Enfim chegamos à parte do livro em que a autora passa a tratar especificamente da leitura de romances epistolares durante o século XVIII e o quanto essa prática contribuiu para que as pessoas comuns passassem a “imaginar a igualdade” a partir da empatia em relação a personagens que provocavam “emoções torrenciais”.
(...)
A
primeira obra citada é “Júlia ou A nova Heloísa” (1761), de Rousseau. O livro
alcançou grande popularidade, e há que se destacar que foi publicado um ano
antes de “Do Contrato Social”.
O complemento no título, “A nova Heloísa”, trazia grandes
expectativas, pois tratava-se de clara referência à conhecida história datada
de épocas medievais (século XII) sobre o “amor condenado” da jovem Heloísa por Pedro
Abelardo, seu tutor (filósofo escolástico e clérigo católico). O livro não
entra em maiores detalhes, mas sabe-se que a referida história de amor se
tornou famosa através dos tempos por seu conteúdo dramático.
Conta-se que Heloísa pertencia a uma rica família e
que seu tio (Canon Fulbert) se tornara o responsável pela sua educação formal.
Ele contratou Abelardo, renomado filósofo, que se tornou hóspede da família na
capital francesa exatamente para este fim... Contrariando todos princípios da
educação ministrada pelos mestres católicos, o professor se apaixonou pela
jovem.
Não
demorou e Heloísa engravidou. Para evitar maiores escândalos, os dois
resolveram deixar Paris e seguiram para o norte do país, onde o filho do casal
nasceu. Abelardo decidiu obter o perdão de Fulbert e oficializar o matrimônio.
A princípio tudo ocorreu conforme o desejado pelos amantes, que se casaram na
catedral de Notre Dame. Todavia logo se iniciaram as maledicências da sociedade
da época e o tio de Heloísa decidiu perseguir o casal.
Fulbert conseguiu que dois tipos atacassem o filósofo
e o castrassem. Na sequência Abelardo e Heloísa foram separados pelo resto de
suas vidas. Ele tornou-se monge e ela madre superiora de uma abadia. Ambos se
dedicaram aos estudos e à espiritualidade... Enquanto viveram trocaram cartas
de amor.
(...)
Essas
cartas foram publicadas, e por séculos cativaram e inspiraram os leitores.
A personagem do romance de Rousseau, Júlia, também vive a
experiência de se apaixonar pelo tutor, Saint-Preux. Mas decide oprimir a
paixão para satisfazer o desejo do pai autoritário e contrário ao
relacionamento.
O
pai acertara o casamente de Júlia com um soldado russo que lhe salvara a vida
em tempos passados. Evidentemente, Wolmar (esse era o nome do russo) era bem
mais velho do que a moça. Júlia era tão devota às ordens do pai que afogou sua
antiga paixão... Tempos depois passou a cultivar o “amor de amigo” por
Saint-Preux e, de fato, pouco antes de morrer, confessa-lhe isso em uma carta.
O livro pode suscitar a questão em torno da intenção de
Rousseau... Afinal, ele celebrou a submissão da mulher ao pai e ao esposo por
ele definido, ou procurou retratar de modo trágico o modo como Júlia sacrificara
os próprios desejos?
Problematizações à parte, os leitores se impressionaram
com a obra... Muitos se comoveram e se identificaram com a protagonista.
A fama de Rousseau já era considerável e a receptividade
positiva do público fez dessa obra um sucesso de repetidas edições em outros
países. Voltaire referiu-se ao livro como “lixo miserável”... Bem diferente foi
a impressão de Jean le Rond d’Alembert (colaborou com Diderot na
“Enciclopedia”), que escreveu ao próprio Rousseau para garantir que havia
“devorado” o livro e que talvez fosse melhor preparar-se para eventual censura
dado que a França era um “país em que se fala tanto do sentimento e da paixão e
tão pouco se os conhece”.
Leia: A
Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto