sábado, 30 de setembro de 2017

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – rumo à casa de Adélia no meio da madrugada deserta; troca de insultos e rompimento; recolhimento, dias tristes e “visões profanas” no oratório da Titi

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Teodorico perambulou durante aquela noite...
A cidade era só deserto e silêncio. Mesmo assim duas figuras o perturbavam... Elas flutuavam e os vultos transparentes representavam Adélia e o amante... Para o Raposo os dois se beijavam loucamente e às vezes viravam-se na sua direção para insultá-lo e chamá-lo de carola.
À uma da madrugada chegou ao Rossio... Posicionou-se indeciso sob a proteção de uma árvore. Ali fumou um cigarro até encher-se de coragem e rumar para a casa da traidora.
Lentamente aproximou-se e pôde notar que no interior da residência havia movimentação. Estava para abrir o ferrolho quando mais uma vez sentiu-se perturbado. Bem podia ser que a criada Mariana quisesse se vingar de sua patroa por algum motivo que ele não sabia... Ainda na véspera Adélia o chamara “riquinho”... Será que Mariana dissera-lhe a verdade?
O rapaz pensou que mesmo sendo verdade, talvez fosse interessante tolerar o caso de sua amante com o tipo... Ele teria seus momentos de exclusividade e isso deveria bastar-lhe... Mas logo que imaginou o Adelino recebendo as beijocas de Adélia na orelha, quis despejar contra ela toda a sua fúria e lhe desferir socos ali mesmo na escada, local de tantas doces despedidas.
Esses pensamentos o levaram a violentas batidas na porta. Logo a vidraça abriu e Adélia surgiu em camisa e com os cabelos soltos... Ela gritou perguntando quem podia ser o bruto que chegava àquela hora. Ele se identificou e no mesmo instante a luz do candeeiro se apagou.
Por um instante o silêncio tomou conta de todo ambiente... Teodorico pensou nos piores cenários sem descartar um enfrentamento físico, pois tinha mesmo vontade de arrebentá-la. Novamente pôde vê-la... Da varanda ela gritou que não podia abrir-lhe a porta porque jantara muito tarde e estava com sono.
Teodorico insistiu para que ela abrisse e ameaçou nunca mais voltar. Adélia mandou-o “à fava”... Por que haveria de se incomodar com quem lhe atrapalhava o sossego? E emendou que levasse “recados à tia”.
Obviamente ofendido, Teodorico arremessou uma pedra na sua direção e vociferou que ela podia ficar, pois não passava de uma bêbada. Na sequência desceu a rua tentando manter a dignidade. Todavia não demorou para perceber que tinha o coração magoado... A tristeza tomou conta de seu ser.


(...)

A tia Patrocínio notou sua melancolia.
A desculpa que deu para manter-se trancado por longas horas no quarto foi a de que estava escrevendo artigos para o Almanaque da Imaculada Conceição de 1878.
O rapaz ficava a vagar de um lado para outro... Quando parava de repisar o assoalho, mirava-se no espelho e tocava a parte da orelha onde Adélia costumava beijá-lo. No mesmo instante recordava-se do modo agressivo como ela o tratou naquela madrugada... Desde a vidraça o mandara “à fava”! Restava-lhe esmurrar o travesseiro imaginando golpear o peito do Adelino.
Ao entardecer, Teodorico retirava-se para uma caminhada saudável... Todas as janelas abertas que via pelo trajeto o faziam se lembrar dos momentos mais íntimos com Adélia. As peças femininas expostas nas lojas de roupas o levavam a pensar no quanto o corpo dela era perfeito. Até mesmo o sorvete de morango feito no Martinho trazia-lhe lembranças da paixão que vivenciara.
(...)
Depois do chá da noite, Teodorico recolhia-se ao oratório... Algum desavisado poderia pensar que ele buscasse conforto espiritual... Apesar de saber que tinha de continuar a mostrar-se devoto para garantir pelo menos parte da herança da tia Patrocínio, em seu íntimo desprezava a religião, suas imagens, paramentos, livros de orações e demais acessórios.
Ali no oratório permanecia de olhos fixos no Jesus de ouro do crucifixo de madeira escura... A visão se embaçava e em vez da imagem magra de Nosso Senhor, o tipo passava a enxergar o belo corpo rechonchudo de sua Adélia. Nada de coroa de espinhos! Cabelos soltos, negros e provocantes... A figura que se formava na sua imaginação era das mais profanas: Adélia “nua e vitoriosa”, com os braços abertos para ele.
De modo algum o Teodorico entendia o episódio como tentação demoníaca... Achava que se tratava de uma graça concedida pelo Senhor. Suas “queixas de amor” se misturavam estranhamente aos textos das orações.
Ele pensou que de alguma forma os santos pudessem lhe conceder algo. Não custava dirigir-lhes preces sinceras a respeito do amor interrompido.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – por intermédio da criada de Adélia, Teodorico fica sabendo que está sendo traído; juntando mentiras, conquistando ainda mais a confiança da tia e planejando o flagrante

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Aconteceu que numa ocasião em que estava no Montanha a bebericar um refresco, Teodorico foi interrompido por um funcionário do estabelecimento com a informação de que certa Senhora Mariana o aguardava numa esquina próxima.
Teodorico logo pensou que só podia se tratar da criada de Adélia. Certamente a mulher trazia-lhe más notícias a respeito de suas dores nos lados do corpo. Seu receio era tal que enquanto se encaminhava à criada achou que talvez devesse rezar o rosário em honra “das dezoito aparições de Nossa Senhora de Lurdes”... Foi a tia beata quem ensinou que isso era um santo remédio para os “casos de pontada” ou de ataque de touros bravos.
A mulher o levou a um pátio fétido... Via-se que ela estava muito irritada e que havia tido uma discussão nervosa com a patroa. Em síntese, contou sobre situações muito desagradáveis a respeito do que ocorria na casa e que Adélia o enganava. Ele devia saber que aquele Adelino não era sobrinho dela, mas um amante da pior espécie.
Então era isso... Logo que Teodorico deixava os aposentos da amada o outro chegava. Adélia entregava-se aos caprichos do Adelino. Os dois diziam várias ofensas contra o que acabava de se retirar e ainda escarravam em seu retrato. E para que haviam sido as oito libras? O dinheiro foi usado pelo Adelino que comprou um belo terno para o verão... Sobrou até para o casal passear pela feira de Belém!
(...)
Teodorico ouviu com atenção e sentiu-se enojado... A Senhora Mariana explicou que Adélia tinha adoração pelo Adelino, a quem dedicava-se como se fosse uma serva. Ele mesmo poderia conferir! Era só ir à casa durante a noite e esperar que uma hora se passasse para bater à porta.
O Raposo suou... Evidentemente sofria... Agradeceu à Mariana e a dispensou com um “vá com Deus”.

(...)

Quando chegou ao casarão, foi abordado pela tia. Ela notou que ele estava bem abatido... O que teria ocorrido? Ela quis saber. Teodorico respondeu que estivera na Igreja da Graça... Dona Patrocínio disse que, então, se trazia as pernas moles daquele jeito, só podia ser porque tinha visto que a beleza de Nosso Senhor estava diferenciada.
Teodorico concordou. Mas acrescentou que havia tristeza no semblante de Nosso Senhor... E tanto estranhou que até comentou a respeito com o padre Eugênio. Seria desgosto? O religioso respondeu que não era para menos, pois havia muita patifaria no mundo... O rapaz contou à tia que concordava com o padre e emendou que havia também ingratidão, falsidade e traição...
Ele falava sobre essas coisas remoendo-se de tristeza e indignação por tudo o que Adélia lhe aprontara. Estava revoltado, mas não podia externar sua ira na presença de Dona Patrocínio... Mas aproveitou para mentir um pouco mais e garantir e consolidar um pouco mais o seu status de moço beato e bem comportado. Evidentemente já planejava um modo de manter-se fora de casa até as altas horas para flagrar Adélia.
Juntou um pouco do que tinha contado ao Justino (na ocasião em que conseguiu as oito libras) com o drama do Xavier e passou a falar sobre a lamentável condição de um condiscípulo a quem auxiliava abnegadamente... Disse que o moço, que era “respeitador das coisas santas” e muito bom nas redações para o “Nação”, estava nas últimas.
A tia entendeu que Teodorico tinha motivos muito honestos para se sentir triste. Assim o rapaz se sentiu à vontade para comunicar que a situação do moribundo era das mais precárias e que cabia a ele e a outros condiscípulos os cuidados de enfermeiros que ele tanto necessitava.
Com um semblante carregado de compaixão, Teodorico explicou que, naquela noite, ele devia se encarregar de tais cuidados... Será que a tia não lhe permitiria ficar até as duas da madrugada? Depois outro, que inclusive era deputado, o substituiria.
Dona Patrocínio concordou... E mais que isso, garantiu que pediria em suas preces a São José que o condiscípulo enfermo de seu sobrinho tivesse uma morte “sonolenta e ditosa”... O rosto de Teodorico se iluminou no mesmo instante. Mas que grande favor!
Na sequência ele falou que o moço se chamava Macieira... São José precisava saber que ele era vesgo...
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – Adélia pede oito libras a Teodorico; segredos do padre Pinheiro; uma mentira espetacular convence o tabelião José Justino

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Teodorico continuou firme no seu propósito de mostrar-se o mais católico entre todos os que habitavam Lisboa...
Isso o exauria, mas o fato de ter se acertado com a sua Adélia o enchia de ânimo... Ao final do dia a encontrava perfumada e trajando roupão de quarto... Desde a cozinha, onde saboreavam vistosos morangos, podiam contemplar os quintais vizinhos. O que mais podia desejar?
Numa daquelas tardes agradáveis ocorreu de a moça pedir-lhe oito libras.
(...)
Aquilo era uma novidade...
O rapaz só pensava que tinha de atender de alguma forma à solicitação de sua amada. Mas de que forma?
Enquanto seguia para o casarão pensava em como resolver a situação... Talvez o padre Casimiro pudesse lhe emprestar a quantia, mas o religioso estava em Torres a cuidar de suas vinhas. Outro que podia se sensibilizar com sua aflição era Silvério (o Rinchão, dos tempos de estudos em Coimbra), mas este estava em Paris...
Havia o padre Pinheiro, que vivia a reclamar dos problemas de saúde e de dores insuportáveis nos rins. Com este, Teodorico sentia que possuía o trunfo de sempre manifestar especial atenção às suas reclamações. Além do mais, ele o flagrara escapando de local pecaminoso, uma “viela impura”, onde certamente estivera a satisfazer-se com “mulheres da vida”.
Descartou a última possibilidade e já se sentia amargurado quando se lembrou do José Justino. Somente o “piedoso secretário da confraria de São José”, tabelião de Dona Patrocínio, poderia ajudá-lo. E tanta certeza o dominou que já se via estendendo as oito moedas de ouro à Adélia.
(...)
Foi assim que, na manhã seguinte, Teodorico dirigiu-se ao cartório onde trabalhava o Justino... Foi logo falando a respeito de um condiscípulo que passava por dificuldade tremenda. Disse que o tipo estava tuberculoso e sequer tinha como se alimentar... A narrativa apresentou um quadro dramático.
Teodorico deu a entender que ele mesmo ajudava o moribundo que estava acamado numa precária pensão no Largo dos Caídas. Enquanto falava sobre a condição do miserável, fazia questão de garantir que as paragens eram indecentes e contaminadas pelo pecado... Bons cristãos como eles ficavam horrorizados ao passarem por aqueles becos.
Justino concordou. Ouviu ainda que o sobrinho de Dona Patrocínio fazia companhia ao desgraçado, a quem lia orações e as histórias exemplares dos santos. O tabelião se comoveu com o testemunho de abnegação cristã... Teodorico percebeu e emendou que naquela mesma manhã estivera no oratório, onde pediu a Nosso Senhor que o ajudasse a conseguir algum dinheiro para que pudesse auxiliar o pobre condiscípulo.
O descaramento do moço não tinha limite... Ele disse que ouviu uma voz que lhe dizia, desde o alto da cruz, que fosse se entender com o Justino. Era por isso que ele estava ali! O próprio Nosso Senhor o orientara!
O tabelião ouviu-o com atenção e tornou-se pálido no momento em que Teodorico revelou que a “voz do alto da cruz” anunciou que o bom homem lhe daria oito libras para socorrer o rapaz.
Teodorico deu a entender que era por ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo que estava ali... José Justino convenceu-se e deu-lhe as oito moedas solicitadas.
(...)
Graças à sua manobra, Teodorico satisfez a sua Adélia. Assim os dias que se seguiram foram de sossego e paz de espírito.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – Teodorico e sua rotina beata o tornaram especialista em “agiografia”; estafa e mudanças no relacionamento com Adélia; conhecendo o “sobrinho Adelino”

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As paredes do quarto de Teodorico tornaram-se repletas de imagens de santos... A tia e os frequentadores da casa passaram a entender que o seu cotidiano passara a ser de orações fervorosas também em honra de todos os demais, que habitam o céu.
A “vida dos santos” tornou-se um de seus assuntos favoritos... Até mesmo a beata Dona Patrocínio aprendeu com ele alguns que não conhecia (“São Telésforo, Santa Secundina, o beato Antônio Estroncônio, Santa Restituta, Santa Umbelina, São Hipácio...”). E por falar em devoção, o rapaz fez-se assíduo frequentador de matinas, vésperas e “adorações ao Sagrado Coração de Jesus”.
Adorações ao Santíssimo, novenas e missas tornaram-se compromissos imperdíveis. Às sete da manhã participava da missa da igreja de Santana, às nove na igreja de São José e ao meio-dia na Oliveirinha, onde havia a “ermida da Oliveira”... No caminho entre um e outro templo arranjava um tempinho para um cigarro... O percurso pelos locais de devoção prosseguia à tarde com o culto ao Santíssimo na igreja de Santa Engrácia, terço no convento de Santa Joana, depois bênçãos, novenas e visitas a outras igrejas...
(...)
À noite, Teodorico chegava cansado à casa de Adélia. Não era para menos!
Não poucas vezes acontecia de o rapaz atirar-se ao sofá, onde não resistia e começava a cochilar. A moça se aproximava e gritava-lhe ao ouvido para que despertasse... Chamava-o “morcão”...
Conforme os meses se passaram, a rotina de peregrinação pelas igrejas de Lisboa pesou demais. Adélia via que seu amante comparecia cada vez mais extenuado. Ele não pôde deixar de notar que “pelas alegres vésperas de Santo Antônio” ela o despertou tratando-o por “carraça”.
Nem o esgotamento o impediu de perceber que a moça se tornara mais pensativa e um tanto distraída... Várias foram outras ocasiões em que ele notou que ela não dava-lhe atenção às palavras... Isso o deixou preocupado.
As despedidas ainda eram marcadas por cuidados da moça com o seu paletó. Ela ainda o acompanhava até a escada... Mas foi repentinamente que deixou de dar-lhe a “beijoca na orelha” que tanto o agradava.
(...)
Ocorreram mudanças no relacionamento...
Aconteceu que Teodorico notou que a amada já não o esperava com a disposição do começo. Ela o recebia despenteada e “por vestir”... Seu rosto começou a apresentar olheiras e seu aspecto tornou-se cansado.
O cansaço da moça era tanto que ela é que passou a deitar-se no sofá... De olhos fechados, deixava escapar lamentos e fragmentos de “cantigas de estranha saudade”. Ao rapaz não restava outra coisa a fazer senão ajoelhar-se perto dela, ansioso pelo momento do abraço.
Mas os bons momentos de troca de carinho já não se repetiam... Então Adélia despertava e o repreendia... Chamava-o “carraça!” Será que ele não notava que a importunava? E logo dava uma desculpa qualquer... Dizia que sentia azia ou que lhe doíam as laterais do corpo... Depois o dispensava.
Apaixonado, Teodorico seguia para o casarão em Santana aos prantos. Em seus pensamentos pairava a dúvida. Ela ainda o chamaria “morcão”?
(...)
Certa noite de julho, Teodorico resolveu chegar mais cedo à casa de Adélia. A portinha estava aberta e o candeeiro iluminava a escada... A amada estava conversando com um tipo de “bigodinho louro”. Ela vestia saia branca e ao notá-lo tornou-se pálida. O tipo também pareceu se encolher em sua capa.
Depois de algum tempo, a moça disse que o rapaz era seu sobrinho Adelino, irmão do xará Teodoriquinho. Filhos de sua irmã Ricardina.
Teodorico tirou respeitosamente o chapéu e ofereceu a mão para um cumprimento ao Adelino. Perguntou pela mãe e pelo irmão e salientou que estava encantado por conhecê-lo.
O Raposo achou mesmo que sua amada tivesse gostado do encontro, pois naquela mesma noite voltou a chamá-lo “morcão” e aplicou-lhe beijocas na orelha.
(...)
E assim foi pelo resto da semana... Enfim Teodorico experimentou novamente a felicidade.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

domingo, 24 de setembro de 2017

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – uma encenação convincente; profano e “bon vivant” longe dos olhos da Titi; dos hábitos que demonstram a mais profunda conversão

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Pobre Teodorico...
Para herdar a fortuna que pertencera ao comendador Godinho devia chegar à condição de o confundirem com as imagens que a boa senhora, sua tia, tinha por sagradas!
(...)
O rapaz decidiu colocar-se na disputa de uma vez por todas.
Se dependesse dele, aquela imensa fortuna não seria transferida para a Igreja, que já possuía muitas catedrais exuberantes, além das arrecadações em ouro a que muitos Estados se submeteram ao longo do tempo. E isso sem contar os muitos tesouros que todos sabiam que ela possuía!
No limite, era ele contra o crucificado. E, no final das contas, Dona Maria do Patrocínio é que definiria o “vencedor da contenda”...
(...)
Quando chegou ao casarão, Teodorico percebeu que a tia ainda estava no oratório. Então considerou que o momento era propício para iniciar a sua ofensiva. Dirigiu-se ao quarto, tirou os sapatos e a casaca, desgrenhou os cabelos e, de joelhos e a gemer, seguiu pelo corredor.
Dona Patrocínio estranhou e caminhou até ele, que havia chegado à porta do oratório. A cena era das mais pitorescas, já que o moço gemia e clamava por Jesus, seu Senhor e Salvador...
Ela quis saber o que estava acontecendo... O sobrinho atirou-se ao assoalho e disse que depois do teatro estivera com o doutor Margaride com quem conversou e tomou chá... Explicou ainda que , quando passava pela Rua Nova-da-Palma começou a pensar na morte e no quanto necessitava de Jesus, que padeceu por todos nós...
Com toda extravagância que podia encenar, Teodorico dizia que só Ele salvaria a sua alma. Disse ainda que esteve em prantos e que tinha necessidade de se recolher ao oratório, pois isso o aliviaria.
Dona Patrocínio ficou impressionada com o que viu e ouviu. Sem perder tempo, acendeu as velas e ajeitou a imagem de  São José para que o sobrinho tivesse seu momento de prece...
Teodorico entrou no local de oração rastejando. Em silêncio, Dona Patrocínio retirou-se e fechou a porta... Ao notar-se sozinho no sagrado recinto, Teodorico acomodou-se na almofada que a tia costumava usar e continuou a suspirar de modo que todo o casarão pudesse ouvir.
(...)
Mas aquilo era a mais pura enganação... Os pensamentos de Teodorico pertenciam unicamente à viscondessa de Souto Santos, ou de Vilar-o-Velho, que vira no teatro São Carlos.
Não lhe saía da cabeça seus “ombros maduros e suculentos”... O que mais desejava era beijá-la loucamente. E sua depravação e desrespeito à religião não tinha mesmo limites... Tanto é que imaginou-a ali mesmo, “aos pés de ouro de Jesus”.

(...)

Desde então, a devoção de Teodorico passou a ser vista como a mais radical.
Às sextas-feiras comia-se bacalhau no casarão. Isso era uma espécie de sacrifício, um jejum, a que todos da casa deviam se submeter.
Pois o rapaz passou a rejeitar a sua porção do peixe. Todos o viam alimentar-se apenas de uma “côdea de pão” e um mísero copo d’água.
Todavia quando a noite chegava, Teodorico empanturrava-se de bacalhau bem temperado e acebolado, “com bifes à inglesa”, na casa de Adélia.
Também no seu modo de vestir-se, Teodorico mostrou-se mais modesto.... Além do surrado paletó, seu guarda-roupa abrigava a capa roxa “de irmão do Senhor dos Passos” e o hábito acinzentado da Ordem Terceira de São Francisco.
Evidentemente essas peças ficavam à mostra escondiam os “panos ingleses e profanos” que só eram usados longe dos olhos da tia. Já sobre a cômoda de seu quarto, deixou bem à vista uma “litografia colorida de Nossa Senhora do Patrocínio” e, diante dela, uma lamparina que ardia permanentemente.
A Titi ficou encantada ao notar o esmero do sobrinho com as coisas da religião.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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