia controlar os maxilares que tiritavam... O pior eram os joelhos que pareciam se dobrar a cada instante.
Da janela chegavam sons de pesadas botas militares... Podia-se perceber que havia tropas fora e dentro do prédio. Certamente o pátio já estava repleto de homens da repressão. Pelo barulho que provocavam, Winston calculou que implicaram com a proletária do varal, pois ouviu o “barulho metálico, prolongado, arrastado, como se a tina de roupa tivesse sido jogada de um lado a outro do quintal”. Na sequência, gritos e um “uivo de dor” deram a entender que estavam espancando a pobre mulher.
(...)
Winston estava tão convicto de que a casa estava cercada que pronunciou sua afirmação... A “voz de ferro” confirmou. Júlia tremeu dos pés à cabeça, pois entendeu que estavam definitivamente nas mãos da repressão. Ela só teve forças para dizer que achava melhor se despedirem.
A voz da teletela repetiu que era mesmo o melhor que tinham a fazer. Na sequência uma voz diferente, aparentemente “fina e culta”, se fez ouvir... Winston teve a nítida impressão de que a conhecia:

                   “E por falar nisso, já que falamos do assunto, Aí vem uma luz para te levar para a cama, Aí vem um machado para te cortar a cabeça!”

No mesmo instante a tropa de repressão arrombou a vidraça com uma escada e a trava despencou sobre a cama. Na sequência, homenzarrões trajando pesadas botas e uniformes negros invadiram o quarto. Os tipos eram fortes e traziam bastões e outras armas...
Winston ainda mais se apavorou com a possibilidade de ser espancado, apesar disso parou de tremer e paralisou o olhar. Manteve-se imóvel para evitar o pior... Um dos agentes colocou-se à sua frente. Sua aparência lembrava a de um boxeador e o modo como manipulava o bastão davam a entender que refletia a respeito do que iria fazer. Era de aterrorizar...
Sempre com as mãos sobre a nuca, Winston olhou-o nos olhos... Sua posição era de extrema fragilidade e ele sabia que a qualquer momento podia ser surrado com socos, pontapés e bordoadas de bastão. Mas o brutamontes apenas umedeceu os lábios com a ponta da língua e deu mais alguns passos pelo quarto.
Na sequência um dos agentes de repressão pegou o peso de papel que o rapaz tanto admirava e o atirou contra a parede da lareira. Winston olhou de canto sem movimentar a cabeça e conseguiu ver o pequeno coral de cor rosa rolando pelo chão. Pensou apenas que se tratava de um artefato misterioso e pequeno, que “sempre fora pequenino”. Depois um dos tipos exclamou qualquer coisa e o chutou no tornozelo... Apesar de violento, o golpe não foi suficiente para derrubá-lo.
Outro soltou um pesado murro no estômago de Júlia. No mesmo instante a moça se dobrou e pôs-se a rolar pelo chão, contorcendo-se de dor. Obviamente Winston não movimentou a cabeça em sua direção, mesmo assim por algumas vezes conseguiu captá-la quando ela “entrava no seu campo de visão”. O sofrimento da namorada o abalou ainda mais porque a via numa condição de extrema fragilidade, algo que jamais pensou que pudesse acontecer com ela.
A moça rolava de um lado para outro, provavelmente sem sentir completamente a dor porque seus esforços concentravam-se na respiração. Depois de alguns segundos, dois dos tipos a ergueram como se fosse um saco e a conduziram para fora. Winston ainda pôde notar sua cabeça cambaleante, os olhos cerrados, a pele amarelada e contorcida ainda manchada de maquiagem.
(...)
Ele mal podia imaginar que aquela seria a última imagem que teria da namorada... Na verdade sequer tinha condições de pensar a respeito. Permaneceu quieto e sem se mexer. Enquanto não sofria nenhum golpe, permitiu que a mente vagasse por reflexões a esmo. No momento a questão mais pertinente que lhe veio à cabeça foi a respeito do velho Charrington... Será que os agentes da repressão o haviam capturado? Depois pensou na pobre lavadeira do quintal vizinho... O que teriam feito a ela?
Sentiu a bexiga cheia e estranhou, pois fazia apenas duas ou três horas que se aliviara... O relógio apontava às nove horas da noite. Perturbou-se também com isso porque pelos seus cálculos já não devia haver tanta luz. Será que tinham dormido por mais de dez horas? Nesse caso ele e Júlia teriam acordado às oito e meia da manhã do dia seguinte, e não às oito e meia da noite.
A tensão era grande demais para prosseguir com tal problematização e logo deixou de se perturbar com o horário. Além disso, ouviu umas passadas rápidas pelo corredor... Elas trouxeram o Senhor Charrington ao quarto.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

“1984”, de George Orwell - dos proles surgiria uma nova realidade baseada no igualitarismo e na sanidade; a incansável proletária do quintal vizinho inspirava Winston em suas conjecturas; o tordo do bosque vivia a cantar, assim como a mulher que só conhecia o labutar diário; do Partido não se podia esperar qualquer sensibilidade; tudo indica que Júlia não comungava da utopia ao mesmo tempo em que concordava que o fim da aventura seria trágico; uma “voz de ferro” retumba desde o quadro fixado na parede, uma teletela instalada no ambiente vocifera ordens que anunciam a detenção

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/11/1984-de-george-orwell-fim-da-tarde.html antes de ler esta postagem:

Observar o céu, e lembrar-se de considerar que para os demais povos o firmamento era um, só levou Winston a lamentar o fato de todos padecerem da mesma ignorância. Provavelmente milhares de milhões sequer imaginavam que tipos semelhantes a eles levavam uma vida parecidíssima com a que suportavam... Jamais interagiriam com os estrangeiros, pois desde a infância recebiam incessante propaganda mentirosa que os levavam a odiá-los. De modo algum podiam pensar com autonomia e exatamente por este motivo nutriam apenas o sentimento de devoção à pátria e aos líderes
.
Mais uma vez Winston concluiu que somente entre os “proles” poderia despontar algum movimento que pudesse trazer a esperança de renovação. Apesar de não ler o “livro proibido” até o fim tinha certeza de que a mensagem de Goldstein só podia ser essa. Os “proles” determinariam a organização futura... Seria o caso de pensar se também estranharia o que estava para vir do mesmo modo que se sentia deslocado na realidade que era estruturada pelo Partido.
(...)
Esperava que ao menos a novidade trouxesse o igualitarismo e, com ele, a “sanidade mental”. Tomando por referência a mulher que estendia fraudas no varal só podia pensar que “os proles eram imortais” e que cedo ou tarde a renovação ocorreria. Podia ser que demorasse, mas eles estariam firmes e, como os pássaros, continuariam a transmitir “a vitalidade que o Partido não possuía e não podia matar”.
(...)
Essas reflexões o remeteram à pequena ave do bosque onde se encontrara com Júlia... Perguntou-lhe se se lembrava do tordo que havia cantado para eles. A moça respondeu que não era para eles que o pássaro havia cantado, pois devia apenas estar se distraindo, ou ainda fazendo o que era próprio de seu instinto.
Winston percebeu a falta de sensibilidade da namorada, no entanto seu pensamento estava voltado para a promessa de um novo tempo que se abrigava no seio do proletariado e em seu modo de ser. Não devia esmorecer. Pelo contrário, pois, assim como os pássaros, proles como a mulher do quintal vizinho cantavam. E isso pelo mundo afora:

                   “em Londres e em Nova York, na África e no Brasil e nas terras misteriosas e proibidas de além-fronteiras, nas ruas de Paris e Berlim, nas aldeias da infindável planície russa, nos bazares da China e do Japão”.

Do Partido é que não se podia esperar qualquer atitude simpática. Seus membros não cantavam... Já da parte do proletariado havia exemplos como o da mulher envelhecida, mas sólida e “invencível” apesar das pesadas tarefas e dos muitos partos... Sim, ela se tornara “monstruosa trabalhando desde o nascimento”, mas jamais deixara de cantar.
Era um alívio saber que da gente proletária surgiria “uma raça de seres conscientes”, que assumiria o controle do futuro. E sim, certamente seria possível participar da nova realidade “mantendo o espírito vivo como eles mantinham o corpo, e passar adiante a doutrina secreta de que dois e dois são quatro”.
(...)
Um suspiro e na sequência o rapaz pareceu refletir a respeito da loucura que aquelas considerações podiam significar... Não por acaso sussurrou que os que pensavam como ele e Júlia “eram os mortos”, pois não tinham como escapar.
A garota que ainda se mantinha abraçada a ele concordou, “sim, nós somos os mortos”. Na sequência o quarto foi tomado por uma assustadora “voz de ferro” a sentenciar; “Vós sois os mortos”.

(...)

Obviamente o pânico tomou conta do casal... Cada um saltou para um lado e Winston sentiu o sangue gelar. Júlia arregalou os olhos enquanto a pele de seu rosto assumia uma tonalidade amarelada e a maquiagem que lhe restava se destacava como se estivesse para despender numa só placa.
A “voz de ferro” pronunciou mais uma vez que, de fato, os dois eram os mortos... Júlia disse ao namorado que o som provinha do local onde o quadro estava fixado. A voz respondeu que era mesmo detrás do quadro que saía o som. Depois deu ordem para que permanecessem exatamente onde estavam, exigiu que não se movimentassem enquanto não recebessem as ordens.
Como não podia deixar de ser, Winston apavorou-se e concluiu que o fim para ambos começava naquele momento. Não havia o que fazer além de tentar captar o olhar de sua cúmplice sem encará-la. Talvez restasse a possibilidade de fugir, mas o terror os dominou.
Não podiam desobedecer a “voz de ferro” por mais absurda que fosse. Eles já calculavam que deviam esperar pelo pior quando ouviram um barulho que lembrava o movimento de um ferrolho... Na sequência houve um “tilintar de vidro se quebrando”.
(...)
O quadro despencou da parede. Ele escondia uma teletela.
Júlia disse com voz trêmula que era certo que podiam vê-los... A “voz de ferro” confirmou que sim, podiam vê-los. Vociferou que deviam permanecer no centro do quarto, “um de costas para o outro”; deviam juntar as mãos na nuca sem se tocarem.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
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Prof.Gilberto

domingo, 14 de novembro de 2021

“1984”, de George Orwell - fim da tarde embalado pela cantoria da vizinha proletária em sua interminável tarefa junto ao varal carregado de fraudas; Júlia desperta e estranha a falta de óleo no fogareiro; Winston admira a beleza diferenciada da vizinha; um céu sombrio, o mesmo que abrigava os demais povos

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Como que a confirmar a atmosfera de segurança e sossego do momento, desde o quintal vizinho ouvia-se a voz da proletária a cantar enquanto lidava com os panos que podiam ser fraudas das crianças de sua família...

                   "Foi apenas uma fantasia desesperada; Que passou como um dia de abril; Mas um olhar, uma palavra, e os sonhos provocados; Roubaram o meu coração gentil!"

Winston pensou que apesar da massacrante “Semana de Ódio” carregada de marchas que tomavam conta das ruas, a “cantiga pueril” ainda era a preferida entre os “proles”.
E tão animadamente a mulher cantou que Júlia acabou despertando. Levantou-se e já foi se queixando da fome... Decidiu que faria café e protestou ao notar que o fogareiro estava apagado e a que água havia esfriado. Sacudiu o velho utensílio e notou que ele estava sem óleo. Winston sugeriu que talvez Charrington lhes arranjasse um pouco.
A moça observou que havia verificado anteriormente que estava cheio... Sem dar maior importância à adversidade, decidiu vestir-se, pois reconheceu que a temperatura havia caído consideravelmente.
Winston resolveu que devia vestir-se também, e enquanto se arrumava ouvia a cantoria da mulher em sua dedicada disposição junto ao varal:

                   "Dizem que o tempo tudo cura; Dizem que sempre se pode esquecer;
Mas os sorrisos e lágrimas anos a fio; Ainda fazem meu coração sofrer."

