domingo, 31 de dezembro de 2017

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – a dramática história do pobre vendilhão de pedras esculpidas expulso do templo – II parte; nova concentração para a declaração de confirmação da sentença do Senadrim; comemorações interrompidas ao anúncio do intérprete a respeito da possibilidade de perdão ao condenado

Boas festas a todos.

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O velho teceu duras críticas ao Rabi da Galileia... Em sua opinião, Ele não se manifestou contra os comerciantes ricos porque esses podiam pagar as pesadas taxas! Sua atitude tirou o seu sustento...
Restava-lhe andar por aí... E pensar que tinha uma filha viúva e adoentada e com os filhos pequenos e famintos! O que ele não conseguia entender era por que sofrera tamanha violência... Como podia aquilo ocorrer? Sempre fora humilde, cumpridor do Sabá e frequentador da sinagoga em Naim! Acaso fazia algum mal vendendo nas proximidades do templo? Ofendia o Senhor? Jamais estendera a esteira e instalara suas pedras sem antes beijar as lajes e pedras!
Lágrimas escorreram pelas faces do pobre velho que por fim sentenciou que “Jeová é grande” e que havia sido expulso pelo Rabi porque era pobre...
(...)
Teodorico emocionou-se com o depoimento do velho... Em seus registros, explicou que ficou angustiado porque entendia que Jesus não se dera conta do trauma causado ao pobre “vendilhão”... Em síntese, o Raposo pensava que as mãos misericordiosas de Jesus criaram involuntariamente essa situação assim “como a chuva benéfica por vezes, fazendo nascer a sementeira, quebra e mata uma flor isolada”.
(...)
Sensibilizado com a história do comerciante injustiçado, Teodorico resolveu dar-lhe várias de suas moedas (“dracmas, crisos gregos de Filipe, áureos romanos de Augusto”...), incluindo uma da Cirenaica que trazia como cunha “uma cabeça de Zeus Amon”.
Com isso imaginava “pagar a dívida de Jesus” em Sua injustiça aos pobres que vendiam no templo... Teodorico pensou nos próprios pecados... Talvez sua iniciativa levasse “o Pai de Jesus” a perdoá-lo.
Também Topsius resolveu entregar “um lepta de cobre” (valia “um grão de milho” na Judeia) ao homem... Este acomodou o dinheiro junto ao peito, olhou para as nuvens e pediu ao Pai dos céus que se lembrasse daquele que lhe dava para “o pão de longos dias”.
(...)
O velho pedreiro de Naim sumiu no meio da multidão...
No átrio as pessoas se concentravam novamente à sombra do grande tecido romano sustentado por mastros...
No centro das atenções estavam o escriba, que parecia ainda mais ofegante por causa do calor, e o Rabi cercado por guardas do templo... Sareias chegou com seu cajado e tomou sua posição.
Logo apareceram os lictores em meio ao brilho de armas... Evidentemente antecediam o pretor... Este chegou com sua longa toga, subiu os degraus e sentou-se na cadeira de costume.
O silêncio dominou o ambiente de tal forma que foi possível ouvir as buzinas da longínqua Torre Mariana.
Sareias abriu o pergaminho escuro e o colocou sobre a mesa onde já se encontravam os vários livros de regras... O escriba traçou uma rubrica e cravou um selo no documento apresentado pelo representante do Sanedrim, que condenava o Rabi da Galileia à morte...
Na sequência, Pilatos ergueu o braço e confirmou a sentença da corte judaica. Depois de colocar uma das pontas de seu manto sobre o turbante, Sareias abriu as mãos e elevou-as ao céu para orar... Via-se que os fariseus comemoravam... Alguns se beijavam triunfantes... Outros aclamavam “Bene et belle! Non potest melius!" a se divertirem com as máximas proferidas após os julgamentos presididos pelos romanos.
De repente o intérprete tomou a palavra... Os que celebravam interromperam suas manifestações e silenciaram. Foi uma surpresa porque todos ali tomavam o caso por encerrado.
O fenício havia falado discretamente com o escriba... Depois de um leve sorriso pronunciou em alta voz, em caldaico, que na festa de Páscoa havia o costume (desde as determinações do pretor Valério Grato) de o pretor conceder o perdão a um criminoso.
O silêncio tornou-se aterrador... O intérprete explicou que o pretor propunha o perdão ao Rabi... E acrescentou que o povo local tinha o direito de escolher, entre os condenados, quem seria beneficiado.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

sábado, 30 de dezembro de 2017

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – a dramática história do pobre vendilhão de pedras esculpidas expulso do templo – I parte

Boas festas a todos.

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/12/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_13.html antes de ler esta postagem:

Antes de qualquer resposta, Topsius perguntou se ele negociava no templo... O pobre homem confirmou e disse que no tempo das festividades de Páscoa subia ao templo para ofertar sua prece a Deus... Depois instalava-se nas proximidades da porta de Susa, bem em frente ao pórtico do rei e ali organizava a esteira e as pedras.
Ele explicou que não tinha licença para montar uma tenda e negociar... Mas adiantou que com o que recebia não tinha como se tornar um comerciante legalizado. Salientou que os que vendiam debaixo do pórtico, acomodados à sombra e com seus tabuleiros de cedro, eram negociantes ricos e licenciados... Havia os que pagavam um “ciclo de ouro”! Ele jamais poderia sonhar com semelhante condição. E era por isso que o lugar onde costumava ficar era um dos piores.
O homem prosseguiu sua narrativa de desencantos... Disse que certos tipos brutos passavam para empurrá-lo ou surrá-lo com bastões... Acrescentou que, apesar de tudo, encolhia-se e conseguia sobreviver aos dias. E que, assim como ele, havia outros pobres que se colocavam mais abaixo (citou certo Eboim, de Jopé, que oferecia um óleo para “crescimento dos cabelos”, e também certo Oséias, de Ramá, que oferecia flautas de barro).
O vendedor de pedras salientou que até mesmo os soldados da Torre Antônia faziam vistas grossas quando os viam... Menahem, que normalmente fazia a guarda durante a Páscoa dizia-lhes que podiam permanecer desde que não gritassem enquanto oferecessem suas mercadorias.
E por que eram complacentes? Porque todos sabiam que eles eram pobres que não podiam pagar as taxas exigidas aos comerciantes e que, além disso, tinham crianças para alimentar.
(...)
O homem não esperava passar por uma situação mais constrangedora... Ele explicou que a época da Páscoa era especial para os que faziam comércio porque milhares de peregrinos chegavam desde muito longe. Qualquer um entenderia que era nessas ocasiões que pobres vendedores como ele obtinham a renda que os sustentaria no ano.
Topsius e Teodorico podiam não compreender, mas muitos compravam de suas imagens e “pedras da lua” para afugentar o demônio. Muitas vezes conseguia a soma de três dracmas por dia de trabalho! Graças a isso podia adquirir lentilha para os que o aguardavam no humilde casebre. A alegria o invadia e então cantava louvores ao Senhor.
A narrativa era das mais enternecedoras. Tanto é que os dois estrangeiros já nem se importavam com os apetitosos figos para ouvir o velho comerciante de pedras... Na sequência, ele passou a detalhar os problemas que homens como ele tiveram com a chegada do Rabi da Galileia.
Disse que Ele foi chegando cheio de cólera, agitando seu bastão e a vociferar que todos os que vendiam nas portas do templo poluíam “a casa de Seu pai”... Num golpe de fúria espalhou toda a sua mercadoria... Aquelas pedras eram o seu “ganha pão”! No entanto foram perdidas... Também o companheiro Eboim, de Jopé, teve seus vasos de óleo quebrados... De tão espantado, o pobre coitado nem conseguiu gritar.
Por mais incrível que possa parecer, foram os guardas do templo que os acudiram... Menahem chegou a dizer ao Rabi que Ele era bem duro com os pobres... E depois perguntou com que autoridade agia daquela maneira... O violento Rabi respondeu que era com a autoridade “de Seu Pai” e passou a falar da “lei severa do templo”.
O que podiam fazer? Tiveram de fugir com o pouco mercadoria que conseguiram resgatar... Enquanto isso, os mercadores ricos e licenciados, acomodados em seus tapetes feitos na Babilônia, aplaudiam a ação do Rabi e apupavam os clandestinos que corriam desesperadamente...
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – o fim da negociação com o vendedor de figos; o pobre velho que sobrevivia da venda de pedras entalhadas; dramática história de operário explorado e maltratado

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O negociante de hortaliças prosseguiu em sua falação oferecendo os dois figos por “um bom traphik”... No mesmo instante, Teodorico protestou por considerar injusto o valor anunciado (correspondia a dois tostões da moeda portuguesa). Vociferou que o homem podia retirar-se e chamou-o de ladrão. Mas logo sugeriu pagar uma dracma pela quantidade de figos “que coubessem no forro largo de um turbante”...
O homem considerou que a oferta o ofendia, e estava pronto para proferir uma série de impropérios ao mesmo tempo em que invocaria os profetas de sua religião, quando Topsius interveio. O alemão disse que o negociante era “ruidoso e vazio como o odre cheio de vento”, mas, sendo Jeová grande, oferecia uma moeda de ferro, um meah que trazia um lírio aberto em uma de suas faces, por todos os figos que estavam no cesto.
Era “pegar ou largar”... Topsius emendou que conhecia o caminho que dava em belos pomares... Disse que sabia dos que eram banhados pelas águas de Enrogel (da fonte Em-Rogel)...
O homem percebeu que estava sendo dispensado, então levantou-se no parapeito e encheu de figos a ponta do manto que Teodorico ajeitou... Na sequência sorriu e disse que os clientes eram "mais benéficos que o orvalho do Carmelo”.
(...)
Teodorico e Topsius ocuparam-se dos figos de Betfagé... A saborosa merenda os sustentaria na sequência da jornada. Mas aconteceu que mal se ajeitaram no mesmo trecho do parapeito da galeria do palácio, outro negociante se posicionou onde antes estivera o vendedor de figos e folhas...
Este outro tipo era um velho magro, de olhar profundo e humilde... Assim que o notou, Teodorico sentiu o impulso de jogar-lhe uns figos “e uma moeda de prata dos Ptolomeus”.
Mas a fragilizada criatura apressou-se a tirar uma reluzente pedra do meio dos farrapos que cobriam o seu peito. A pedra havia sido trabalhada e nela via-se uma imagem do templo... Estava claro que o velho era um artesão que vivia de decorar pedras como aquela para vendê-las aos peregrinos.
Topsius examinou o objeto... O velho retirou muitas outras variadas pedras (mármore, ônix, jaspe...)... Cada uma com uma gravura ou inscrição diferente (tabernáculo no deserto, nomes de tribos, figuras diversas em relevo, cenas de batalhas...).
O homem cruzou os braços e aguardou que os potenciais compradores analisassem sua mercadoria. Topsius cravou que o tipo só podia vir das bandas da Pérsia... Pelo visto era hábil na confecção daqueles artigos. Podia ser um adorador do fogo como tantos de sua região, que realizavam peregrinações até o Egito.
O alemão salientou que era comum os persas percorrerem o longo trajeto descalços, levando fachos acesos. E que eles sacrificavam galos negros, cujo sangue derramavam sobre a grande esfinge.
(...)
O velho ouviu horrorizado a interpretação do estrangeiro... Logo que pôde negou tudo e passou a explicar sua verdadeira história.
Disse que era pedreiro em Naim... Por um bom tempo trabalhou em obras no templo e também nas construções projetadas em Bezeta por Herodes Antipas. Contou que muito havia sofrido com o tratamento desumano dispensado pelos intendentes aos operários, que muitas vezes eram açoitados.
Por causa daqueles infortúnios, seus músculos arrebentaram... Doente e sem forças, não conseguiu trabalhar mais. Para piorar ainda a situação, tinha de dar de comer à filha e aos netos... Foi por isso que passou a sair à procura de pedras especiais pelos montes.
Seu ofício desde então tornara-se aquele... Gravava nomes santos, esculpia relevos representando locais sagrados para vender no templo.
(...)
A história do velho tornou-se ainda mais dramática no ponto em que ele explicou que, na véspera da Páscoa, certo Rabi da Galileia apareceu cheio de cólera e tirou-lhe o ganha-pão...
O homem disse isso e apontou para o lado onde se aglomeravam em torno de Jesus. Teodorico quis saber como que aquele Rabi, “de coração divino e amigo dos pobres”, poderia proporcionar-lhe dor e injustiça.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – mercadores expulsos das imediações do templo se concentram para ofender o Rabi da Galileia; “crise de identidade” no longo sonho?; vendilhões dos mais variados ofícios; negociando figos com um mercador de hortaliças, folhas e frutos

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Teodorico registra que a inesperada movimentação chamou-lhe a atenção... Foi Topsius quem explicou que aqueles certamente eram mercadores que haviam sido importunados por Jesus no dia anterior.
De acordo com o sábio alemão, em mais uma de Suas imprudências, o Rabi agitou um bastão exigindo a aplicação da lei que proibia o comércio profano no templo... Os mercadores recolheram suas bugigangas às pressas e deixaram as proximidades dos pórticos.


(...)
Neste ponto do relato do longo sonho, notamos que Topsius se dirige a Teodorico tratando-o por “D. Raposo”... Como isso se justifica?
Vimos que desde que subiu à galeria para acompanhar o processo que o Sanedrim movia contra Jesus, Teodorico perdeu completamente os referenciais de sua existência e passou a se reconhecer como personagem da época, cujo “tempo presente” era o mesmo dos que o rodeavam!
A confusão só se explica se levarmos em consideração as alterações do estado delirante do sujeito que experimenta o sonho.
(...)

Toda aquela gente de negócios se reuniu porque o dia alcançara a “sexta hora judaica”. Liberados dos afazeres de ofício, concentraram-se para acompanhar a continuação do processo contra o Rabi.
Conforme o tempo passava, mais e mais negociantes apareciam... Muitos acabavam de sair das tinturarias da vizinhança e traziam borrões de pigmentos na pele... Escribas  se acomodavam sem abandonar os tabulários... Os instrumentos de trabalho revelava o ofício de cada um, assim não era difícil identificar jardineiros, alfaiates ou músicos fenícios.
Duas gregas com suas perucas amareladas, que andavam “sacudindo a roda da túnica” e a espalhar um cheiro de manjerona, foram reconhecidas como prostitutas de Tiberíade.
(...)
Para os mais afastados, a grande concentração de pessoas impossibilitava uma melhor visualização do palco das ações que todos pretendiam acompanhar... Mesmo assim, Teodoricus (ou Teodorico Raposo) pôde notar muitos legionários cercando o condenado com suas lanças... Do ponto onde estava, mal distinguia o Rabi. O avanço da multidão estava contido, mas a aglomeração persistia.
(...)
Então não foi por acaso que o português passou a prestar atenção ao triste tilintar de uma sineta desde a passagem abaixo da galeria. Logo notou um vendedor com seu cesto carregado de hortaliças e outras folhas e frutos (folha de parra e figos de Betfagé)... Teodorico quis saber o preço daqueles mimos de hortos “tão louvados pelos evangelhos”...
O homem perguntou o que eram aqueles poucos figos para um estrangeiro “da abundância” que vinha “dalém do mar”. Depois explicou e fez sua propaganda ao dizer que Jeová orienta “que os irmãos troquem presentes e bênçãos”... Disse que seus figos haviam sido colhidos logo pela manhã e, de tão formosos e suculentos, podiam ser servidos à mesa de Hanão.
O vendedor colocava-se como negociante dos mais desinteressados... Disse mesmo que aqueles “melhores figos da Síria” eram como que prenda e que Deus abençoaria o comprador.
Teodorico entendeu que assim negociavam desde os tempos dos patriarcas... Percebeu que devia fazer a sua parte e declarou que Jeová, Deus forte, o ordenava a pagar pelos frutos “com o dinheiro cunhado pelos príncipes”.
O outro acomodou o cesto no chão e segurou um figo em cada uma das mãos, repetiu que “Jeová é o mais forte” e se era da Sua vontade que o estrangeiro adquirisse os frutos mais doces do que do que os lábios da própria esposa, então devia definir um preço por eles.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – o pretor fala de sua lealdade ao imperador e a respeito de concessões aos sacerdotes locais; “lavando as mãos”; a pena máxima se aproxima; Teodoricus adormece, “sono no sonho de Teodorico”; concentração de negociantes nas imediações do Pretório

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Pilatos entendeu que precisava se justificar...
Começou a falar que já fazia sete anos que governava a Judeia... Perguntou se Rabi Robã ou um de seus liderados poderia confirmar se durante aquele período o viram cometer injustiças ou se o flagraram praticando alguma infidelidade ao império...
Empalideceu... Mas isso não o impediu de dizer que as ameaças que tinha acabado de ouvir não o intimidavam. Destacou que sempre fizera concessões às autoridades sacerdotais. Justificou que agira dessa forma para proveito da ordem e do imperador.
Garantiu que o imperador o conhecia bem... Era para que não houvesse desacordos que fizera concessões. Lembrou que desde Copônio, nenhum outro procurador respeitara tanto as leis judaicas quanto ele. Acrescentou que mandara supliciar os dois homens de Samaria que apareceram para “poluir o templo”.
Ele queria deixar claro que não desejava dissensões, mal entendidos ou troca de “palavras amargas”...
Os fariseus ouviram o pretor... Diante da porta de cedro o silêncio se fez... De repente ele interrompeu a falação e pareceu hesitar. Logo esfregou e sacudiu as mãos como se as tivesse mergulhado numa vasilha de águas impuras.
Na sequência perguntou se queriam mesmo a vida do “visionário”... Sentenciou que não se importava com isso e podiam tomá-lo. Se achavam a flagelação insuficiente e pretendiam crucificá-lo, podiam fazê-lo.
Por fim ressaltou que nada tinha a ver com o derramamento daquele sangue... No mesmo instante um dos levitas disparou com paixão que eram eles que pretendiam que o sangue de Jesus fosse derramado em suas próprias cabeças.
(...)
As palavras do levita fizeram alguns estremecer... Talvez considerassem mesmo que poderes sobrenaturais podem tornar vivas as coisas pensadas.
Pilatos voltou-se para o interior da sala e desapareceu... O decurião fez uma saudação aos que acompanhavam Sareias e o Rabi Robã e depois trancou a porta de cedro.
Rabi Robã estava sereno e “resplandecente como um justo”, declarou que era preferível que um homem só sofresse, pois o povo inteiro é que não devia padecer... Alguns fariseus seguravam sua túnica e a beijavam...

(...)
Teodoricus se emocionou... Atirou-se sobre um banco e procurou algum ponto onde pudesse fixar o olhar... Notou dois legionários que tinham folgado os cinturões e bebiam de um recipiente constantemente abastecido por um negro que trazia o odre acomodado nos ombros... Mais adiante estava uma mulher de destacada beleza e força a sustentar os filhos junto aos peitos nus... Mais distante ainda via-se um pastor carregado de peles a exibir o braço ensanguentado.
Na sequência o rapaz fechou os olhos... Sentiu-se ainda mais confuso ao notar que pensava na vela toda fumarenta e vermelha que deixara junto à sua cama na tenda.
Depois adormeceu.
(...)

Ao despertar, observou que a cadeira reservada para o pretor estava vazia. À frente dela estava a almofada gasta pelos pés de Pilatos... Do átrio chegava o murmúrio da grande concentração de pessoas... Uma multidão!
Entre os presentes, havia muitos homens rudes que usavam capas curtas e empoeiradas das lajes das praças... Não poucos traziam balanças e gaiolas em suas mãos. Mulheres que os acompanhavam esbravejavam contra o Réu da Galileia... Todavia algumas delas estavam mais preocupadas em anunciar mercadorias que traziam nas dobras de suas vestes (grãos de aveia torrada, potes com óleos unguentos, corais, braceletes elaborados com fios metálicos de Sídron...).
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – de acordo com o Rabi Robã, a impunidade proposta por Pilatos visava a instabilidade na Judeia para que ele despontasse como líder qualificado para outros postos de maior destaque; “fé romana” e “fé púnica”; ameaça de envio de comissão à Roma e necessidade de reconciliação

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/12/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_92.html antes de ler esta postagem:

Rabi Robã exclamou que Pilatos parecia ver o que ele e os judeus que ali estavam não traziam em seus corações... Acrescentou que, em contrapartida, eles viam muito bem o que o pretor carregava no próprio coração... Depois quis saber por que se importava com “a vida ou a morte de um vagabundo de Galiléia”.
O velho sustentou que não fazia sentido o pretor não demonstrar interesse em “vingar deuses” pelos quais não nutria o menor respeito ao mesmo tempo em que tomava uma decisão que salvava um “profeta” cujas profecias eram-lhe desprezíveis.
Aquilo só podia ter uma explicação... O Rabi adiantou que havia malícia em Pilatos que, no fundo, pretendia unicamente a destruição de Judá.
Essas palavras agitaram os fariseus, que passaram a apalpar suas túnicas como se estivessem buscando adagas.
(...)
Rabi Robã prosseguiu com sua característica calma e lentidão nas palavras... Sua conclusão era óbvia... O que estava por trás da impunidade defendida por Pilatos era algo gravíssimo. Onde já se viu, libertar um insurrecto que declarou-se “rei numa província de César”? Essa impunidade alimentaria outras ambições!
O velho fez referências a Judas de Gamala (ver http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/12/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_14.html) e deu a entender que outros rebeldes se sentiriam tentados “a atacar as guarnições de Samaria”... Dando continuidade à sua ofensiva contra Pilatos, o Rabi Robã salientou que a impunidade ao Galileu provocaria novas badernas e isso resultaria fatalmente numa ofensiva militar romana contra a Judeia.
(...)
As premissas levantadas pelo sábio judeu levavam à conclusão de que Pilatos desejava isso mesmo, uma revolta sem precedentes para que ele se apresentasse ao imperador como o soldado vitorioso que subjugaria a região e os líderes locais... E por trás de tudo só podia haver o interesse do pretor em galgar postos mais elevados e dignos, como o de procônsul na Palestina... E por que não na própria Itália?
O sábio ancião, que tinha muito prestígio no Sanedrim e era confidente de Caifás, passou a provocar Pilatos com ameaças de cunho político. Perguntou se aquela estratégia (de provocar agitações em Jerusalém para se sobressair militarmente) exprimia o que chamavam de “fé romana”...
Depois o Rabi Robã deixou claro que nunca estivera em Roma, mas podia garantir que aquele procedimento nada tinha com a “fé romana”. Bem diferente, seria chamado de “fé púnica” (numa referência às Guerras Púnicas que os romanos travaram com os cartagineses, a quem acusavam de trair acordos; a “má-fé”, já que desrespeita a fé dada”).
(...)
As palavras de Rabi Robã foram duríssimas... Mas ele disse ainda mais. Falou que Pilatos ou qualquer outra autoridade romana não podiam confundi-los com os pastores da Idumeia... Ali na Judeia estavam em paz com o imperador e por isso cumpriam o seu dever.
Simplesmente haviam condenado um rebelde que se levantara contra César... No entanto o próprio pretor não queria cumprir o seu dever! O ancião deixou claro os próximos passos de sua gente... Enviariam emissários a Roma que esclareceriam o ocorrido... Apresentariam a sentença proferida ao insurgente e também a recusa do pretor. Isso evidenciaria a lealdade do Sanedrim e da gente ordeira da Judeia... Ao mesmo tempo escancararia o procedimento traiçoeiro daquele “que representa a lei do império”.
Após essas duras palavras, Rabi Robã disse que o pretor podia retornar ao Pretório... Sareias animou-se a gritar que Pilatos devia se lembrar dos “escudos votivos”, pois assim perceberia a quem o imperador dava razão naquela questão.
(...)
A verdade é que o pretor tornou-se pensativo e cabisbaixo...
Talvez estivesse pensando sobre a repercussão daquela trama... Não lhe faltavam inimigos na corte... Sejano e Cesônio eram desses que se dedicariam a aproximar os emissários judeus ao imperador... Este se tornaria desconfiado e logo seria tomado pela suspeita de que ele estaria envolvido num pacto com o “Rei dos Judeus” para provocar uma grande rebelião contra o império.
Para ele era demais! Talvez estivesse levando em consideração que sua intenção de fazer a justiça pudesse custar-lhe o “proconsulado da Judeia”.
É por isso que decidiu caminhar até a porta e chegar mais próximo do Rabi Robã... Abriu os braços dando a entender que desejava a reconciliação.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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