segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

“Anotações de um Jovem Médico – e outras narrativas”, de Mikhail Bulgákov – um pouco sobre o autor, formação médica e atuação junto aos feridos de guerra; breve estágio em Nikólskoie e Viázma, opção pela literatura e críticas ao Estado Comunista; os contos das “anotações do jovem médico”; a respeito de “Eu matei” e “Morfina”; três casamentos

A produção literária de Mikhail Afanássievitch Bulgákov é vasta e está inserida no contexto de conflitos que marcaram a Rússia ao tempo da Revolução Bolchevique, guerra civil, a “Nova Política Econômica” e stalinismo... Seus contos, novelas e dramaturgia caracterizaram-se pela crítica (satírica na maioria dos casos) ao regime e ao modo como grande parte dos produtores da cultura dita erudita se submeteu à burocracia soviética.
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O autor nascido em 1891 esteve entre os combatentes da Primeira Guerra, tendo atuado como cirurgião em diversas instalações de atendimento aos feridos. Formou-se em Medicina pela Universidade de Kiev às vésperas das agitações revolucionárias na Rússia e pouco depois se instalou na pequena Nikólskoie, a 250 quilômetros de Moscou, onde permaneceu por cerca de um ano e exerceu o cargo de médico-chefe. Passado este “primeiro estágio”, foi transferido para Viázma, em cujo hospital exerceu a chefia “do setor de doenças infecciosas e venéreas”.
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Já por essa época Bulgákov dedicou-se à produção textual... Seus primeiros escritos nos levam às realidades dos pobres povoados que formavam o vasto país do começo do século passado. Podemos conferir alguns deles em “Anotações de um jovem médico – e outras narrativas”, livro lançado pela Editora 34, com tradução de Érika Batista...
As referidas anotações não foram redigidas com o intuito de explicar as alterações políticas que se processaram a partir de 1917, pois o interesse do jovem médico de então era produzir relatos a respeito do começo de sua prática profissional, que logo foi trocada pelo ofício da escrita...
Que não se pense que a motivação para a mudança para a literatura tenha sido a falta de competência médica, pois há relatos que dão conta de que Bulgákov não só era muito bem formado como realizava diagnósticos certeiros e bem-sucedidas intervenções cirúrgicas.
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Logo no início das anotações entendemos que os recém-formados eram encaminhados a unidades hospitalares onde a demanda por cuidados médicos eram crescentes... E quanto mais afastadas de Moscou, maiores eram as necessidades dos sofridos camponeses.
Os povoados eram sempre muito carentes, e como se não bastassem as doenças que normalmente afligiam a pobre gente, amarguravam perdas, feridas e amputações resultantes dos conflitos da guerra que ocorria desde 1914.
Naturalmente esse também era o caso de Nikólskoie, que no texto de Bulgákov aparece com o nome fictício de Múrievo. Nota da tradutora esclarece ainda que “Viázma, a capital da província” é citada no livro com o nome de Gratchióvka.
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No prefácio, Érika Batista recorre a considerações de Marietta Tchudakova, “doutora em Filologia e presidente da Fundação Bulgákov”, contidas em “M.A. Bulgákov, ‘Um coração de cachorro’. ‘A vida do senhor de Molière’. ‘Novelas’. ‘Contos’” para esclarecer mais a respeito do autor.
Assim ficamos sabendo que Tatiana Láppa (1892-1982), primeira esposa (de 1913 até 1924) do jovem médico na época em que ele se instalou em Nikólskoie, deu seu testemunho à doutora Tchudakova a respeito das dificuldades que enfrentaram para chegar à localidade e sobre a gravidade de certos casos que levavam Bulgákov a recorrer desesperadamente aos compêndios de Medicina.
É certo que Tatiana Láppa o ajudara em diversas ocasiões... Todavia ela não é citada nas anotações. Em vez disso, suas intervenções aparecem nas ações das enfermeiras.
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As “anotações do jovem médico Bulgákov” somam sete contos e como se afirmou anteriormente relatam algumas experiências que ele vivenciou durante a sua prática logo após a conclusão do curso de Medicina. São eles: “A toalha com um galo”; “A estreia obstétrica”; “Garganta de aço”; “Tempestade de neve”; “A praga das trevas”; “O olho desaparecido”; “Exantema estrelado”. A estes foram acrescentadas duas narrativas: “Morfina” e “Eu matei”.
Em “Eu matei” temos uma conversa entre médicos na qual um deles, o doutor Iáchvin, faz um relato a respeito de sua dramática experiência por ocasião da guerra civil que ocorreu na Ucrânia à época da Revolução Russa. O texto repercute o conflito dos adeptos da campanha nacionalista, e da causa da independência, comandada por Symon Petliúra contra os bolcheviques... Depois de recrutado compulsoriamente por nacionalistas, o doutor se viu obrigado a tratar de militares feridos do Primeiro Regimento de Cavalaria e a amargurar a espera pelo próprio “fuzilamento por deserção”. Presenciou práticas atrozes ordenadas pelos comandantes até o momento em que teve a oportunidade de se vingar e escapar.
A história de “Morfina” é sobre a angustiante existência de um médico viciado no entorpecente líquido analgésico... O relato bem concebido revela um pouco do que o próprio autor experimentou por certa época.
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De 1925 a 1932, os escritos de Bulgákov foram duramente perseguidos. O conturbado período coincide com o tempo em que esteve casado com Lhubov Belozerskaya, sua segunda esposa.
O autor trabalhou por mais de doze anos em “O Mestre e Margarida”, sua obra mais conhecida e celebrada. Ao final da vida, cego, foi auxiliado por Yelena Chilóvskaia (com quem casou-se em 1932), que redigia o que ele ditava. A produção foi concluída em 1940, ano de sua morte, e publicada nos anos 1960 como a maioria de seus textos.
Leia: “Anotações de um Jovem Médico e outras narrativas”. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

“1984”, de George Orwell – o fim; convicção de que doces lembranças surgem carregadas de falsidade; enfim, o boletim do Ministério da Paz, toque de clarim e anúncio de esmagadora vitória; euforia geral e sensação particular de redenção; afeto e devoção ao líder na nação

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/01/1984-de-george-orwell-improdutivo.html antes de ler esta postagem:

Winston se lembrou das dificuldades de sua mãe para cuidar das duas crianças. Além das péssimas condições de moradia e da falta de comida, ela tinha de encontrar meios de conter a fúria do filho. A criança não tinha maturidade sequer para notar que também sua pequena irmã necessitava dos cuidados da pobre mulher...
Na comodidade da mesa do Castanheira recordou especificamente do dia chuvoso, quando se irritou por não poder sair do pequeno e escuro quarto. Fez tanta pirraça que a mãe se viu obrigada a providenciar algo que o fizesse sossegar. A solução que ela encontrou foi ir até a pequena loja que funcionava precariamente e esporadicamente para comprar um passatempo, um jogo com tabuleiro e dados. Antes de se retirar para a chuva, implorou para que “ficasse bonzinho”.
A memória do Winston adulto dava conta de que ela voltou para o pobre quarto “com uma caixa de papelão contendo um jogo de obstáculos”. Parecia não precisar de muito esforço para sentir o “cheiro da cartolina molhada” invadindo suas narinas... Era um jogo muito simples, dos mais baratos que se podia encontrar, e ainda por cima com defeito no tabuleiro. Os “dados de madeira caíam de lado”. Lembrou que na ocasião olhou para o brinquedo sem demonstrar qualquer interesse. Na verdade, seu humor até piorou...
Mas a mãe acendeu um pedaço de vela e se sentou no chão para que pudessem jogar. A iniciativa o animou de um momento para outro e logo se envolveu completamente na disputa. A cada expectativa de vitória sucedia uma “arapuca” que fazia o jogador recuar várias casas e isso provocava gritos e gargalhadas.
Jogaram oito partidas e cada um venceu quatro... A filha mais nova nada compreendia, mas alegrava-se com as risadas da mãe e do irmão. Desde a cama, onde foi colocada entre dois travesseiros, a menina se divertia... A tarde foi de felicidade simples para os três, “como na primeira infância”.
(...)
Essas reminiscências apagaram-se porque Winston as expulsou da memória. Voltou os olhos para o xadrez e sentenciou para si mesmo que se tratava de falsas lembranças... Sabia que algumas vezes elas chegavam à sua mente e perturbava-se com elas. Sabia também que isso não era um problema desde “que soubesse do que se tratava”, e esse era o seu caso. Vivia com a convicção de que certamente algumas coisas ocorreram, mas outras só podiam ser produto de sua imaginação.
Pegou novamente o bispo branco... No mesmo momento ouviu-se um forte toque de clarim. Assustou-se e a peça caiu sobre o tabuleiro... Foi “como se lhe tivessem dado uma alfinetada”. Enfim o boletim do Ministério da Paz! E as notícias eram ótimas... Vitória!  Logo soube, pois era sempre assim, ao toque de clarim, que a teletela introduzia comunicados e notícias de “boas novas”.
Todos os que se encontravam no Castanheira pararam o que faziam para dar atenção ao boletim. A rigor não se conseguia ouvir o que estava sendo transmitido por causa da euforia que se instalou pelas ruas. Mesmo assim, Winston tentou captar alguns fragmentos que davam conta de que tudo se sucedera conforme ele havia imaginado...

                   “Um vasto exército transportado pelo mar, secretamente concentrado, um golpe repentino na retaguarda do inimigo, a flecha branca cortando a haste da negra”.
                   "Vasta manobra estratégica... Perfeita coordenação... Derrota integral... Meio milhão de prisioneiros... Completa desmoralização... Controle de toda a África... Leva a guerra a uma distância visível do fim... Vitória ... A maior vitória da história humana... Vitória, vitória, vitória!"
 
(...)

Winston se mantivera sentado. Todavia seus pés movimentavam-se como se estivesse em meio à multidão que corria pelas ruas e celebrava a vitória das tropas. Era isso mesmo o que estava pensando, que se misturara ao povo e gritava vivas ao Grande Irmão.
Voltou seu olhar para a grande imagem do cartaz e pensou que tudo estava bem, pois “o colosso (que) dominava o mundo” havia suportado todas as hordas asiáticas. Não podia crer que há poucos instantes desconfiara que o boletim pudesse trazer más notícias.
A derrota dos eurasianos significava muito para Winston. Ele sabia que desde que pusera os pés no Ministério do Amor pela primeira vez havia passado por uma profunda transformação. Mas nada se comparava à sua reação naquele instante triunfal... Finalmente podia dizer que estava salvo.
(...)
A movimentação e gritaria das ruas já haviam diminuído consideravelmente. O boletim prosseguia com relatos a respeito dos prisioneiros e das baixas sofridas pelos inimigos... Os garçons retornaram aos seus afazeres e um deles trouxe mais gin para Winston.
Extasiado, notou que o copo estava novamente cheio... Não mais se via misturado aos que celebravam a vitória... Em vez disso, via-se no Ministério do Amor, “perdoado e com a alma branca de neve”. Via-se na tribuna a confessar e a entregar nomes... E depois a andar “pelo corredor de ladrilhos brancos, com a impressão de caminhar ao sol, acompanhado por um guarda armado” que dispararia o balaço contra seu crânio.
Mas isso era devaneio desbaratado... Logo voltou a fitar para o cartaz do Grande Irmão...

                   “Levara quarenta anos para aprender que espécie de sorriso se ocultava sob o bigode negro. Oh mal-entendido cruel e desnecessário! Oh teimoso e voluntário exílio do peito amantíssimo! Duas lágrimas cheirando a gin escorreram de cada lado do nariz”.
                   “Mas agora estava tudo em paz, tudo ótimo, acabada a luta. Finalmente lograda a vitória sobre si mesmo. Amava o Grande Irmão”.

Fim.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

“1984”, de George Orwell – improdutivo trabalho nos relatórios sobre a “Décima Primeira Edição do Dicionário de Novilíngua”, acaloradas discussões e nenhuma decisão; mudança da programação musical, tensão no aguardo do boletim sobre a guerra e visualização de diagrama sobre a movimentação das tropas; buscando alívio no olhar do Grande Irmão; lembrando do quarto da infância e sua precariedade num dia chuvoso e dos sacrifícios da mãe para conter o destempero do menino

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/01/1984-de-george-orwell-sobre-o-fim-do.html antes de ler esta postagem:

Esta é a penúltima postagem sobre “1984”...

Ainda a respeito do trabalho de Winston, e mais especificamente sobre as discussões desenvolvidas com os outros quatro que viviam mais ou menos as mesmas condições que ele, temos de ressaltar que dificilmente chegariam a um termo a respeito do que deviam relatar.
O caso é que se a tarefa relacionada à “Décima Primeira Edição do Dicionário de Novilíngua” fosse realmente uma necessidade, o Partido não permitiria que as reuniões se sucedessem sem que nada fosse produzido. Além disso, temos de levar em conta que questões referentes à “colocação das vírgulas antes ou depois das aspas” eram desprovidas de sentido, tomavam várias horas de debate e obviamente não levavam a nenhum lugar.
Na maioria das vezes o grupo de trabalho se reunia e debandava sem nada produzir porque se chegava à conclusão de que não tinha o que fazer. Havia situações em que, pelo contrário, as reuniões eram agitadas e marcadas por calorosas discussões... Cada membro apresentava redações, “relatórios pessoais” e propostas de “longos memorandos que nunca terminavam”. Tanto falavam e defendiam suas produções textuais que os assuntos se prolongavam, revelando “sutis divergências”.
Em muitas ocasiões os desentendimentos resultavam em “ameaças de recursos à autoridade superior”, mas logo os ânimos arrefeciam e “eles ficavam em torno da mesa, entrefitando-se, com olhos defuntos, como duendes que se desvanecem ao cocoricar do galo”.
(...)
As teletelas do Castanheira silenciaram... Isso foi o suficiente para que Winston voltasse a pensar sobre o problema da guerra na África. Imaginou que dessa vez o Ministério da Paz anunciaria o boletim. Mas não foi isso o que ocorreu, pois logo o ambiente se encheu de nova programação musical.
Estava tão preocupado que passou a mentalizar o mapa do continente africano... Imaginou a movimentação das tropas em confronto como num diagrama. Visualizou duas setas, uma que apontava para o sul, negra e certamente representando o avanço dos inimigos eurasianos; outra, no sentido horizontal e avançando para o leste, era branca e devia representar os grupamentos da Oceania. Sua ansiedade pela vitória era tal que a seta branca cortava a haste da que representava os invasores.
Buscou se acalmar... E fez isso contemplando o cartaz com o enorme rosto do Grande Irmão. Inspirado pela confiança que o líder transmitia através de seu olhar, de repente se viu perguntando a respeito da “flecha branca”: seria concebível que ela nem ao menos existisse?
(...)
A tensão da espera pelo boletim sobre a guerra era grande. Todavia, ao contemplar o semblante do Grande Irmão, Winston voltou a se acalmar e bebeu mais do gin... Na sequência voltou ao exercício de xadrez e pegou o bispo branco. Experimentou um movimento que colocou o rei das peças negras em cheque.
O exercício proposto pelo periódico não exigia pressa. O que contava eram as habilidades do cálculo e da antecipação das jogadas. Ao visualizar atentamente as posições das peças percebeu que ainda não havia encontrado a solução para o desafio.
(...)
O tabuleiro podia esperar... Em algum momento faria a jogada certeira e isso colocaria fim ao exercício.
Interrompeu o jogo porque passou a se ocupar de outra lembrança... Em seu devaneio podia contemplar o quarto de sua infância. O precário cômodo surgia iluminado à vela. Uma “grande cama coberta por uma colcha branca” dominava o lugar... Ele se via “sentado no chão, sacudindo um copo de dados e rindo-se nervosamente”.
Ele e a mãe brincavam. Por isso ela estava diante dele e também acomodada no chão. O entretenimento e interação com o filho a levava a sorrir. Até onde Winston podia calcular, o dia estava chuvoso e o momento era de reconciliação. Depois de um mês ela desapareceria.
Não sabia por que a lembrança lhe viera à mente... Sabia que, pelo menos durante o jogo com a mãe, a criança se esquecia da falta de comida e da vida infeliz que levavam. Além disso, a brincadeira proporcionava uma breve reconciliação. Lembrou que por causa da chuva não pudera sair do quarto escuro e isso o irritou. A mãe sugeria a leitura para passar o tempo, mas a falta de iluminação o levava a protestar... Não podia sair como fazia habitualmente e tampouco havia o que fazer no quarto que, além de apertado e escuro, tinha goteiras.
Exigente como era, pedia comida e andava de um canto para outro... Desorganizava os objetos e dava chutes nas paredes, provocando a irritação dos vizinhos. Estes esmurravam as paredes para demonstrar sua insatisfação. E como se não bastasse seu destempero, a mãe ainda tinha de administrar o padecimento da filha, que chorava de fome e não parava de gemer.
O menino mimado trazia mais transtornos à mãe do que a pequena... Para acalmá-lo, disse-lhe que “se ficasse bonzinho” compraria um brinquedo que certamente o agradaria. Foi assim que ela resolveu sair à chuva na direção de uma pequena loja que funcionava eventualmente. É claro que lhe faltava dinheiro para o básico, mas se dispôs a gastar o pouco que tinha para conter a fúria de Winston.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

“1984”, de George Orwell – sobre o fim do encontro com Júlia; “perseguição” até o metrô, constatação da certeza da traição e da inutilidade de forçar a aproximação; o Castanheira, um “porto seguro”; “sob a frondosa castanheira eu te vendi e tu me vendeste”, uma estranha coincidência; uma existência embriagada e desprezada; o trabalho no empoeirado e esquecido escritório do Ministério do Amor

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/01/1984-de-george-orwell-lembrando-o.html antes de ler esta postagem:

O encontro com Júlia depois de terem passado pela repressão do Ministério do Amor foi algo triste e decepcionante. Tanto ela quanto Winston estavam muito mudados fisicamente... Já não eram os mesmos, pois haviam sido submetidos a substâncias psicotrópicas que possibilitaram a “reeducação” imposta pelo sistema.
Durante o encontro, Winston percebeu que a amiga de outrora o desprezou com repugnância. Na ocasião, Júlia salientou que não havia suportado a tortura e o suplício... Revelou que o havia traído e que no momento de maior pressão pediu que a violência contra ela fosse transferida para ele. Admitiu que não era mero subterfúgio e concluiu que no final das contas “só nós temos importância”. Traiu para se manter viva, e isso a levou a entender que não nutria mais a mesma afeição por ele.
Winston concordou com ela... Confirmou que também a havia traído, que passara pelo mesmo trauma e que por fim já não podiam manter os sentimentos de antes.
Depois disso veio o silêncio... Sentiram o vento frio nos rostos e isso aumentou o incômodo. A moça falou algo a respeito do metrô e se levantou... Era preciso movimentar-se para suportar a friagem. Era momento de se despedirem.
Ele arriscou dizer que precisavam se encontrar novamente... Ela respondeu que sim, mas pôs-se a caminhar apressadamente. Apesar disso, Winston a seguiu de perto. Sem conseguir alcançá-la, chegou até a estação, todavia desistiu da aproximação ao sentenciar para si mesmo que aquilo era “insuportável e inútil”.
O fim dessa “perseguição” é revelador do quanto ele estava adaptado à rotina de um tipo que se poderia considerar “ajustado”. Mais do que desistir de alcançá-la, desejou retornar ao ambiente do Castanheira, onde não sentiria o rigor do frio e poderia contar com o aconchego de sua mesa de canto, o gin, a leitura do jornal e as peças do xadrez para um bom exercício no tabuleiro. Não foi por acaso que deixou-se ficar para trás e retirou-se da estação.
Enquanto seguiu para o Café Castanheira, lembrou-se do momento em que havia concordado com Júlia a respeito da traição... E era isso mesmo o que pensava. No momento de maior pânico, ela desejou que ele sofresse em seu lugar. Ele admitiu que sempre se falava seriamente ao propor a troca... Também ele desejara que ela sofresse em seu lugar.

(...)

Mas é preciso voltar ao Castanheira e às reflexões desconexas de Winston a respeito de outros sentimentos. Ele voltou sua atenção à música transmitida desde as teletelas e notou que algo havia se modificado na sonoridade. Mas podia ser apenas impressão relacionada a alguma lembrança. Ouviu (ou pensou ter ouvido) a canção anunciando “Sob a frondosa castanheira eu te vendi e tu me vendeste...”. Aquela mesma que tocou na ocasião em Winston avistou Jones, Aaronson e Rutherford naquele mesmo café...
Não há como não estabelecermos uma comparação entre sua condição e a dos três solitários bebedores de gin. No canto estava a mesma mesa de xadrez... Algum tempo depois foram retirados novamente de circulação e executados exemplarmente (ver https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/08/1984-de-george-orwell-sobre-o-ativista.html).
Fica a pergunta a sobre a coincidência e o questionamento a respeito do motivo de a canção vir à tona logo após a lembrança sobre o encontro com Júlia.
(...)
Também os olhos de Winston se encheram de lágrimas. Um garçom se aproximou para lhe servir mais gin. Ele contemplou o copo abastecido e conferiu seu cheiro desagradável. A bebida horrível “tornara-se o elemento em que nadava. Era sua vida, sua morte, sua ressurreição”.
Winston se tornara alcoólatra... O gin o levava ao entorpecimento antes de dormir. E o despertar do dia seguinte, algo que invariavelmente ocorria depois das onze horas, era sempre regado pelo líquido que o impulsionava a “descolar as pálpebras”, a livrar-se do ardido da boca e das dores nas costas... A bebida o fazia se sentir revigorado.
Assim que se levantava (já não era despertado pelos sons estridentes da teletela), passava algumas horas ouvindo o conteúdo da teletela sem se apartar da garrafa. Às três da tarde chegava ao Castanheira, de onde só saía quando o atendimento se encerrava. De resto, seu cotidiano confirmava sua condição desprezível... O que fazia ou deixava de fazer não importava a quem quer que fosse.
Seu trabalho consistia em comparecer duas vezes por semana num escritório localizado no Ministério da Verdade. No gigantesco edifício, a minúscula sala parecia não ter qualquer funcionalidade... Um escritório “esquecido e empoeirado”, e, no entanto, era nele que cumpria as poucas horas de um serviço de nenhuma relevância.
O caso é que ele havia sido “nomeado o subcomitê de um subcomitê que surgira de um dos inúmeros comitês que tratavam das dificuldades menores aparecidas durante a compilação da Décima Primeira Edição do Dicionário de Novilíngua”. Sua principal tarefa era participar da elaboração de um “relatório provisório”.
Outros quatro tipos que viviam mais ou menos as mesmas condições de Winston estavam envolvidos na tarefa... Ocorre que por mais que se esforçassem (ou fingissem se esforçar) não conseguiam saber “a respeito do que deviam escrever”, e acontecia de se perderem em discussões sobre questões que se referiam à “colocação das vírgulas antes ou depois das aspas”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

sábado, 15 de janeiro de 2022

“1984”, de George Orwell – lembrando o encontro com Júlia; cintura mais larga, corpo enrijecido como o de cadáveres e enorme cicatriz na cabeça; touceira desguarnecida e abominável ideia de maior aproximação; reação de repugnância da antiga companheira e “confissões” esclarecedoras e admitidas por Winston

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/01/1984-de-george-orwell-exercicio.html antes de ler esta postagem:

Winston estava no Café Castanheira... Na solidão da mesa que habitualmente ocupava, bebia Gin Vitória, resolvia um exercício de xadrez e ouvia as músicas metálicas das teletelas enquanto aguardava com ansiedade o boletim do Ministério da Paz com informações a respeito da frente africana, onde os inimigos eurasianos avançavam perigosamente.
A possibilidade de a Oceania ser derrotada na África e perder o controle do continente o angustiava enquanto uma série de sentimentos e episódios recentes invadiam suas reflexões... Talvez buscando agarrar-se às convicções apreendidas com o processo pelo qual passou no Ministério do Amor, movimentou o dedo indicador na poeira da mesa para imprimir que “2+2=5”. De resto, tudo o que lhe vinha à mente era desconexo e naturalmente marcado por sua recente condição de reabilitado... Era evidente que “algo estava morto em seu peito; queimado; cauterizado”.
(...)
Estamos no ponto em que se recordava de um encontro com Júlia... Ele passou por ela enquanto ambos caminhavam pelo parque. Notou suas muitas mudanças desde que haviam sido capturados e percebeu que ela o evitou, mesmo assim tratou de segui-la até que o aceitasse na caminhada lado-a-lado.
Depois não tardou para que se instalassem “no meio de uma touceira de arbustos desfolhados”. Não chegaram ali para se esconder, pois não havia motivo para isso, ou para se abrigarem do vento, já que a folhagem era parca. Ademais o melhor que podiam fazer era continuar a caminhada para espantar o frio rigoroso.
Não havia teletelas no lugar, mas provavelmente existissem microfones camuflados em alguma parte. Ele arriscou passar o braço pela cintura da jovem. Sim, foi arriscado porque podiam ser vistos... Em nenhum momento acreditou que isso acontecesse ou que tivesse qualquer importância, inclusive, se quisessem, poderiam se deitar na relva para se envolverem ainda mais.
No momento em que pensava sobre essas coisas na mesa do Castanheira, Winston sentiu arrepiar-se. Ele lembrou que Júlia não esboçou reação ao toque de seu braço e tampouco tentou afastá-lo... A aproximação foi suficiente para notar o que havia de diferente nela. Além do rosto pálido, percebeu uma grande cicatriz que lhe sulcava “a testa e a fonte”. O corte era imenso, e só não podia ser totalmente visualizado porque o cabelo escondia uma parte.
Mas o que mais chamou sua atenção foi o quanto a cintura de Júlia havia se tornado maior e todo o corpo se enrijecera. Logo que o notou, lembrou-se da ocasião em que ajudara a deslocar um cadáver depois de uma explosão provocada por “bomba-foguete”. O corpo era muito pesado e rígido como pedra. Pois era essa mesma a impressão que o corpo da moça lhe passava.
Não era para menos. Podia imaginar um pouco do tormento ao qual a submeteram... Toda ela só podia estar mudada, e sem dúvida a textura da pele enrijecida era resultado dos suplícios. Ele sequer tentou beijá-la e a rigor nem chegaram a conversar enquanto estiveram na touceira desguarnecida. Voltaram a caminhar e passaram pelo portão que dava acesso ao arranjo dos arbustos. Foi só quando já estavam na saída que ela o encarou, e seu olhar foi “de desprezo e repugnância”.
Sobre a reação da moça, Winston pensou se se devia a algum ressentimento pelo que haviam vivido enquanto namoravam ou se era por causa de sua aparência mais inchada e a água que lhe brotava dos olhos em decorrência da friagem. Sentaram-se em bancos de ferro mantendo certa distância. Ela acomodou o pé na sandália e desse modo deixou os dedos à mostra... Ele viu que também seus pés estavam “mais largos”, mas achou deselegante e não quis falar a respeito das mudanças que vinha observando.
De repente, Júlia resolveu falar que o havia traído. Disse isso sem perder tempo com detalhes... Winston respondeu que também a havia traído e ela o olhou com repugnância mais uma vez. Como que a se justificar, falou que eles (os agentes de repressão) ameaçavam “com coisas que não se pode aguentar, não se pode nem pensar”. Emendou que naqueles casos só restava implorar que não fizessem aquilo e, se fosse o caso, que fizessem “com outra pessoa, com Fulano e Sicrano”.
Júlia falava como se estivesse fazendo uma confissão... Relatou que depois da súplica desesperada podia “fingir” que se recorria ao “estratagema de implorar que fizessem a outro”. Podia-se buscar consolo na ideia de que aquilo não era sério. Mas sempre ficava o peso na consciência, pois sabia-se que no momento mesmo da tortura mais radical fala-se seriamente, já que não se vislumbra nenhuma outra forma de se salvar. Daí não havia outra conclusão a se tirar senão a de que no fundo queremos ficar livres do tormento e que ele seja aplicado a outro... No fundo “só nós temos importância”.
Winston não só concordou como repetiu a última frase de Júlia... Ela acrescentou que depois que passamos por este tipo de trauma deixamos de nutrir os mesmos sentimentos pela pessoa que sugerimos sofrer em nosso lugar.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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