quarta-feira, 12 de agosto de 2020

“Rei do Congo – A mentira que virou folclore”, de José Ramos Tinhorão – carta do manicongo D. Afonso ao rei D. Manuel; ataques aos costumes religiosos do povo para melhor se alinhar ao reino português e à fé católica; ilha de São Tomé e o entendimento do manicongo a respeito de um auxílio abnegado e cristão; nau carregada de preciosidades e o ambicioso donatário Fernão de Melo pretende tirar proveito das carências do reino do Congo; registros de D. Afonso do Congo a respeito do decepcionante “retorno” dado pelo donatário de São Tomé

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Vimos que a sucessão de D. João Nzinga a Nkuwu foi marcada pela disputa entre dois irmãos, o cristianizado Mbemba a Nzinga e o “tradicionalista” Mpangu a Kitina... Como sabemos, Mbemba a Nzinga, batizado pelos portugueses, saiu-se vencedor e tornou-se o novo manicongo.
A última postagem sinalizou que D. Afonso (nome cristão de Mbemba a Nzinga) iniciou sua condição de chefe dos congoleses amargando a contradição... Para demonstrar que estava alinhado com as propostas civilizatórias dos portugueses, enviou o filho Henrique e o sobrinho Rodrigo de Santa Maria a Portugal com uma carta ao rei D. Manuel... A missiva tratava de sua vitória no conflito com os tradicionalistas e solicitava “alguns clérigos ou frades” para que sua gente pudesse aprender mais sobre a fé.
D. Afonso do Congo quis resolver de uma vez por todas a questão religiosa em torno da tradição de seu povo e ordenou o recolhimento de “estatuetas-imagens dos antepassados”. Elas eram cultuadas com devoção pelos congoleses, mas os missionários portugueses insistiam que não passavam de “ídolos” que nada tinham de sagrados.
Como era de se esperar, houve reação à medida imposta pelo manicongo... Ele tinha a intenção de destruir todos os objetos assim que fossem confiscados, mas percebendo que não teria como dar prosseguimento à sua iniciativa, recorreu ao auxílio dos portugueses que dominavam a ilha de São Tomé.
(...)
Essa ilha havia sido “descoberta” por João de Santana e Pero de Escobar em 1470, exatamente no dia do santo, e foi por isso que lhe deram o nome de “São Tomé”... Em 1485, D. João II a cedera como capitania a João de Paiva. Em 1493 a ilha foi repassada a Álvaro de Caminha. Este deu início ao povoamento, mas logo veio a falecer. Em 1499, D. Manuel cedeu ao fidalgo Fernão de Melo o cargo de governador de São Tomé na condição de donatário.
A ilha era povoada basicamente por degredados. Desde 1487 o governo de Portugal ordenava o envio de judeus forçados ao batismo cristão. Na distante localidade deveriam assimilar os ensinamentos cristãos/católicos.
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Foi em 1508 que o manicongo cristão D. Afonso, receando as consequências de suas imposições sobre os objetos religiosos, pediu auxílio ao nobre governador Fernão de Melo. Naturalmente ele esperava contar com um gesto abnegado e cristão da parte do aliado português. D. Afonso Mbemba a Nzinga se via em grave situação, já que os cristãos no Sundi eram bem poucos (ele, o primo Pedro e suas famílias). A esmagadora maioria se inclinava à veneração dos ídolos.
A nau que partiria da Mina com os padres Rodrigues Eanes e Antonio Fernandes com destino a Portugal pareceu-lhe providencial, já que a embarcação deveria permanecer ancorada por algum tempo em São Tomé. Aos dois padres solicitou que acompanhassem os jovens Henrique e Rodrigo e que levassem a carta ao rei D. Manuel, além de entregarem uma específica ao governador Fernão de Melo. Ao governador donatário da ilha o manicongo solicitava a visita de “alguns clérigos que ensinassem as coisas de Deus”.
(...)
Mas aconteceu que o fidalgo Fernão de Melo se encheu de cobiça ao ver o filho e o sobrinho de D. Afonso do Congo num navio carregado de preciosidades... Os jovens partiam para Portugal, onde receberiam formação religiosa, e eram acompanhados por “dois padres que, apenas por terem servido à Igreja entre os negros, voltavam com ‘mil e quinhentas manilhas e cinquenta escravos’”!
E foi assim que logo o manicongo percebeu que uma aliança com base nos ideais de solidariedade cristã seria algo impossível com o ambicioso donatário.
Fernão de Melo ouviu de alguns compatriotas que poderia obter muitas vantagens se estabelecesse “um esperto sistema de trocas com o Congo”. O navio que acabara de chegar apenas aguçou sua cobiça.
Registros do próprio D. Afonso Mbemba a Nzinga nos dão conta da resposta do fidalgo ao seu “pedido de apoio religioso”:

                   “um navio sem nenhuma coisa, somente um cobertor da cama e uma guarda porta e uma alcatifa e um céu de esparanel e uma garrafa de vidro, e assim nos mandou no dito navio um clérigo e vinha por capitão Gonçalo Peres e por escrivão João Godinho, o qual navio nós recebemos muito prazer porque cuidávamos que vinha em serviço de Deus, e ele vinha por grande cobiça”.

Leia: Rei do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“Rei do Congo – A mentira que virou folclore”, de José Ramos Tinhorão – dos ornamentos rituais tradicionais de uma possível cerimônia de posse do D. Afonso do Congo como “ntotila nitnu né Kongo”; informações sobre o “barrete alto como a mitra”; o colar “simba” e as informações de Antonio Brásio; sobre o bracelete “nlunga ou ma lunga” e a braçadeira “enullo”; um início de reinado marcado pela contradição


Mbemba a Nzinga, o D. Afonso do Congo chegou ao poder e pode-se dizer que ele representava a ideologia introduzida pelos portugueses na região... Apesar de não haverem registros documentais a respeito de sua posse, por tudo o que se salientou anteriormente, não se deve descartar a possibilidade de ele ter passado por uma investidura que contemplasse também os rituais tradicionais.
É bem verdade que as típicas assembleias provinciais, as discussões, escolha e deliberações a respeito do novo líder, no caso de Mbemba a Nzinga, deixaram de ser elementares devido à sua vitória na luta que ocorreu à época da morte de seu pai. Assim, Tinhorão apresenta detalhes que evidenciariam um cerimonial religioso no qual Mbemba a Nzinga teria sido figura central.
Como veremos, por conta de sua aliança com os cristãos portugueses, o soberano iniciou seu “mandato” com a marca da contradição.
(...)
Trajes e adereços diversos eram utilizados para dar significado à posse do novo líder... A tradição desde Nitnu Wene era a de que aquele que chegava ao poder assumia a grande responsabilidade de chefiar as diversas famílias que faziam parte do Congo. Dizemos que Mbemba a Nzinga (o D. Afonso do Congo) passava a ser reconhecido pelos nativos como “ntotila nitnu né Kongo”, o chefe supremo do grande Congo. Seus conterrâneos assim o admitiam, já que sua investidura e legitimidade eram conferidas pelo “principal eleitor dos manis”, o mais importante dos sacerdotes, Ntinu Nsaku ne Vunda.
Devemos considerar que o cerimonial tenha ocorrido... E se é assim, de acordo com os registros de Rui de Pina e os do cronista João de Barros (“Ásia”, 1539; “capítulo IX do livro III, década I), o sacerdote colocou “um barrete alto como mitra” na cabeça do chefe político empossado. Rui de Pina havia recorrido aos manuscritos de Rui de Sousa (1492) para descrever o referido barrete como “uma carapuça ou gorra de pano branco, que é ornamentado em honra dos sacerdotes”.
A peça lembra o acessório utilizado pelo papa, cardeais e bispos da atualidade... O “gorro alto” entre os congoleses era chamado de “impud, ampu, impu, empua ou empud”. Os nomes variam de acordo com as fontes até o século XVII. O autor cita religiosos católicos que produziram parte dessa documentação: D. Frei Manuel Batista (bispo), André Cordeiro e J. Mertens (padres).
(...)
Um segundo adereço exibido pelo manicongo era um colar conhecido como “simba”... A peça continha vários pingentes feitos de ferro e era grande a ponto de envolver o mani, passando por baixo de sua axila direita e pelas costas... De acordo com o padre Antonio Brásio em “O problema da eleição e coroação dos reis do Congo”, a simbologia que estava por trás do colar lembrava a submissão do soberano em relação ao seu povo:

                   “assim como a mulher, que tem filhos, os leva às costas – comportamento ao vivo africano -, assim ele não é rei senão pai, e que assim há de querer a seus vassalos como filhos, e os há de trazer sempre carregados, isto é, às costas”.

Além do “gorro branco alto” e do “grande colar com pingentes de ferro”, o mani que era investido de poder em cerimonial tradicional usava um bracelete de ferro “à altura do bíceps de seu braço esquerdo”. Este braço especificamente era chamado pelos congoleses de “koko di kikento”, algo como “braço da mulher”.
O bracelete era uma “nlunga ou ma lunga”, conforme os congoleses o chamavam, e indicava a “filiação a linhagem matrilinear do Congo”. Ainda de acordo com Tinhorão, com base nas informações de Antonio Brásio, o bracelete de ferro no mani indicava “a perenidade histórica do próprio Kongo riactari, o Congo de ferro”.
Outra peça utilizada durante o ritual de posse do mani era uma braçadeira colocada em seu braço direito... Chamavam-na “enullo” e era ornamentada com esmero. O padre Antonio Brásio não apresenta nenhuma informação a respeito dos significados da “fita” e sua utilização na cerimônia.
(...)
Do que foi exposto anteriormente fica a reflexão a respeito da condição do d. Afonso, Mbemba a Nzinga. Certamente um manicongo que experimentou um conflito psicológico pessoal em relação à “posição espiritual, política e ideológica dividida” entre suas raízes e o cristianismo que adotou.
Era o início do século XVI... Para muitos, o d. Afonso, Mbemba a Nzinga, seria o despontar de “um inesperado e excêntrico personagem do Renascimento”, disposto “a ultrapassar a realidade do seu ancestralismo pela adesão às promessas de uma modernidade tentadoramente oferecida pelo europeu português”.
Leia: Rei do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

“Deus lhe pague”, peça de Joracy Camargo – das ideias revolucionárias do mendigo sobre as injustiças sociais e suas origens na propriedade; a respeito da ilusão alimentada com a oferta de esmolas

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As palavras do mendigo sobre o tempo em que a terra e a água não eram propriedades foram reproduzidas em “Dios se lo pague”... Elas sintetizam o seu modo de pensar. O outro jamais ouvira algo parecido e sem ter o que responder diz que ele é que não havia cedido o direito de posse da terra ou da água a alguém.
(...)
O mendigo exclama que ninguém fez qualquer concessão, mas os primeiros espertalhões se apropriaram dos bens que deviam ser de todos e “inventaram a Justiça e a Polícia”. Fizeram isso para processar os que ousassem tomar-lhes! Disse essas coisas e emendou que os que se arrogam proprietários só podem explicar com a argumentação de que adquiriram suas terras através da compra.
A conversa com o outro levou-o a argumentar que um proprietário vende seu bem a outro, e que esse processo de compra e venda parece não ter fim, mas se questionarmos sobre como o primeiro se tornou dono de algo constataremos que ele simplesmente tomou posse “sem ter direito algum” de fazer isso. E como no princípio “não havia leis”, alguns dividiram “tudo entre si” e logo fizeram os Códigos para incriminar os que a partir de então ousassem repetir o que eles fizeram.
O outro concluía que a sociedade, através da polícia e das classes armadas, garante a posse. O mendigo seguiu dizendo que os que se arvoravam nesses poderes instituídos também “não são donos de nada, mas foram convencidos de que devem fazer respeitar uma divisão na qual não foram aquinhoados”.
(...)
Como se vê, as críticas do velho mendigo são duríssimas contra instituições que asseguram a ordem na sociedade... Vê-se que ele quer dar a entender que elas só existem para garantir a posse das propriedades dos poderosos e ricos.
Para o outro seria o caso de saber se aquele mendigo estava disposto a “reformar o mundo”... Ele respondeu mesmo que havia pensado nisso, mas acabou compreendendo que a humanidade não carece de seu sacrifício. O fato é que a quantidade de desafortunados cresce a cada dia... Seria o caso de envidar esforços para mudar a situação, mas ele simplesmente resolveu abandonar a sociedade e pedir-lhe o que considerava ser seu direito.
O homem prosseguiu em sua falação ressaltando que pedir é um direito universalmente reconhecido... Ninguém é contra o mendigo! Salientou que as pessoas até sentem prazer ao serem interpeladas por um que suplica por uma moeda... garantiu que no final das contas o mendigo é socialmente aceito porque se trata de alguém que “desistiu de lutar contra os outros”.
O companheiro que a tudo ouvia sentenciou que “os homens não precisam de nós”. O mendigo redarguiu dizendo que precisam sim... Na sequência perguntou o nome do outro, que respondeu “Barata”.
(...)
O raciocínio do mendigo era simples... As pessoas “precisam dos pedintes”, mas obviamente não dependem deles... Tratam os maltrapilhos com ternura e têm um interesse religioso nisso, pois até dizem que “dando aos pobres, emprestam a Deus”. Na esmola, portanto, há muito interesse... Os pecadores querem ter suas faltas aliviadas, enquanto os que sofrem querem ser agraciados por Deus... Ofertam míseras moedas e assim “adiam a revolta dos miseráveis”.
O outro (Barata) interveio dizendo que as pessoas agradecem a Deus e assim demonstram sua gratidão... O mendigo resmungou e disse que não há gratidão... O que acontece é que as pessoas têm medo de deixar de ser felizes. Acrescentou que se a felicidade fosse permanente, Deus deixaria de existir para elas... Dão esmola como que a comprar a felicidade. No caso, os mendigos são os “vendedores” daquele bem.
O outro concluiu que a felicidade, então, é muito barata... O mendigo que dizia as coisas polêmicas garantiu que a felicidade é muito cara, e cravou que “barata é a ilusão”. Os que ofertam níqueis se iludem com o agradecimento dos pedintes... O “Deus lhe pague” os levam a pensar que terão sorte em alguma loteria no dia seguinte, ou ainda imaginam que as horas perdidas nos cabarés com “vícios e corrupções” lhes serão perdoadas pela esmola ofertada. Eles não sabem que o que redime é o sacrifício... Esmola é sobra, é resto!
Leia: “Deus lhe pague”. Ediouro.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – do processo de reivindicações dos judeus da França ao tempo de sua Revolução; da petição e insistência para que a extensão dos direitos às comunidades judaicas fosse parte do processo de transformações; avanço dos direitos às minorias religiosas na Grã-Bretanha; primeira emenda e extensão dos direitos nos vários Estados

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Nota-se que a discussão sobre os direitos e a conquista pelas minorias não era algo motivado apenas pelos representantes que faziam parte da Assembleia... As comunidades percebiam a importância do momento histórico e passavam a exigir maior atenção dos que elaboravam a legislação.
Vimos que os protestantes conseguiram destaque porque a Assembleia Nacional contava com alguns representantes que comungavam da mesma fé religiosa. Já os judeus que viviam em Paris eram poucos (algumas centenas) e não conseguiam exercer pressão significativa sobre os políticos. Ainda em agosto de 1789 eles entregaram petição na qual solicitavam que os deputados reconhecessem seus direitos de cidadãos. A grande comunidade de judeus da Alsácia-Lorena publicou carta aberta com a mesma solicitação uma semana depois dos parisienses.
(...)
Depois que os direitos dos judeus sulistas foram reconhecidos (janeiro de 1790), os de Paris e os do leste do país se uniram e formularam petição conjunta. Por ocasião dos debates, alguns deputados questionaram se eles pretendiam realmente se tornar cidadãos franceses... Os requerentes deixaram tão clara sua posição que logo apareceram representantes afirmando que “eles pedem que as distinções degradantes que sofreram até o presente sejam abolidas e que eles sejam declarados CIDADÃOS”.
Os judeus peticionários analisaram o histórico preconceito que sofriam e elaboraram uma contundente conclusão para o seu panfleto:

                   “Tudo está mudando; a sorte dos judeus deve mudar ao mesmo tempo; e as pessoas não ficarão mais surpresas com essa mudança particular do que com todas aquelas que veem ao seu redor todo dia. (...) Liguem o aperfeiçoamento da sorte dos judeus à revolução; amalgamem, por assim dizer, esta revolução parcial com a revolução geral”.

Ao final registraram a data mesma em que a Assembleia havia aprovado a exceção para os judeus de origem Ibérica que viviam no sul.
(...)
O fato é que se passaram dois anos até que os direitos civis fossem estendidos às minorias religiosas de toda a França... É verdade que os judeus continuaram a sofrer preconceito, mas há que se considerar que em outros países os avanços nas legislações em relação a antigos entraves religiosos foram mais morosos.
Na Inglaterra, por exemplo, os católicos só passaram a ser admitidos nas Forças Armadas, em universidades e no Poder Judiciário apenas em 1793... E os judeus só conquistaram esses direitos em 1845. Também em relação ao direito de “serem eleitos” para o Parlamento britânico notamos conquistas tardias, pois os católicos só foram contemplados após 1829 e os judeus apenas trinta anos depois.
(...)
Comparado a essas realidades, o que ocorreu nos Estados Unidos parece ter sido menos traumático... Ao tempo da colonização havia cerca de 2500 judeus que não exerciam qualquer direito político. E é certo que após a Declaração de 1776 a maioria dos Estados garantia o exercício de cargos públicos apenas aos protestantes... Em alguns Estados o direito ao voto era restrito a eles.
A liberdade de religião foi tema da primeira emenda constitucional de setembro de 1789 e “ratificada em 1791”. A partir dela verificou-se nos Estados o mesmo que ocorreria na Grã-Bretanha, ou seja, inicialmente os católicos conquistaram direitos políticos e na sequência os judeus.
Lynn Hunt cita o exemplo do ocorrido em Massachusetts, que em 1780 aprovou o ingresso a cargos públicos de cidadãos que seguissem “religião cristã”... Os que confessavam outras religiões só passaram a ter o mesmo direito em 1833.
Na Virgínia de Thomas Jefferson os referidos “direitos iguais” foram concedidos em 1785... O mesmo ocorreu na Carolina do Sul e na Pensilvânia cinco anos depois. Já em Rhode Island apenas em 1842 passou-se a desconsiderar o chamado “teste religioso”.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“Deus lhe pague”, peça de Joracy Camargo – começo da peça; fiéis chegam à igreja, junto à imponente porta aparece o “mendigo” bem nutrido e altivo; “outro” mendigo se acomoda junto ao primeiro; ordinárias pontas de cigarro e valiosos charutos Havana; um pouco da “história do mundo” para explicar que no começo ninguém era dono de nada; um pouco da dinâmica da peça

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Quando a cortina se abre para o início do primeiro ato, o que se vê é a porta majestosa de uma igreja antiga que, assim como a cidade, está mal iluminada... Há luz em seu interior e vemos uma senhora enlutada entrando no templo... Logo mais chega um senhor com ares serenos e na sequência uma moça inquieta que segue sempre a olhar para todas as direções.
(...)
Aparece um mendigo que conta aproximadamente cinquenta anos... Ele tem barba e cabelos longos e traz o olhar sereno... Suas expressões sugerem algo de “messiânico”... Seu chapéu de feltro é surrado e mais se parece com um saco. Veste um paletó preto, sujo e em farrapo... Seus bolsos são enormes e estão cheios. Suas calças também são grandes, escuras e com alguns remendos. As botinas mal vestem os pés, pois são gastas e deixam à mostra dedos desprovidos de meias. Sua bengala é um “pau tosco” e debaixo do braço o mendigo carrega vários jornais velhos.
O curioso modo de andar do velho permite concluir que se trata de um tipo saudável... Ele não parece desnutrido. Logo que vê um rapaz se dirigindo à igreja assume ares de cansaço e sofrimento. Apoia-se na bengala e estende-lhe o chapéu, então o rapaz atira-lhe uma moeda.
O mendigo que havia acomodado seus jornais sobre os degraus da escada agradeceu com um “Deus lhe pague” e terminou de se ajeitar. No mesmo instante outro mendigo se aproximou... Este conta mais ou menos a mesma idade, está esfarrapado e carrega uma aparência de muito sofrimento. Ele está visivelmente faminto... Distraidamente estendeu o chapéu ao primeiro mendigo.
Só depois de reparar melhor, vê que se trata de um “colega de infortúnio”, então pediu desculpa e explicou que até o momento pouco arrecadara. Mostrou camaradagem e ofereceu um cigarro.
(...)
Evidentemente estamos tratando do início da peça que serviu de base para o roteiro de “Dios se lo pague”... Aqui vamos conhecer a trama que se desenvolve na peça de Joracy Camargo e fazer comparações com o filme.
(...)
O primeiro mendigo quis saber se os cigarros que o outro lhe oferecia eram bons. Uma latinha mostrava pontas ordinárias de cigarros. O mendigo agradeceu e recusou para logo a seguir oferecer charutos. O outro aceitou o inusitado agrado, mas obviamente mostrou-se espantado... À sua mão chegou um Havana e o mendigo admitiu que possuía vários daquele e disse que cada um custava 10$000 (dez mil réis).
O mais maltratado dos dois disse que nunca tivera “jeito para roubar”... Essa frase é sugestiva, e o primeiro adiantou-se a responder que também não tinha aquele tipo de hábito... Acrescentou que os charutos haviam sido comprados por ele, que “ainda não era um ladrão”.
O outro (aliás, é assim mesmo que aparece no roteiro) pediu desculpa por sua indiscrição... O primeiro mendigo explicou que não havia necessidade de se desculpar e esclareceu que não se tratava de um ladrão. Acrescentou que poderia sê-lo, pois isso era um “direito”. O outro foi se sentando querendo saber se aquilo era sério da parte do companheiro, então este respondeu-lhe que achava que tinha mesmo o direito de surripiar, mas acrescentou que preferira trabalhar, o que é algo difícil de se conseguir, e por isso resolveu recorrer às esmolas antes que se visse na necessidade de roubar... Disse ainda que “pedir dá menos trabalho”.
O outro quis saber se era por aquele motivo que o amigo vivia de pedir. A resposta foi afirmativa e na sequência o mendigo perguntou se ele conhecia a “história do mundo”... E foi explicando que:

                   “Antigamente, tudo era de todos. Ninguém era dono da terra e a água não pertencia a ninguém. Hoje, cada pedaço de terra tem um dono e cada nascente de água pertence a alguém. Quem foi que deu?”

(...)
Este é o começo da peça de Joracy Camargo...
Como veremos, trama principal se passa numa noite. O “outro” é o Barata... Ele se apresentará, mas o texto prosseguirá fazendo referência a ele como o “outro”. O mendigo protagonista é chamado apenas “mendigo”. Ele vive duas situações existenciais como o filme bem retrata... Veremos que nem todos os diálogos da peça foram reproduzidos fielmente pelo filme. Isso é normal, pois trata-se de uma adaptação.
O cenário da peça é basicamente o da porta da velha e imponente igreja... Mas há outros planos do palco onde se encenam os eventos narrados pelo mendigo ao companheiro Barata. Uma das cenas é a da visita do diretor da fábrica à casa de Juca (o mendigo; no filme o operário é chamado de Yuca) e sua companheira Maria. O empresário é citado apenas como “senhor” no roteiro da peça.
Outra cena que se passa em outro plano é o da rica casa, onde Péricles e Nancy acertam sua fuga. O roteiro da peça sugere uma sequência de iluminações que evidenciam o local onde se desenvolvem as ações... O que faz o papel do mendigo se transfere rapidamente de um local a outro. Desse modo participa dos “diálogos do presente” com o Barata e das ações do “passado” por ele narradas. Rápidas trocas de figurinos e retoques de maquiagem ocorrem no processo.
Leia: “Deus lhe pague”. Ediouro.
Um abraço,
Prof.Gilberto

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – Talleyrand e a defesa da continuidade dos direitos dos judeus do sul da França; deputados da Alsácia-Lorena refletem a respeito da condição dos judeus do leste do país; asquenazes e sefarditas; resultado da primeira votação favorável à manutenção dos direitos concedidos pelo monarca à comunidade sulista; a extensão dos direitos em setembro de 1791, reconhecimento dos judeus como indivíduos e cidadãos franceses; a teoria ainda prevalecia “letra morta” em relação à condição das mulheres

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Vimos que boa parte do conteúdo das queixas com referências à comunidade judaica apresentadas aos representantes que fariam parte dos Estados Gerais continha posições contrárias aos judeus... De certo modo isso explica os motivos de os deputados não estenderem os direitos políticos a eles por ocasião das votações da véspera do Natal de 1789. Mas aconteceu que nos vinte meses seguintes a discussão acabou tornando-se favorável às comunidades judaicas.
Apenas um mês depois, judeus oriundos da Península Ibérica que viviam no sul da França levaram uma petição à Assembleia. Como salientamos anteriormente, eles argumentaram que, assim como os protestantes, já vinham participando de eventos políticos em cidades como Bordeaux... No Comitê sobre a Constituição encontraram o apoio de Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord, bispo católico alinhado aos liberais que discursou endossando as afirmações das referidas comunidades.
Talleyrand insistia que os judeus não pediam novos direitos, mas apenas que pretendiam “continuar a gozar os direitos” que já exerciam. De acordo com o seu entendimento a Assembleia poderia aprovar a manutenção dos direitos dessa parcela “sem mudar o status dos judeus em geral”.
Os deputados da Alsácia-Lorena, onde se concentrava a maioria dos judeus no país, sensibilizaram-se a partir dos juízos de Talleyrand... Eles sabiam que as comunidades de sua região concentravam asquenazes (judeus oriundos basicamente da Europa Central), certamente mais facilmente identificados como pertencentes à comunidade, já que os homens costumavam usar longas barbas. Bem diferente dos judeus sefarditas de Bordeaux (normalmente escanhoados).
Como admitir que os asquenazes da Alsácia-Lorena continuassem a cumprir um regulamento que os obrigava a viverem do empréstimo e da mascataria enquanto os de Bordeaux passariam a ter direitos de cidadania garantidos por lei? Eles bem sabiam que as relações dos judeus credores e mascates com os camponeses eram sempre muito tensas e que, portanto, viviam necessitados de garantias legais.
Os deputados do leste francês argumentaram que a orientação sugerida por Talleyrand, garantir a exceção aos sefarditas de Bordeaux, certamente resultaria na extensão das prerrogativas aos demais judeus que viviam no país. Os debates seguiram intensos e, apesar das apelações dos representantes da Alsácia-Lorena, a votação resultou nem 374 a 224 a favor de que:

                   “todos os judeus conhecidos como judeus portugueses, espanhóis e de Avignon continuarão a exercer os direitos que têm exercido até o presente” e “exercerão os direitos dos cidadãos ativos, desde que satisfaçam os requisitos estabelecidos pelos decretos da Assembleia Nacional (relativos à cidadania ativa)”.

Apesar disso, os direitos cedidos à parcela dos judeus motivaram ainda mais a discussão a favor de sua extensão aos demais... De fato, isso foi sacramentado pela Assembleia no dia 27 de setembro de 1791. Exigiu-se que os recém-admitidos no quadro de cidadãos jurassem uma declaração cívica renunciando as concessões obtidas junto à monarquia.
Prevaleceu a ideia de Clermont-Tonnerre segundo a qual a Assembleia devia “recusar tudo aos judeus como uma nação e conceder tudo aos judeus como indivíduos”. E foi assim que, ao renunciarem as cortes específicas de leis e de justiça, os judeus passaram a ser vistos como “cidadãos franceses como todos os outros”.
(...)
Mais uma vez Lynn Hunt salienta que os princípios mais gerais contidos na Declaração de agosto de 1789 foram decisivos no tocante à observação de que “no universo dos judeus que viviam no país” havia alguns que já praticavam certos direitos. Obviamente uma e outra parte não podia receber tratamento diferenciado dos legisladores...
Mais uma vez destaca-se que, no tocante à questão das mulheres, a “teoria” permanecia “letra morta”.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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