(...)
Ele não resistiu e se dirigiu à janela... Notou que já não havia luz solar incidindo sobre o quintal e que o piso de paralelepípedos parecia lavado assim como o pálido firmamento azul.
A brisa carregava um doce frescor ao qual a mulher parecia indiferente... Sem interrupções, ela caminhava de um lado para outro com os panos e prendedores. Interrompia a cantoria quando os tinha à boca e voltava a cantar logo que os prendia nas fraldas. Winston calculou que ela talvez fosse lavadeira e que vivia das encomendas da vizinhança. Mas não seria improvável se todo aquele serviço “de escrava” se devesse aos seus “vinte ou trinta netos”.
Júlia se aproximou e o acompanhou na observação à mulher. Pode-se dizer que a olhavam fascinados por seu porte avantajado de proletária. Winston prestou atenção às atitudes e a cada detalhe: “os braços grossos alcançando o varal, as ancas muito salientes, fortes, como as de uma égua”. Achou-a bonita e pensou que de outras vezes não a reparara bem... Achou que não levara em consideração que aquele tipo de avançada idade, tão maltratado por sucessivos partos, incessantes trabalhos domésticos, e provavelmente por prolongadas jornadas em alguma fábrica, pudesse irradiar beleza.
Por fim refletiu que estivera errado e considerou metaforicamente que a mesma graça que contemplamos numa “rosa de jardim” pode se esconder num “fruto de rosa brava”. Pensou sobre isso e transferiu o raciocínio para a imagem que tinha de Júlia comparada à da proletária de corpo “sem contornos” e pele enrijecida... De modo algum seria correto considerar o fruto “inferior à flor”!
Depois de algum tempo, o rapaz deixou escapar que achava a vizinha bonita... Júlia exclamou que ela tinha “um metro de diâmetro nas cadeiras”. Ele respondeu que aquele era “o estilo de beleza” da outra. Disse isso e abraçou a cintura da namorada.
A proximidade dos corpos levou Winston a pensar sobre a impossibilidade de terem filhos... Os dois sabiam que jamais gerariam outra vida e sequer trocariam palavras a respeito. Ele voltou a olhar para a proletária do quintal vizinho e ainda em seu exercício de comparação, a imaginou um tipo dotado de braços fortes, mas sem mente. Certamente devia ter “coração quente e ventre fértil”.
Quantos filhos a mulher teria gerado? Ele pensou que uns quinze, talvez mais... Bem podia ser que, em algum longínquo momento, ela experimentasse sua fase de “beleza de rosa brava”, algo que teria durado um ano e nada mais... Depois se tornara inchada “como um fruto fertilizado”, sua pele enrijecera sob o sol das infindáveis tarefas junto ao tanque e o varal. Isso sem contar os muitos afazeres da cozinha, da limpeza da casa e dos cuidados com as crianças... Mais de trinta anos de devoção aos filhos, depois aos netos... Ela continuava a levar a mesma vida, no entanto jamais deixara de cantar enquanto labutava.
(...)
Todo o respeito que Winston percebia nutrir pela desconhecida era embalado pela atmosfera marcada pelo céu que se escurecia e parecia crescer para além das chaminés das casas... Não havia nuvens e o firmamento dilatava-se para ainda mais além, indicando “distâncias intermináveis”.
O céu que podiam contemplar era o mesmo que abrigava os demais povos da Eurásia e da Lestásia.
Em suas reflexões, Winston calculou que, por mais que o regime insistisse em negar, eles tinham mais coisas em comum do que se poderia pensar.
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Prof.Gilberto

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