Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/11/1984-de-george-orwell-charrington.html antes
de ler esta postagem:
Obviamente Winston não podia ter a menor ideia a
respeito do submundo dos presídios... Subornos, “favoritismo e roubalheira de
todo gênero”, além das práticas homossexuais e da prostituição.
Ficaria escandalizado ao
saber que os detentos que quisessem podiam obter destilados de batatas
ilícitos, e não era por acaso que certas funções que demandavam a confiança dos
agentes de segurança fossem destinadas somente aos presos comuns que tinham
vínculos com grupos criminosos e relações com assassinatos... Os demais os viam
como “aristocratas”, enquanto aos presos por razões políticas sobravam tarefas
“menos prestigiosas” e relacionadas à faxina.
O pouco tempo de permanência na detenção transitória foi suficiente para
Winston reconhecer que por ali passavam criminosos de todas as modalidades
imagináveis: “vendedores de entorpecentes, ladrões, bandidos, traficantes,
bêbados, prostitutas”. Entre os bêbados encontravam-se os mais violentos, e
alguns eram tão agitados que os demais se juntavam para controlá-los.
(...)
Num determinado momento os
agentes chegaram com uma mulher que devia contar uns sessenta anos. O seu tipo
lembrava o de uma velha prostituta de avantajados seios, cabelos esbranquiçados
e despenteados... Ela deu
muito trabalho aos tiras, já que resistiu à detenção com pontapés e gritaria.
Nem se pode dizer que a
mulher tivesse percebido que estava no colo de um estranho... Ao se dar conta
da situação, escapou para o lado acomodando-se no mesmo banco. Ela pediu
desculpas ao Winston chamando-o “queridinho” e justificando que os “policiais
sacanas” a atiraram sobre ele.
Talvez tenha considerado que
o rapaz fosse mais distinto do que os de sua convivência já que emendou que os
agentes não sabiam tratar uma senhora... Na sequência deixou escapar um arroto
escandaloso, explicou que era da opinião de que não se deve “segurar a vontade”
e novamente pediu desculpas. Vomitou, despejando um volume asqueroso no chão e
disse que não se sentia bem, mas que “ter soltado tudo enquanto está fresco no
estômago” era o melhor para os casos como o dela.
Voltando-se para Winston,
mostrou que havia se simpatizado por ele e o envolveu com o seu braço
avantajado puxando-o para mais perto. O vapor da cerveja barata e do vômito o inebriou
enquanto ela procurava sua identificação estampada na roupa... Ao constatar que
ele era um Smith, comentou que esse também era o seu nome de família e que o
mais engraçado é que ela bem podia ser sua mãe.
Winston tinha muito em que pensar, mas por um instante considerou que
não seria impossível que aquilo fosse verdade... A mulher tinha idade e físico
que condiziam com as prováveis características da mãe. É certo que se estivesse
viva teria mudado muito, e isso sem contar os trabalhos forçados a que fora
submetida, mas a sugestão da outra o incomodou por um instante.
(...)
A indisposição de ambos para uma conversa mais séria colocou fim na
falação da mulher e depois disso ninguém mais se dirigiu a ele.
Os detentos relacionados aos crimes comuns nem
faziam caso da presença dos presos políticos, os tratavam por “politiqueiros” e
não tinham qualquer interesse por eles. De qualquer modo, o pessoal que
pertencia ao Partido estava bem assustado e sem qualquer intenção de conversar
com quem quer que fosse, evitando principalmente os “companheiros de
infortúnio”.
Num determinado momento,
duas que pertenciam ao Partido Externo cochicharam algo a respeito de certa
sala “um-zero-um”. Winston ouviu sem conseguir relacionar a informação a
qualquer contexto. Sentia que já estava há um bom tempo no cárcere provisório,
mas na verdade haviam se passado umas três horas apenas. A fome e a dor de
barriga o incomodavam... Essas desagradáveis sensações interferiam nos pensamentos.
Nos momentos de dor mais aguda avaliava que precisava comer urgentemente, e
isso lhe ocupava a mente. Quando a dor diminuía, enchia-se de pavor e
expectativa pelo que estava por vir.
A tal ponto se apavorava que notava o coração disparar ao mesmo tempo em
que lhe faltava a respiração. Imaginava-se apanhando das forças de repressão,
dentes quebrados e ele rolando pelo chão a pedir misericórdia. Não pensava em
Júlia, embora de vez em quando sua imagem aparecesse em suas reflexões...
Entendia que não podia pensar nela, apesar de manter-se convicto de que a amava
e que jamais a trairia... Encarava a situação como paradoxal, já que “não
sentia amor por ela e quase não tinha vontade de saber o que lhe estava
acontecendo”.
(...)
O’Brien é que lhe vinha aos
pensamentos com maior frequência. Encarava isso como “um raio de esperança”.
Imaginava que ele já devia saber que o casal havia sido capturado. Winston não
se esquecia de suas palavras a respeito de a “Fraternidade” não se mobilizar em
socorro aos membros que caíam nas garras da Polícia do Pensamento... Lembrou-se
da “lâmina de barba” e imaginou que talvez lhe entregassem uma às escondidas.
A
esse respeito, imaginou que talvez pudesse fazer uso da lâmina quando o levassem
para as grades. Imaginou-se cortando o pulso até os ossos... A dor que aquilo
provocaria seria tanta que duvidava da própria intenção de chegar ao ato
extremo. Talvez nem tivesse tempo ou ocasião para cortar-se devidamente. Talvez
fosse melhor aguardar e “existir de momento a momento” e “aceitar mais dez
minutos de vida mesmo com a certeza de mais tortura”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto