sábado, 22 de maio de 2021

“Rei do Congo – A mentira que virou folclore”, de José Ramos Tinhorão – movimentação de congoleses em frente e no entorno da Igreja de São Domingos, venda de quitutes e autorização de mesa no interior da igreja; reclamação da “congregação dos brancos” e o seu “Relatório e sumário dos serviços e desserviços da Senhora do Rosário acusados de haver duas confrarias” com críticas a respeito da origem do dinheiro arrecadado pela “congregação dos negros”; da atuação também missionária da confraria tradicional; divisão da confraria em duas entidades e especificações da confraria dos homens pretos


Os congoleses que chegavam a Lisboa eram transportados pelos traficantes ligados ao Fernão de Melo e à ilha de São Tomé... Vimos que ao tomarem consciência de sua condição, de certo modo privilegiado em relação aos demais africanos que eram islamizados ou pagãos, e ao associarem imagens e símbolos católicos da Igreja de São Domingos a elementos de sua cultura e religiosidade originais, buscaram se aproximar da “Confraria de Nossa Senhora da Igreja de São Domingos”.
O livro dá conta de que a praça em frente à igreja se tornou local onde se reuniam congoleses... E de tal modo para lá afluíam que em pouco tempo muitas negras forras passaram a organizar seus tabuleiros para a venda de quitutes africanos e outros produtos.
Aconteceu mesmo de alguns padres autorizarem a colocação de “uma mesinha à porta da igreja e depois outra maior dentro à maneira de confraria”... Assim a presença dos negros no entorno e no interior da Igreja de São Domingos tornou-se cada vez mais habitual.
(...)
A respeito das últimas considerações, o autor se baseou em informações contidas em “Relatório e sumário dos serviços e desserviços da Senhora do Rosário acusados de haver duas confrarias”, documento do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, na Seção “Conventos”.
(...)
Tidos por devotos de Nossa Senhora do Rosário, os congoleses tiveram sua entrada e circulação pela Igreja de São Miguel autorizada pelos religiosos. Aos poucos, muitos deles se juntaram aos mais antigos que traziam desde o Congo a marca do cristianismo... E como se fortaleceram, solicitaram a permissão junto aos devotos portugueses para determinadas ações que eram cumpridas pela confraria.
A confraria que existia tinha autorização oficial para recolher fundos que eram utilizados para manter a própria organização. Além disso, enquanto instituição de caráter religioso, possuía “objetivos missionários” como o de dar “círios nas caravelas que iam à Mina e aos rios da Guiné, uma vez que as pessoas que nelas fossem o quisessem tomar por isso devoção”*.

                   *O trecho citado está em “Os pretos em Portugal”, do Padre Antonio Brásio, da “Coleção Pelo Império”, nº 101.

Compreendendo o modelo, os negros pleitearam o direito de também angariar fundos com os quais pretendiam contemplar demandas próprias de sua gente. Assim, “admitidos ao Rosário”, dedicaram-se à compra de alforria para os que definissem como merecedores.
De fato, não demorou e o segmento conseguiu juntar expressiva quantidade de dinheiro sem qualquer verificação da origem. Aconteceu então que a “congregação dos brancos”, que já havia implicado com a autorização do funcionamento da “congregação dos negros”, elaborou relatório (o citado “Relatório e sumário dos serviços e desserviços da Senhora do Rosário acusados de haver duas confrarias”) no qual salientava que há muito tempo (“passa de vinte anos”; desde por volta de 1520) os negros congregados aceitavam que os escravos lhes trouxessem “furtos que fazem a seus senhores à sua congregação para fingirem ser dinheiro da confraria para os forrar”.
(...)
Como podemos depreender, a confraria dos brancos da Igreja de São Domingos desentendeu-se com os negros que lhes eram subordinados na irmandade ao tempo de sua admissão. Ainda por volta de 1520, a insatisfação dos membros mais tradicionais levou a associação a reclamar junto ao poder real uma solução para o problema.
E foi assim que se decidiu pela “divisão da confraria em duas entidades distintas”. Dessa forma, admitia-se a existência da “Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos”.
O fato é que, como nos lembra Tinhorão, a partir de então:

                   “os negros do Congo levados cristianizados a Portugal, puderam obter enfim, o reconhecimento de uma identidade que lhes permitia tentar reviver agora, em seu exílio forçado, um pouco da memória de sua vida africana”.

Como salientado anteriormente, isso deve ter ocorrido por volta de 1520... O caso é que não se sabe ao certo a data “de fundação” por causa do incêndio que a Igreja de São Domingos sofreu por ocasião do terremoto que abalou Lisboa em 1755. Na ocasião muitos documentos se perderam, entre eles os que se referiam à Confraria dos Homens Pretos.
Leia: Rei do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas