sábado, 31 de julho de 2021

“1984”, de George Orwell – Winston inicia registros sobre uma aventura sexual arriscada numa área próxima à estação ferroviária; pouca iluminação, maquiagem e perfume exagerados, um porão repugnante; pensando em Katharine, no modo de ser das demais mulheres do Partido e nas suas possíveis intenções ao reprimir o erotismo

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Na sequência vemos Winston no seu apartamento e no exercício de escrita do diário... Percebemos que ele pretendia desabafar alguns sentimentos reprimidos que trazia em seu íntimo.
Começou registrando que numa escura noite de três anos atrás estivera numa área próxima da estação de trens, numa rua onde sequer havia iluminação pública... Buscava um relacionamento furtivo e sabia que ali podia encontrar uma mulher que lhe proporcionasse prazer sexual.
Não demorou e encontrou uma de “rosto jovem, com pintura espessa” diante da porta mal iluminada... Pelo menos foi o que lhe pareceu... A pele branca e os lábios vermelhos e brilhantes por causa da pintura chamaram-lhe a atenção. (...)
Winston parou de escrever e pensou nas mulheres que pertenciam ao Partido... Elas jamais se pintavam. Ao retomar a caneta, escreveu que a rua estava deserta, e além do mais não havia nenhuma teletela instalada nas imediações. A mulher informou o preço, dois dólares. (...)
Parou de escrever novamente porque se sentiu abalado pela lembrança... Fechou os olhos e os apertou como que a forçar a visão desaparecer de sua consciência. Seu mal-estar era tão intenso que tinha vontade “de berrar um bando de palavras indecentes a pleno pulmão, ou bater a cabeça na parede, dar um pontapé na mesa ou atirar o tinteiro pela janela - fazer algo violento, doloroso ou ruidoso que pudesse apagar a lembrança - que o atormentava”.
(...)
Atordoado pelas reflexões, pensou que o sistema nervoso podia denunciar os mais íntimos desejos de infração. Lembrou-se de certo tipo pelo qual passara há alguns dias. O homem era membro do Partido, contava uns trinta e cinco anos e tinha aspecto dos mais comuns... O sujeito carregava uma pasta, era alto e magro... Mesmo a certa distância, Winston pôde notar que o lado esquerdo de seu rosto se contorcia involuntariamente. Quando passaram um pelo outro o abreviado assombro se repetiu... Foi o suficiente para pensar que aquele pobre coitado carregasse em seu íntimo alguma tendência para a infração... O reflexo involuntário em seu rosto, ainda que involuntário e deflagrado por seu sistema nervoso, o denunciava.
Pior que isso era “falar dormindo”... Devia-se tomar muito cuidado.
(...)
Winston deu um suspiro profundo e voltou aos seus registros...
Apontou na folha do diário que seguiu com a mulher por um quintal até que alcançaram um porão onde havia uma cozinha. Uma lâmpada de parca luz que estava sobre uma mesa denunciava que no mesmo cômodo havia uma cama encostada a uma das paredes.
A mulher roeu os dentes... (...)
Esses detalhes surgiam-lhe nítidos na memoria e como as lembranças o abalavam emocionalmente, teve vontade de cuspir. Estava pensando naquele tipo, mas a figura de Katharine, sua esposa, também lhe veio à mente...
Neste ponto é bom que se saiba que Winston fora casado... Pode-se dizer que “ainda era casado” e, já que a referida Katharine estava viva, continuava sua esposa apesar de não mais viverem juntos.
Ao articular essas lembranças, teve a sensação de inalar novamente “o odor morno da cozinha do porão, um cheiro misto de percevejos, roupa suja e perfume ordinário”. Algo decadente, mas que se relacionava à mulher que se fazia objeto para seu prazer... As mulheres do Partido simplesmente não usavam perfume e tampouco se importavam em se relacionarem sexualmente.
Entre os proles encontravam-se as mulheres que usavam os cosméticos baratos. Para Winston, o perfume se vinculava à prática sexual. Quando se encontrou com a mulher que vivia na área próxima à estação de trens já fazia “dois anos ou mais” que não se aventurava em “escapadas”. O Partido não admitia que seus membros se envolvessem com prostitutas, mas esse era o tipo de regra que os militantes quebravam (também) por saberem que “não era caso de vida ou morte”. É bem verdade que no caso de serem flagrados, e de não terem se envolvido em qualquer outra infração, poderiam ser condenados a cinco anos de trabalhos forçados.
(...)
Ainda a respeito do tema, o rapaz lembrou que o maior problema para quem se arriscava era “ser surpreendido no ato”. Os bairros mais afastados estavam cheios de “mulheres prontas a se entregarem”, e havia as que aceitavam o programa em troca de “uma garrafa de gin”, algo que os proles apreciavam, mas “não tinham direito de beber”.
Não declaradamente o Partido admitia que a prostituição pudesse ser incentivada, já que eventualmente podia servir como “válvula de escape” dos instintos “não totalmente suprimidos” e desde que, além de envolver apenas mulheres das classes desprezadas, fosse apenas episódica e não resultasse em qualquer sensação de maior satisfação e exultação.
A promiscuidade entre membros do Partido “era crime imperdoável”. Alguns réus confessavam a prática da promiscuidade, mas normalmente isso acontecia quando já se reconheciam condenados.
(...)
Winston pensava sobre as verdadeiras intenções do Partido ao implicar com as relações mais íntimas entre homens e mulheres... Provavelmente não era simplesmente porque pretendia impedir que criassem cumplicidades que fugissem ao controle estatal.
A conclusão a que chegou foi a de que “o propósito real (do Partido), não declarado, era roubar todo o prazer ao ato sexual. Não tanto o amor como o erotismo era o inimigo, tanto dentro como fora do casamento”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

sexta-feira, 30 de julho de 2021

“1984”, de George Orwell – fim do pronunciamento do Ministério da Fartura; entristecido, Winston pensa nos potencialmente livres da vaporização e nos potencialmente encrencados; descobrindo que estivera sendo vigiado no restaurante pela moça do departamento de ficção; era preciso tomar cuidado com o “facecrime”; Parsons se anima ao falar sobre outras traquinagens de seus filhos que faziam parte dos “espiões”

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Finalizado o pronunciamento a respeito das superproduções dos artigos de consumo, a teletela passou a tocar músicas carregadas de metais. Parsons assumiu ares de quem sabe o que diz e manifestou que o Ministério da Fartura havia feito excelente trabalho. Na sequência perguntou ao Winston se ele tinha alguma lâmina de barbear para lhe emprestar... Este negou com a mesma desculpa que dera ao Syme e disse que já fazia seis semanas que vinha usando a mesma.
Já na outra mesa, o tipo do Departamento de Ficção, que havia parado sua falação durante o pronunciamento do Ministério da Fartura, voltou a proferir frases atropeladas ainda mais animadamente...
(...)
A imagem da esposa do Parsons com seu “cabelo ralo e pó cosmético nas rugas” veio à mente de Winston. Para ele, era uma questão de tempo e talvez uns dois anos se passassem até que os filhos a entregassem à Polícia do Pensamento para que fosse vaporizada. Pensou em Syme, que também seria vaporizado... E nele próprio, já que não podia alimentar qualquer outra expectativa em relação ao seu destino. Já o tipo falante e empolgado com o regime não teria o mesmo fim, e tampouco os que se assemelhavam ao que lembrava um besouro e que serviam nos Ministérios.
Muitos outros não sofreriam a perseguição, como era o caso de Parsons e da moça dos cabelos escuros que trabalhava no Departamento da Ficção. Entre as poucas certezas que tinha, havia essa a respeito dos que seriam enquadrados pela Polícia do Pensamento e dos que sobreviveriam.
De repente despertou das divagações... Surpreendeu-se ao notar que a moça da mesa onde estava o tagarela fanático pelo regime o olhava pelo canto dos olhos. Espantou-se ao perceber que se tratava daquela dos cabelos escuros, a mesma do Departamento de Ficção. Ela desviou o olhar assim que notou que ele a percebeu.
Winston ficou apavorado... Não conseguia entender por que aquele tipinho o perseguia. Não pôde lembrar se ela já estava acomodada à mesa quando ele chegou com Syme... O fato é que no dia anterior, no exercício dos “Dois Minutos de Ódio”, ela havia se colocado atrás dele mesmo havendo outras cadeiras disponíveis. Tudo indicava que o espionava, querendo saber se ele era incisivo durante as manifestações contra Goldstein.
Talvez ela fosse uma espiã amadora... E isso era bem pior do que se pertencesse aos quadros da Polícia do Pensamento.  Não podia ter certeza de quantos minutos ela permaneceu a observá-lo, e isso ainda mais o apavorava porque talvez não estivesse com a fisionomia devidamente controlada, principalmente enquanto estivera refletindo sobre a má sorte dos que sofreriam perseguições. Outras situações também eram comprometedoras: “uma expressão facial imprópria (ar de incredulidade quando anunciavam uma vitória, por exemplo) era em si uma infração punível”.
Nesses casos, o indivíduo era acusado de cometer o “facecrime” (em “novilíngua”), tão aterrorizante quanto às demais implicações...
(...)
Aconteceu que a moça virou-se... Winston pensou que talvez não tivesse despertado qualquer suspeita ou mesmo que ela não o estivesse perseguindo. Nesse caso, o fato de se sentar perto dele dois dias seguidos teria sido uma simples coincidência.
Seu cigarro havia se apagado e ele nem notara. Com todo cuidado, deixou-o na borda da mesa para que pudesse fumá-lo mais tarde. Havia grande probabilidade de a moça ser uma “espiã da Polícia do Pensamento” e, nesse caso, ele certamente terminaria “nos porões do Ministério do Amor”, mas não seria por isso que ele desperdiçaria o resto do cigarro.
Syme recolheu as anotações que havia feito no papel e Parsons voltou a falar a respeito dos filhos militantes. Perguntou se já havia dito que certa vez eles colocaram fogo na “saia de uma velha” que estava na feira. E fizeram isso porque ela havia ousado “embrulhar umas salsichas num cartaz do G.I (Grande Irmão).”
O tipo emendou que a mulher deve ter sofrido queimaduras significativas, e comentou em tom jocoso que os filhos eram mesmos “uns safadinhos”, muito espertos já que o treinamento dado pelo grupamento dos Espiões era melhor do que o que ele mesmo tivera no passado. Parsons explicou que até “estetoscópios para escutar pelas fechaduras” as crianças recebiam; disse que sua caçula experimentara o seu equipamento e confirmou que podia ouvir duas vezes mais! Podia ser um brinquedo, mas já fazia parte de treinamento sério.
(...)
Desde a teletela ouviu-se o forte apito que marcava o fim do almoço. Todos se retiraram das mesas e apressaram-se na direção dos elevadores. Enquanto se encaminhava, Winston notou que o fumo que havia em seu cigarro deslizou para o piso.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quinta-feira, 29 de julho de 2021

“1984”, de George Orwell – Winston quis conferir se os que estavam reunidos no refeitório aceitavam passivamente as informações mentirosas sobre a “nova vida feliz” anunciada pela teletela; longas listas de insatisfações; permanecia a dúvida acerca de onde e quando poderia ter tido referências diferentes; de olho num tipinho parecido com um besouro; todos os funcionários eram bem feios e mirrados, a maioria nada tinha a ver com o “tipo físico ideal” defendido pelo Partido

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No restaurante, a teletela informou a respeito dos grandes avanços da produção e sobre as “manifestações espontâneas” de trabalhadores em agradecimento ao Grande Irmão por proporcionar uma “nova vida feliz” para todos.
Winston acendeu um de seus últimos cigarros e observou a reação do pessoal durante os informes das cifras espetaculares... Naturalmente espantou-se ao ouvir que ocorreram manifestações de júbilo também por conta do “aumento da ração de chocolate para vinte gramas”. Todos ali certamente sabiam que no dia anterior havia sido anunciada a “redução para vinte gramas”!
(...)
O rapaz pôs-se a pensar se seria possível que aceitassem com naturalidade aquele disparate anunciado há apenas vinte e quatro horas depois do comunicado a respeito da redução. Um rápido “passar d’olhos” pela sala foi suficiente para certificar-se de que sim, as pessoas ali vibraram com a fraude... Parsons parecia maravilhado com sua “estupidez de animal”, já o tipo que não parava de falar na outra mesa demonstrava paixão fanática... Winston imaginou que provavelmente ele desejasse “descobrir, denunciar e vaporizar quem quer que ousasse sugerir que na semana anterior (a ração de chocolate) fora trinta gramas”.
Olhou para Syme e notou que ele também estava satisfeito com as fábulas que ouvia... Talvez interpretasse os dados a partir da metodologia do “duplipensar”, mas evidentemente aceitava cegamente as estatísticas anunciadas pela teletela.
(...)
De fato, algo surreal... Em sua consciência pesava a certeza de que se lembrava da redução anunciada no dia anterior. Será que era o único? Os demais sabiam como “engolir” as mentiras do regime, e ele não?
Os dados a respeito dos avanços eram espantosos se comparados com o ano anterior... Tudo melhorara! Desde a teletela, as informações davam conta de que passou a haver “mais comida, mais roupa, mais casas, mais móveis, mais panelas, mais combustível, mais navios, mais helicópteros, mais livros, mais recém-nascidos”. Por outro lado, “a doença, o crime e a loucura” só podiam ter diminuído! Winston não podia suportar o fato de ninguém questionar a discrepância entre o oficialmente informado (que “ano após ano, minuto após minuto, todo mundo, tudo, tudo o mais ganhava as alturas”) e o vivido na realidade em que faltava de tudo (lâminas de barbear, cadarços, cigarros e bebidas decentes).
Inconformado, pegou uma colher e a exemplo do que Syme fizera anteriormente passou a esfregá-la sobre o caldo gorduroso que estava sobre a mesa. Seria possível que a situação houvesse sido sempre aquela? Tipos acríticos e temerosos... O refeitório de paredes imundas e com o teto baixo, mesas e cadeiras estreitas, uma comida de péssimo gosto... E mais:

                   “Colheres arcadas, bandejas trincadas, rústicas xícaras brancas; gordurentas todas as superfícies, sujeira em cada frincha; e um cheiro azedo, composto de gin ordinário, café ruim, guisado metálico e roupa suja. Havia sempre, no estômago e na pele, uma espécie de protesto, a sensação de que se perdera, para um gatuno, algo a que se tinha direito”.

Ele mesmo não se lembrava de situação diferente... Qualquer tempo passado que conseguisse recordar trazia-lhe a precariedade, escassez de alimentos e de roupas básicas e decentes... O mesmo se aplicava aos móveis e cômodos dos apartamentos, capengas e “mal aquecidos”. Os trens para transporte do público jamais tiveram qualquer conforto e sempre se movimentaram abarrotados. Enfim, nada do que se dispunha era satisfatório: “casas caindo aos pedaços, pão escuro, chá raro, café nojento, cigarros insuficientes - nada barato e abundante”. A única exceção talvez fosse o “gin sintético”.
(...)
Havia muito desconforto. Podia pensar a respeito de muitas outras condições e todas elas eram insatisfatórias. Tudo muito sujo, invernos “intermináveis” e insuportáveis, a água fria, o sabão de péssima qualidade, os elevadores sempre defeituosos, os “cigarros que se desfaziam”.
Particularmente sentia-se aflito ao considerar que não podia tolerar o estado de coisas. Talvez isso fosse um sinal de que conhecera uma realidade diferente, talvez “tivesse uma lembrança ancestral” totalmente incompatível com a realidade controlada pelo Partido.
(...)
Ao olhar mais uma vez ao seu redor, Winston considerou que todos ali eram feios, e continuariam feios mesmo se deixassem o macacão do Partido e se vestissem com “roupas decentes”. Reparou um tipinho que estava do outro lado, solitário numa mesa... Achou que se parecia com um besouro “tomando uma xícara de café”. Aquilo contradizia o que o Partido pregava a respeito do “tipo físico ideal”: “rapazes altos e musculosos, donzelas de grandes seios, louras, viçosas, queimadas de sol, alegres”. Ao refletir mais apuradamente, pôde sentenciar que definitivamente esses não predominavam na “Pista Nº 1”, constituída basicamente de “gente miúda, morena e mal favorecida”.
E mais... O curioso era que os Ministérios estavam abarrotados de tipos como aquele “escaravelho”: “homenzinhos tronchos, ainda moços e já obesos, de perninhas curtas, movimentos rápidos, assustados, faces gordas e inescrutáveis, de olhos minúsculos. Era o tipo que parecia florescer melhor sob o domínio do Partido”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“1984”, de George Orwell – Parsons admirado com a dedicação de Syme ao difícil trabalho mesmo durante o almoço; arrecadando contribuição dos moradores do Mansão Vitória para a “semana do ódio”; desculpando-se pela traquinagem do estilingue e comentando a respeito da astúcia da caçula ao perseguir e entregar um estranho às forças policiais; transmissão do Ministério da Fartura a respeito dos “resultados positivos” das produções de artigos de consumo; “manifestações espontâneas” de trabalhadores em agradecimento ao Grande Irmão pela “nova vida feliz” que lhes proporcionava; a precariedade a olhos vistos ali mesmo no restaurante diante das mentiras anunciadas

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Parsons notou que Syme lidava com anotações num papel, então fez uma observação admirada sobre sua dedicação ao trabalho durante o almoço e chamou a atenção de Winston a respeito da própria incompetência, pois admitia não ter capacidade para tarefas difíceis como aquela. Na sequência anunciou o que pretendia...
Queria mesmo falar com o camarada a respeito de certa “conta”. Winston adiantou que não sabia do que se tratava, embora já estivesse abrindo a carteira porque talvez tivesse se esquecido de quitar alguma “contribuição voluntária”. Não era fácil lembrar-se de todas.
Parsons explicou que estava fazendo a arrecadação para organizar a “Semana do Ódio”. Todos deviam contribuir, já que uns vinte e cinco por cento do salário recebido eram destinados a esse tipo de evento. No caso, o tesoureiro estava responsável pelos preparativos do evento na área residencial onde moravam. Empolgado, disse que a Mansão Vitória se destacaria mais do que as ruas da vizinhança.
(...)
Winston retirou os dois dólares que havia prometido... Parsons fez o registro da quitação numa caderneta e disse que ficara sabendo da traquinagem do filho que o havia atacado com um estilingue no dia anterior. Comentou que o advertira e que ameaçou tomar-lhe o brinquedo.
Winston comentou que talvez o garoto estivesse agressivo por não ter ido à execução. Parsons concordou e admitiu que não podia esperar outra coisa de suas crianças, “peraltas esforçados” que só pensavam na campanha militar do país e no grupo dos Espiões do qual faziam parte.
A respeito da caçula, Parsons comentou que no último sábado havia participado de um passeio nas proximidades de Berkhamsted e que liderou duas de suas colegas numa “perseguição de investigação” a um desconhecido... Por duas horas estiveram neste brinquedo, tendo percorrido trilhas pelo bosque. Ao chegarem a Amersham apresentaram denúncia às patrulhas e o entregaram... Winston não escondeu o espanto e perguntou por que agiram daquele modo... Com empolgação, o outro respondeu que sua “pirralha” estava convencida de que o desconhecido era um “agente estrangeiro” que poderia ter chegado à área depois de saltar de paraquedas.
Para o ingênuo Parsons, a garota se destacava por sua astúcia. E não é que ela havia notado que o tipo calçava “uns sapatos esquisitos”? Desconfiou porque nunca vira ninguém com aquele modelo, então tudo indicava que ele era estrangeiro.
Winston quis saber o que aconteceu depois. Parsons não tinha informações, mas adiantou que não se surpreenderia se... Não chegou a terminar a frase, pois com alguns gestos imitou uma execução com tiro de fuzil.
Syme, que permanecia concentrado em suas anotações, pronunciou um “bom” em sinal de aprovação. Winston aproveitou para concordar, emendando que “não podemos nos arriscar”. Parsons concluiu o assunto afirmando que “estamos em guerra”.
(...)
Na sequência a teletela emitiu um som de clarim. Os três estavam bem próximos do aparelho e levantaram os olhos em sua direção. Pelo teor da conversa bem podia se tratar de algo relacionado às campanhas militares... Em vez disso, ouviu-se “um anúncio do Ministério da Fartura”.
A narração estava por conta de um jovenzinho que trazia “gloriosas notícias” a respeito dos excelentes resultados da produção. O anúncio era extremamente animador, já que houve “superação nos dados de todos os artigos de consumo”. Isso significava “que padrão de vida” aumentara em vinte por cento em relação ao ano anterior.
Na sequência, destacou-se que pela manhã havia ocorrido inúmeras manifestações espontâneas de trabalhadores que, desde as fábricas e escritórios, marcharam com bandeiras e faixas de agradecimento ao Grande Irmão e à sua “sábia liderança”. Graças a ele, todos passariam a ter uma “nova vida feliz”. Por fim a matéria divulgou os resultados.
Parsons permaneceu boquiaberto o tempo inteiro e era dos que dedicavam atenção com satisfação. Mais do que as cifras, sentia-se encantado pelo “toque marcial”. Emocionado, tirou um “cachimbo imundo” do fundo do bolso. Via-se a precariedade do objeto um tanto chamuscado e raramente abastecido por fumo.
Winston acendeu um de seus cigarros Vitória com todo cuidado para conservá-lo na horizontal. Sabemos o motivo... Ainda mais que só tinha mais quatro. Apesar do alvoroço que dominou o refeitório, procurou manter-se atento aos resultados espalhafatosos que estavam sendo divulgados. Em determinado fragmento ouviu que ocorreram manifestações “de agradecimento ao Grande Irmão por aumentar para vinte gramas a ração semanal de chocolate”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quarta-feira, 28 de julho de 2021

“1984”, de George Orwell – sobre o conteúdo da falação do tipo do Departamento de Ficção; frases emaranhadas e ininteligíveis, mas de conteúdo previsível; mais autômato a tagarelar do que humano de racionalidade; Syme explica o termo “patofalar” e seus sentidos contraditórios; Winston reflete sobre os ousados procedimentos do camarada e suas visitas ao “Café Castanheira”; Parsons, o “pobre idiota” chega à mesa com sua transpiração e odor característicos

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De tudo o que o tipo do Departamento de Ficção estava falando, Winston conseguiu captar “eliminação completa e final do goldsteinismo”. Mas as palavras saíam de sua boca em “blocos” e dificilmente eram entendidas, pois não passavam de “quá-quá-quá”. Apesar disso, não havia ali quem não conhecesse o conteúdo “politicamente engajado” e certamente marcado por denúncias contra Goldstein, revolta contra os sabotadores e os eurasianos. Em algum momento devia ter expressado saudações ao Grande Irmão e aos valentes soldados que combatiam na Índia.
Winston entendia bem... No final das contas a mensagem vociferada por aquele tipo só podia se referir à temática doutrinada pelo Partido. Aquilo era “pura ortodoxia, puro Ingsoc”. Ao observar o orador que parecia não ter olhos por causa do reflexo da luz em seus óculos, relacionou-o não a um ser humano, mas a um “manequim” que anunciava a partir da laringe, e não do cérebro. Suas frases comprimidas umas às outras podiam ser interpretadas como “barulho inconsciente, como o grasnido de um pato”.
(...)
Enquanto Winston estivera refletindo sobre o falador da outra mesa, Syme permanecera calado e a se distrair com a colher, deslizando-a sobre o caldo que sujava a mesa do almoço... Havia muitos trabalhadores de escritórios no refeitório e o barulho continuava intenso, mesmo assim a voz do tipo do Departamento de Ficção se sobrepunha.
Talvez por isso, Syme começou a dizer ao camarada que havia uma palavra em “novilíngua” pouco conhecida, “patofalar”. Explicou que o significado era algo como “grasnar como pato” e que podia ser usada em dois casos. Quando citada para referir-se a adversários, era um insulto; ao aplicá-la a integrantes do Partido, era um elogio. Portanto, “patofalar” tinha sentidos contraditórios.
Mais uma vez Winston pensou que Syme terminaria vaporizado. Apesar de saber que ele o desprezava e que não vacilaria se entendesse que devia denunciá-lo por “crimideia”, entristeceu-se ao vaticinar sua desgraça.
Por mais que tentasse, não conseguia entender o procedimento do camarada, que parecia não se importar com a falta de discrição... Talvez ainda não tivesse percebido que na maioria das situações era melhor mostrar-se ingênuo e falar menos... Por fim, Syme não era bem o tipo sobre o qual se dissesse com toda certeza que se tratasse de um ortodoxo.
É bem verdade que atribuía ao Grande Irmão todas as conquistas e vitórias do IngSoc, de cujos princípios era defensor incondicional. Além disso, atacava abertamente os sabotadores com base em informações que os demais evitavam conhecer. Mas para Winston, a fama de Syme não devia ser das melhores exatamente porque falava demais e fazia o tipo “leitor assíduo” que acaba dizendo coisas que deviam ser mantidas em segredo. E mais... Ele era frequentador do “Café Castanheira”, ambiente por onde circulavam artistas pintores e músicos!
Sobre o “Castanheira”, não se pode dizer que se cometia alguma infração apenas por frequentá-lo. Não havia qualquer proibição oficial... O caso é que por muitas vezes aconteceu de muitos expurgados terem se reunido no local antes de serem sentenciados. Então o café era conhecido por essa má-fama, e inclusive dizia-se que Goldstein o frequentava.
(...)
Como se vê, não era por acaso que Winston pressentia que Syme não acabaria bem. Isso à parte, ele sabia que o outro o denunciaria à Polícia do Pensamento se desconfiasse de suas “opiniões secretas”. É claro que qualquer outro faria o mesmo, mas não tão decididamente quanto aquele tipo.
(...)
Syme levantou a cabeça e disse que Tom Parsons estava chegando... Winston notou que o havia certo deboche em seu modo de falar, como a emendar que o que vinha chegando não passava de um “pobre idiota”.
Como sabemos, este Parsons, “homenzinho atarracado, de estatura média, com cabelo claro e cara de rã”, era vizinho de Winston. Pelo menos para este, o tipo era mesmo um “pobre idiota” que contava trinta e cinco anos e já carregava um corpo com gorduras acumuladas no pescoço e na barriga. Apesar disso, parecia fazer questão de se movimentar como se fosse ainda um garotão fanático pelas agremiações juvenis.
E é verdade... Parsons parecia um “menino crescido” e, “embora usasse o macacão costumeiro, era quase obrigatório imaginá-lo como um garoto de calças curtas azuis, camisa cinza e lenço vermelho dos Espiões”.
Pode-se dizer que ele não se esforçava nem um pouco para afastar-se dessa imagem infantilizada... Tanto é que não perdia oportunidade de usar bermudas tal como os garotos por ocasião das “passeatas comunais e atividades físicas”.
(...)
Parsons estava mesmo se dirigindo à mesa dos dois, e assim que chegou pronunciou um “alô, alô” como cumprimento. Seu suor pronunciado misturou-se à atmosfera malcheirosa.
Winston não deixou de reparar o quanto a transpiração lhe enchia as faces de gotículas e lembrou que, por causa da tremenda suadeira, todos reconheciam facilmente a raquete que ele acabava de usar no Centro Comunal onde praticava pingue-pongue.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“1984”, de George Orwell – considerações de Syme sobre a diminuição do número de palavras, a respeito das irreversíveis alterações das obras consideradas clássicas e da “revolução definitiva”; o fim do pensamento crítico e da “crimideia”; reflexões de Winston a respeito da pouca chance de Syme escapar de futura perseguição; há uma moça acompanhando a falação do tipo do Departamento de Ficção

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Ao ouvir a referência ao Grande Irmão, Winston não conseguiu esconder o desconforto... Syme entendeu que o camarada não se entusiasmara com a sua falação, então concluiu que ele não apreciava a “novilíngua” e provavelmente era daqueles que não conseguiam deixar de pensar na antiga língua mesmo quando redigiam em “novilíngua”. E para mostrar que sua conclusão não era sem embasamento, disse que lia os artigos escritos por ele no Times... Podia dizer que eram bons, mas não havia como não perceber que se tratava de “traduções”. Isso era uma clara indicação de que o camarada preferia a “anticlíngua”, apesar de “sua imprecisão e suas inúteis gradações de sentido”. Só podia lamentar o fato de ele não perceber a beleza contida na destruição das palavras.
Perguntou se Winston sabia que a “novilíngua” era o único idioma em todo o mundo a reduzir o vocabulário a cada ano... Ele não tinha a menor ideia... Syme insistiu que ele precisava entender que a “novilíngua” tinha como objetivo “estreitar a gama do pensamento”, e isso tornaria impossível qualquer iniciativa de “crimideia”, pois não haveria palavras que pudessem expressá-la.
Para se fazer entender melhor, o filólogo explicou que as palavras passariam a ter definições mais “rígidas” e aquelas usadas como “acessórios” deixariam de existir. Dessa forma não haveria mais “significados aproximados”. Era o que ele podia notar pela edição que vinham produzindo, e o animava a ideia de a mudança manter-se por muitos anos ainda. Isso naturalmente significava que a quantidade de palavras seria sempre menor conforme o tempo avançasse. Como ressaltado anteriormente, a “crimidéia” não encontraria ambiente... Enfim, a língua se tornaria perfeita e a “revolução” promovida pelo partido triunfaria definitivamente.
(...)
Ainda muito empolgado, Syme sentenciou que “Novilíngua é Ingsoc e Ingsoc é Novilíngua”. Emendou ao camarada Winston que “por volta do ano de 2050” ninguém teria condições de entender o diálogo que os dois tinham no momento.
Winston quis corrigir o que o outro acabara de dizer. Quis dizer que provavelmente “os proles” permaneceriam sem dominar os mudanças promovidas... Não disse nada porque pensou que talvez a opinião não fosse ortodoxa, mas Syme entendeu o raciocínio e aproveitou para explicar mais este detalhe.
O tipo foi dizendo sem o menor pudor que “os proles não são seres humanos” e que quando o ano 2050 chegasse ninguém mais conheceria as formulações em “anticlíngua”. A literatura construída naquele modelo também estaria destruída e ainda que pretendessem fazer referências a “Chaucer, Shakespeare, Milton, Byron”, elas só seriam possíveis em “novilíngua”. Obviamente suas obras já teriam adquirido significados muito diferentes dos originais, e certamente contrários a eles.
Alguém como Winston só podia entender aquela mensagem como dramática. E ele mais se apavorou quando ouviu o outro dizer que também a literatura produzida pelo Partido seria alterada juntamente com as “palavras de ordem”. Syme exemplificou ao dizer que o “conceito de liberdade” seria abolido... Assim, não seria possível propagar que “liberdade é escravidão”.
O que Syme dizia levava à conclusão de que as pessoas não mais pensariam... Pelo menos não “pensariam criticamente” do modo como nos acostumamos. Ele completou dizendo que “Ortodoxia quer dizer não pensar... não precisar pensar. Ortodoxia é inconsciência”. 
(...)
Winston se assustou com as revelações que acabara de ouvir. Evidentemente esforçou-se para não ser traído por suas expressões. Por outro lado, refletiu a respeito do camarada e concluiu que ele se daria mal. Seu fim seria a “vaporização” porque se tratava de um tipo inteligente demais, que sabia antever os resultados dos processos desenvolvidos pelo Partido e que “falava sem rodeios”. O regime não tolerava tipos como o Syme.
(...)
Winston terminou o seu naco de pão e queijo... Passou a tomar o café prestando alguma atenção ao tipo da outra mesa que continuava a falar sem parar e de modo estridente... Percebeu que atrás dele, e de costas para ele, havia uma moça que talvez fosse secretária do que não se cansava de falar. Pelo visto, ela o ouvia atentamente e concordava com tudo, já que era possível ouvi-la dizer que o tipo tinha razão. Este não interrompia a falação nem quando ela se pronunciava. Pelo visto devia ser jovem e bem tolinha... Pelo menos era isso o que Winston notava quando a ouvia.
Ele já tinha visto aquele camarada que dominava a conversa. A seu respeito sabia apenas que era do Departamento de Ficção, onde devia exercer alta função. O tipo contava uns trinta anos e se destacava pelo “pescoço musculoso” e por sua “boca grande, muito agitada”.
Apesar da proximidade, Winston não entendia praticamente nada das inúmeras frases que o outro disparava... Como o tipo mantinha o olhar voltado para o alto, a luz incidia sobre as lentes de seus óculos e, dessa forma, quem o fitasse enxergaria apenas “dois discos brancos em vez dos olhos”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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