sexta-feira, 31 de julho de 2020

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – ainda sobre a discussão dos direitos aos protestantes e argumentos contrários à extensão aos judeus da França da época de sua Revolução; sobre o Edito de 1787, direitos civis aos protestantes e bloqueio do efetivo direitos por certas cortes; considerações de Saint-Étienne sobre as mudanças de postura dos deputados em relação à votação de 24 de dezembro de 1789; Tackett e sua opinião sobre a rejeição dos moderados à postura dos conservadores; argumentações do abade Jean Maury em favor dos protestantes e contrárias aos judeus; petição de judeus do sul da França com justificativas similares às dos protestantes sobre a aprovação de direitos iguais

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2020/07/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_19.html antes de ler esta postagem:

Com o debate em torno da concessão de direitos aos protestantes teve início vários outros a respeito dos direitos para as demais minorias, notadamente a dos judeus. O fato é que os direitos garantidos aos católicos haviam se tornado parâmetro para as outras demandas.
Vimos que ocorreu a discussão em torno dos direitos aos que exerciam profissões historicamente mal vistas, como a dos atores e dos carrascos... Muitos colocaram objeções, mas elas não receberam apoio significativo. No caso dos judeus foi diferente, já que se verificou grande resistência. O livro cita que certo deputado que se dispunha a discutir a emancipação do segmento argumentava sobre os judeus que:

                   “sua ociosidade, a sua falta de tato, um resultado necessário das leis e condições humilhantes a que estão sujeitos em muitos lugares, tudo contribui para torná-los odiosos”.

Para o referido membro da Assembleia, a aprovação dos direitos aos judeus acabaria se tornando motivo de perseguição a eles porque certamente haveria uma reação negativa e violenta da população. Várias agitações contra as comunidades judaicas haviam ocorrido no leste do país e não era por acaso que o deputado fazia a observação.
Como vimos anteriormente, na véspera do Natal de 1789 os deputados aprovaram a extensão dos direitos aos que não professavam o catolicismo e às profissões de um modo geral, todavia o tema específico dos judeus foi adiado.
(...)
A aprovação dos direitos aos protestantes contou com a aprovação de grande parte dos membros da Assembleia. Um deles registrou em seu diário a alegria que o contagiou por ocasião da votação.
É bem verdade que o chamado Edito de Tolerância de 1787 representou um grande avanço para os protestantes... A partir de sua promulgação eles puderam praticar os seus cultos, casar e “transmitir sua propriedade” aos filhos devidamente registrados. Tudo reconhecido pelos oficiais, entretanto a esses direitos civis não se acrescentavam “direitos iguais de participação política”.
Apesar do Edito, em algumas regiões as altas cortes continuaram a obstruir sua aplicação até 1789 e pode-se dizer que ao tempo da aprovação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão vários representantes ainda resistiam em relação à aprovação da liberdade religiosa.
(...)
A pergunta que podemos lançar é em relação aos motivos de haver a significativa mudança observada em dezembro... Para Rabaut Saint-Étienne, os representantes protestantes na Assembleia passaram a assumir maior “responsabilidade cívica”. E eles não eram poucos, já que somavam vinte e quatro deputados, incluindo ele mesmo.
Antes dessas discussões, e apesar das restrições impostas por oficiais de certas cortes, os protestantes já ocupavam alguns cargos e chegaram a participar das eleições para os Estados Gerais.
Timothy Tackett, que Lynn Hunt considera o mais importante “historiador da Assembleia Nacional”, aponta que os conflitos políticos internos entre os deputados explicam em muito a mudança de opinião em relação aos protestantes. Para ele, os moderados sentiam-se incomodados pelo modo como os conservadores obstruíam discussões e votações e terminaram votando junto com os esquerdistas favoráveis à extensão dos direitos.
Um dos que se destacaram por obstruções ao debate e à aprovação dos direitos era Jean Maury, clérigo e abade, evidentemente representante do Primeiro Estado... Mas mesmo ele discursava em favor dos direitos aos protestantes que praticavam religião e se submetiam a leis como os católicos. Fazia isso ao mesmo tempo em que se declarava contrário à extensão aos judeus, e assim formulava uma distinção “evidente” entre as duas minorias.
(...)
No sul da França havia comunidades judias de portugueses e espanhóis que se organizaram na elaboração de uma petição direcionada à Assembleia. No documento argumentavam que já exerciam direitos em algumas localidades.
Como se vê, a ideia de apresentar uma minoria religiosa mais “habilitada aos direitos” do que outra apenas “alargou a fenda na porta”, e a argumentação que fez avançar as votações em favor dos protestantes passou a ser utilizada pelos judeus.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quarta-feira, 29 de julho de 2020

“Rei do Congo – A mentira que virou folclore”, de José Ramos Tinhorão – a falta de documentos escritos sobre a posse do D. Afonso do Congo e as lacunas sobre o que de fato ocorria nas cerimônias; da participação do Mani Vunda e a transmissão de diferenciada força vital ao manicongo; o manuscrito 8080 e a “síntese simplista” sobre a posse de D. Afonso do Congo; padre Antonio Brásio e a ideia da adoção de preceitos do cristianismo pelos congoleses como “ngolo”

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2020/07/rei-do-congo-mentira-que-virou-folclore_26.html antes de ler esta postagem:

Em que pese o fato de haver entre os habitantes do Congo alguns missionários portugueses letrados desde o final do século XV, não se conhece qualquer documento escrito que relate fatos relacionados à posse de D. Afonso (outrora Mbemba a Nzinga, filho do D. João Nzinga a Nkuwu).
Conforme salientado em postagem anterior, sabe-se que a transição se deu através de confronto que trouxe à tona desavenças “até aquele momento mantidas sob controle”. Como sabemos, as desavenças entre os africanos haviam sido introduzidas desde que os portugueses iniciaram as conversões ao cristianismo e o batismo de lideranças locais. Vimos que D. Afonso tornou-se árduo defensor do catolicismo e liderou a repressão aos tradicionalistas seguidores de Mpangu a Kitina.
(...)
Naturalmente havia muitas diferenças entre o modo como os europeus concebiam o poder político e a visão que os congoleses tinham a respeito da figura do manicongo que, para eles, era investido de tal poder graças a prerrogativas religiosas e a rituais específicos.
Nenhum documento dos ocidentais registrou a posse do D. Afonso do Congo no início de 1506... O autor de “Rei do Congo” lamenta e nos leva a refletir sobre a “fusão do sagrado e do profano na constituição política da autoridade” que se poderia verificar nas cerimônias “de entronização dos chefes maiores do Congo”.
Ressalte-se que aquele que chegava ao posto de manicongo, mais do que ter sido escolhido pela maioria das lideranças políticas provinciais, comprometia-se em ritual religioso e simbólico de tal modo que passava a ser respeitado como ente de poder político e de poderes sobrenaturais.
Conta Tinhorão que, na ocasião da posse, o Mani Vunda (também chamado Nsaku ne Vunda), o maior de todos os sacerdotes e reconhecido como “intermediário histórico entre o mundo dos mortos e seus descendentes vivos”, passava (poderes) “ao novo chefe do Congo sob a forma de uma força vital capaz de permitir-lhe a preparação da prosperidade e felicidade de seu povo”.
(...)
Na postagem anterior vimos um pouco das origens (a partir de relatos orais) da importância do Mani Vunda para os congoleses... O autor fundamenta a sua ideia de ritual de “investidura” do Mbemba a Nzinga D. Afonso, e destaca a atuação do líder religioso, na narrativa sobre Nitnu Wene (que teve de recorrer ao “intermediador entre os vivos e os mortos” antes de efetivamente se tornar líder político).
Também com base na tradição oral dos africanos, certo religioso que se dedicou às atividades missionárias no Congo redigiu em 1623 um manuscrito com a pretensão de registro da história da posse de Mbemba a Nzinga:

                   “(...) Tanto que o católico príncipe D. Afonso alcançou tão milagrosa vitória (sobre seu irmão Mpanza a Nzinga em 1506) foi aclamado por rei, com grande contentamento dos seus, e consolação espiritual e temporal dos portugueses”.

Podemos dizer que o que se afirma ter ocorrido na África do início do século XVI poderia perfeitamente traduzir um episódio político de qualquer nação europeia... Tinhorão insiste que o evento não deve ter sido tão simples como o padre missionário relatou no chamado “manuscrito 8080 da Biblioteca Nacional de Lisboa”.
Obviamente o autor do manuscrito estava acostumado à “tradição patriarcalista europeia”, que determinava a elevação automática do primogênito do rei ao trono... Mas o que ocorria na África era complexo e “resultava da escolha de algum dos chefes de clãs das várias linhagens elegíveis, realizada por votação de um colegiado de representantes provinciais em praça pública”.
Se a transmissão do poder ao D. Afonso do Congo se deu em um contexto de divergências, seria o caso de refletir sobre o que de fato se deu... Para Tinhorão, depois de ser reconhecido como vencedor da disputa com o irmão, o rei cristão articulou um rápido entendimento com as lideranças tradicionalistas das diversas famílias em nome de um consenso que possibilitasse a paz para governar ao mesmo tempo em que se introduziria “certos modernismos cristãos sem confronto total com as regras gerais da tradição local”.
Pelo visto foi isso mesmo o que ocorreu... Em “O problema da eleição e coroação dos reis do Congo” (Revista Portuguesa de História, Tomo XII, de 1949), do padre Antonio Brásio, admite-se que os preceitos do cristianismo só foram adotados pela gente do Congo:

                   “como fonte de ‘ngolo’, isto é, de poder. É apenas acrescentar um poder novo ao poder antigo, sem que se possa falar de uma verdadeira renúncia a este”.

Leia: Rei do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

domingo, 26 de julho de 2020

“Rei do Congo – A mentira que virou folclore”, de José Ramos Tinhorão – oralidade e origens do Congo; um jovem guerreiro rompe com a família para se tornar Nitnu Wene em outras paragens e se dispõe a sangrento e violento ritual; atormentado, o primeiro mani recorre ao Mani Vunda para se reconciliar com os mortos; Mongo wa Kaila, o “monte da partilha” e a divisão nem sempre pacífica das terras entre os chefes dos clãs; no centro de Mpemba surge a capital; antiga tradição rompida pela intromissão dos cristãos portugueses

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2020/07/rei-do-congo-mentira-que-virou-folclore_25.html antes de ler esta postagem:

Não há registros documentais tradicionais e escritos sobre as origens do Congo pelo simples fato de as primeiras sociedades locais não possuírem escrita... Devemos à tradição oral a conservação de narrativas que dão conta dos primórdios da gente que viria a constituir o povo obediente ao manicongo.
(...)
Inicialmente ocorreu a ocupação por famílias oriundas de outras regiões... Elas se tornaram maiores ao incorporarem nativos e se reuniram em clãs que demandaram uma organização política mais definida, sobretudo porque tinham de estabelecer áreas de assentamento e fronteiras. Desse modo buscavam evitar conflitos com os vizinhos.
Como foi salientado anteriormente, graças à tradição oral pode-se vislumbrar uma narrativa que, além de possível e adequada, traz à tona “o significado simbólico dos fatos que descreve transformados em mito”.
De acordo com a tradição, o filho de um dos mais importantes clãs (o Nimi Lukeni) das proximidades do rio Zaire decidiu ampliar sua liderança política por terras mais ao sul e, para isso, rompeu seus laços de parentesco com a comunidade inicial... Dessa maneira conquistou autonomia para prosseguir em busca de seguidores que legitimassem a condição de chefe (nitnu), ser reconhecido como “mwene” (algo como a dignidade da soberania) e, assim, poderia adotar o título de Nitnu Wene, sendo reconhecido e obedecido por todos.
Contudo, deixar os vínculos familiares e romper definitivamente com os que era ligado sanguineamente não era tão simples... Isso só se concretizava quando o guerreiro postulante tirava a vida de um ente que o vinculava aos antepassados. Como o costume era matrilinear, acabou matando uma de suas tias que estava grávida... Ainda de acordo com a tradição, uma tia era como que “segunda mãe” dos filhos do clã.
(...)
O jovem concretizou satisfatoriamente o ritual de sua libertação em relação à família e logo chegaria à desejada condição de Nitnu Wene... Todavia conta-se que o processo o tornou atormentado em relação à violência praticada contra uma parente tão significativa. De acordo com o estudioso da história do Congo, monsenhor Jean Cuvelier, a personagem tornou-se afetada por “um estado de confusão mental” que se define como “laukidi”, que entre os africanos significa “comportamento alienado”.
Essa condição o fez curvar-se perante as forças religiosas/espirituais... Tanto é que recorreu ao mais antigo dos anciãos, liderança da província de Mbata, Nsaku ne Vunda, que era quem fazia a intermediação entre os vivos e os mortos. Como resultado, por suas limitações, Nitnu Wene declinou de um poder que poderíamos considerar “total”... Desde então os rituais de “consagração e legitimação de poder dos manis do Congo” passaram a contar necessariamente com participação do Mani Vunda.
(...)
De qualquer maneira, Nitnu Wene pôde prosseguir em seu projeto de dar início a uma nova linhagem em outras paragens. De fato, vários clãs resolveram segui-lo até chegarem a uma localidade no planalto do Mpemba conhecida como Mongo wa Kaila (Monte da Partilha), onde deram início à partilha das terras...
Em boa parte das ocasiões os chefes chegavam a acordos e a instalação de sua gente se dava de modo pacífico. Este foi o caso do Vale do Nkise, em que os grupamentos que disputavam Npangu e Mbata acertaram politicamente suas diferenças... Mas aconteceram disputas mais radicais que envolveram o uso da força, como as áreas como o Soyo, Mbamba e Nsundi.
Ao Nitnu Wene restaram as terras do Mpemba, que deram origem à capital do Congo e, de acordo com os registros de Tinhorão, foi chamada por diferentes nomes no decorrer de sua História:

                   “Kongo dia Wene (Congo do fundador), Nkumba a Ngudi, Mbanza Congo dia Ntotila (cidade do chefe maior, ou ntotila nitnu né Kongo) e, finalmente, com o advento dos cristãos, Kongo dia Ngunga, o Congo do Sino, após a construção da igreja de São Salvador.

Pelo visto, tudo indica que Nzinga a Nkuwu (o manicongo que a partir do batismo cristão tornou-se D. João do Congo) tenha sido o sexto mani da linhagem desde as origens “míticas”. Ele teria morrido em 1505 ou 1506... Nas postagens anteriores vimos que no fim da vida buscou reconciliar-se com os costumes de sua gente, mas não teve êxito na transmissão aos muxicongos (do mesmo modo que chegara ao poder). E isso, como sabemos, ocorreu porque seu filho cristianizado saiu-se vencedor do conflito com Mpangu a Kitina.
O D. Afonso do Congo passou a seguir as orientações e costumes conforme lhes eram transmitidos pelos aliados portugueses.
Leia: Rei do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

sábado, 25 de julho de 2020

“Rei do Congo – A mentira que virou folclore”, de José Ramos Tinhorão – citações de Alfredo de Albuquerque Felner sobre outros nomes pelos quais Nzinga a Nukuwu era chamado; das diferenças entre as estruturas europeia e da África Subsaariana ao tempo do contato dos portugueses com o Congo; fragmentos de “Mãe Negra”, de Basil Davidson; culto aos antepassados e fragmentos de “Los negros”, de Maurice Delafosse; migrações desde o sul do Zaire e origens do manicongo

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2020/07/rei-do-congo-mentira-que-virou-folclore_20.html antes de ler esta postagem:

O manicongo Nzinga a Nukuwu, “rei” do Congo cristianizado pelos portugueses e batizado como D. João, também é chamado por outros nomes em diferentes citações que tratam da História da região... Tinhorão cita alguns:

                   “Mocingacua, Manimocamini, Monimolyamini e, ainda, Muzinga Angu” conforme “documento de 1624 citado por Alfredo de Albuquerque Felner em ‘Angola: apontamentos sobre a ocupação e início do estabelecimento dos portugueses no Congo’”, de 1933.

(...)

Na época em que começaram as tratativas com o “rei” do Congo os reis portugueses não tinham a menor noção das diferenças e distanciamento estruturais entre o seu país e o território africano.  No começo de 1491 D. Manuel lidou com o pretenso aliado da África Subsaariana sem atentar para este importante detalhe... A ideia de um regimento para o reino do Congo conforme citado na última postagem teve este viés.
Obviamente não se levava em consideração que enquanto os europeus estavam superando contextos medievais e desenvolviam novos conceitos (também de valorização das realizações individuais) e estruturas a partir do Renascimento, a realidade da gente do manicongo resumia-se à sua condição de coletivismo vinculada a “uma economia local de trocas, com uma conchinha (nzimbu) servindo de moeda apenas como valor de referência para a realização de permutas”.
A partir de “Mãe Negra”, de Basil Davidson, Tinhorão destaca que:

                   “Quando os portugueses chegaram à África Ocidental, numa época de autocracia na Europa, julgaram encontrar ali as mesmas hierarquias rígidas de poder e de precedência que conheciam na sua terra. Apressaram-se em interpretar a África em termos de Portugal de quatrocentos”.

(...)
Também o modo como os africanos lidavam com a propriedade causou estranhamento aos portugueses... Fundamentados no Direito Romano, os europeus reconheciam e defendiam a propriedade privada. A gente de Nzinga a Nkuwu se orientava por antigo costume que sustentava que a utilização do solo deve ser coletiva... Para os africanos, mesmo a terra por eles ocupadas não lhes pertencia. A ideia que se admitia era a de que seus antepassados lhes concederam para que tirassem dela os recursos necessários para a sobrevivência. Cada geração tinha o compromisso e a responsabilidade de cuidar da terra e de repassá-la para os descendentes. E assim deveria ser “até o fim dos tempos”.
A respeito das informações contidas no parágrafo anterior, Tinhorão destaca trecho de “Los negros”, do etnólogo Maurice Delafosse:

                   “A terra, em verdade, não se liga a um indivíduo ou, pelo menos, só se liga a ele enquanto representante de uma coletividade. Neste caso é o antepassado fundador da família que, ao encontrar um espaço de terra vago e sem indicação de posse anterior, terá de certo modo firmado com ele como que um contrato pelo qual obtém o direito de uso em caráter exclusivo e perpétuo em favor da coletividade”.

Essa concepção fez com que entre os africanos se estabelecesse um culto aos ancestrais... Há informações de que isso tenha se estruturado cerca de um século ou século e meio antes da chegada dos portugueses à região... Grandes chefes foram zelosos no cumprimento da tradição que se tornou parte fundamental da mentalidade religiosa de seu povo... A partir das informações do jesuíta André Cordeiro, que passou parte da vida no Brasil, recolhidas pelo citado Alfredo Felner, reconhecia-se que o primeiro desses grandes chefes teria sido:

                   “Motino Bene, ou Nitnu Wene, já a indicar com tal nome sua condição de Nitnu, chefe maior, e Mwenw ou Muene, autoridade (origem do título Mani)”.

O livro destaca que os fundadores das famílias mais antigas se tornavam reverenciados pelos descendentes, e estes levavam os cultos para onde fossem. Outros que se incorporassem ao grupo só eram definitivamente admitidos a partir do momento que se submetiam à tradição de culto aos fundadores e ao conselho dos mais antigos.
Destaca ainda que os primórdios dessa mentalidade entre os africanos do Congo datariam do começo dos anos 1300, quando ocorreram migrações desde o sul do Zaire em direção ao “planalto central da região do Mpemba, onde à margem do rio Lunda ficava a climaticamente privilegiada futura capital Mbanza Congo, que após a chegada dos cristãos seria São Salvador”.
Leia: Rei do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

segunda-feira, 20 de julho de 2020

“Rei do Congo – A mentira que virou folclore”, de José Ramos Tinhorão – as lutas entre os rebeldes liderados por Mpangu a Kitina e os apoiadores de Mbemba a Nzinga; atuação dos portugueses com suas armas poderosas em favor de Mbemba a Nzinga; a narrativa do MPLA e a carta de D. Afonso I do Congo a D. Manuel; referências ao “Mayombe”; reatando as relações diplomáticas; um regimento para o reino do Congo


Com a morte de Nzinga a Nkuwu, o D. João do Congo, seu sobrinho Npangu a Kitina tornou-se
liderança entre os que pretendiam restaurar as antigas tradições... Por outro lado, Mbemba a Nzinga, filho do falecido manicongo, fiel aos portugueses, ao catolicismo e batizado com o nome cristão de D. Afonso, reuniu os apoiadores portugueses...
Evidentemente ocorreu uma luta entre as duas partes e o D. Afonso do Congo contou com a iniciativa de sua mãe, também cristianizada e batizada com o nome de D. Leonor, que se retirou do Sundi e seguiu para tomar o poder em Mbanza, a capital.
Os guerreiros aliados a Mpangu cercaram Mbanza com condições de derrotar os apoiadores de D. Leonor, pois estavam em maioria. Mas aconteceu que os portugueses possuíam armas mais poderosas e conseguiram afugentá-los... Houve ferrenha perseguição e as tropas fiéis ao D. Afonso provocaram matança sem precedentes, na ocasião Mpangu a Kitina foi atingido mortalmente.
(...)
Em nota, Tinhorão esclarece que para a narrativa sobre os episódios desde a morte de Nzinga a Nkuwu recorreu ao “História de Angola”, particularmente ao “capítulo sobre o período afro-português no Congo”... O referido ensaio data de 1975, é uma produção coletiva de integrantes do MPLA (Movimento pela Libertação de Angola) e foi publicado inicialmente dez anos antes, em Argel.
À página 61 há o registro sobre a morte de Mpangu a Kitina em batalha...
Já D. Afonso, filho do manicongo convertido ao cristianismo, redigiu uma carta em 1513 ao então rei de Portugal, D. Manuel... Na missiva relatou que seu primo Mpangu foi preso “e por justiça julgado que morresse, como de fato morreu por se alevantar contra nós”.
Como se vê, o MPLA adotou uma versão que faz de Mpangu a Kitina um mártir morto em combate contra seu primo “traidor da gente africana”... 
(...)
Neste ponto vale destacar que em “Mayombe” do escritor angolano Pepetela há um personagem guerrilheiro do MPLA chamado de Pangu-A-Kitina pelos demais. Certamente uma homenagem ao personagem histórico.
A ficção baseada em fatos nos ensina muito sobre o movimento armado pela independência de Angola em relação a Portugal, os dramas pessoais dos que se engajaram na luta e as dificuldades relacionadas ao tribalismo impregnado no modo de ser dos guerrilheiros. Além do combate aguerrido, o Pangu-A-Kitina do livro de Pepetela destaca-se pelos cuidados médicos que dispensava aos camaradas feridos.
Neste blog há postagens referentes ao “Mayombe”.
(...)
D. Afonso I do Congo chegou ao poder... Podemos imaginar que as relações com Portugal tenderiam a melhorar sensivelmente, já que a sua afinidade com o cristianismo era de todos conhecida.
Porém, em vez disso, notou-se uma espécie de “esfriamento diplomático”... O final do século XV foi marcado pela coroação de D. Manuel, que sucedeu a D. João II no trono... Como sabemos, o novo reinado foi marcado por uma série de conquistas marítimas e pelo intenso comércio com a Índia.
Da parte de Portugal o interesse pela África se arrefeceu... Mas D. Afonso I do Congo decidiu retomar as conversações com o poderoso reino europeu.
Na memória de sua gente ainda se celebravam os presentes concedidos por D. João II ao rei congolês (“um requintado guarda-roupa da última moda europeia”) e a um seu enviado do Congo chamado pelo nome cristão de D. Pedro. Os registros do Visconde de Paiva Manso em “História do Congo” (1877) dão conta de que também a mulher do citado D. Pedro e muitos outros de sua comitiva receberam “diversas peças de vestuário” no final de dezembro de 1493.
Apenas em 1508 D. Manuel resolveu enviar uma missão constituída por doze religiosos ao reino do Congo... Tal iniciativa resultou em frustrada, já que os frades adoeceram de violenta febre e morreram logo que chegaram à África.
Sem perder tempo, D. Afonso I, o congolês, encaminhou nova embaixada comandada por seu primo, Pedro, para ter com D. Manuel...
Entre 1509 e 1511 funcionários do governo português elaboraram um regimento que deveria ser adotado pelo reino do Congo... A ideia era a de “revestir o Congo de um figurino europeu”.
Em 1512 a embaixada liderada pelo primo de D. Afonso retornou ao Congo com a novidade enviada pelos aliados portugueses.
Leia: Rei do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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