quarta-feira, 30 de junho de 2021

“O Estrangeiro”, de Albert Camus – o fim; o desabafo final com a afirmação das convicções de quem subtraiu as aparências demandadas pelos “socialmente ajustados”; os guardas livraram o padre de um sufocamento; na solidão da cela, em meio à noite tranquila, os últimos pensamentos a respeito da mãe e de seu próprio epílogo

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Meursault disse muito mais...
Sentenciou que “nada tinha importância”, ele bem sabia por que e admitiu que o padre também soubesse. Reconhecia que levara uma vida absurda e que não tinha como não conjecturar que outros anos mais pudessem se estender não fosse a sentença de morte... Através desse tempo, que não seria vivido por ele, chegava-lhe “um sopro obscuro que igualava em sua passagem tudo o que lhe haviam proposto nos anos, não mais reais, em que vivia”.
De modo algum se via na obrigação de se importar com “a morte dos outros ou o amor de uma mãe”. Que importância teria para ele o Deus que o padre queria transmitir? Ou ainda “as vidas que se escolhem, os destinos que se elegem”? A ele restava um único e certeiro destino! Os muitos outros que, como o sacerdote, podiam dizer-lhe “somos irmãos”, não experimentariam o seu ocaso e, nesse sentido, eram privilegiados.
Agressivamente, perguntou ao padre se ele compreendia o que estava lhe dizendo. Compreendia que “toda gente era privilegiada”? Mas todos seriam condenados um dia, inclusive o tipo que aparecera para lhe falar de arrependimento dos pecados e da Providência Divina.
(...)
Não pensava sinceramente que tivesse de se importar por ter sido acusado do assassinato e que seria executado também por não ter chorado durante o enterro da mãe...
Em sua opinião ninguém devia se importar com isso! Aprendeu que seu vizinho, o velho Salamano, teve um cão “que valia tanto quanto a sua mulher”!
Aos gritos, referiu-se ainda à “mulher autômato”, aquela do restaurante do Celeste, que certa vez se sentara à mesma mesa que ele e que se comportou de modo estranho... O que aquele tipinho almejava? Talvez sua devoção fanática às matérias sobre a programação radiofônica fosse um sintoma do fracasso na vida amorosa. Ela “era tão culpada como a parisiense que não se casara ou como Maria”, que também não se casara, mas pretendia se casar com ele...
O padre quisera se passar por amigo, “um pai” do condenado... Meursault escancarou que não via nisso ou na sua aposta de “novo homem” qualquer importância. Um tipo como o Celeste lhe era mais valioso!
Vociferava essas verdades de “condenado prestes a ser executado” ao mesmo tempo em que provocava o religioso, perguntando se ele podia compreendê-las...
(...)
Tanto gritou em suas agressões ao padre que acabou perdendo o fôlego.
Os guardas chegaram e com várias ameaças o arrancaram de cima do capelão... Eles só se acalmaram depois que o próprio religioso pediu que o deixassem.
O homem estava visivelmente assustado... Tinha os olhos carregados de lágrimas e olhou para o Meursault em silêncio. Depois virou-se e se retirou da cela.
(...)
Só então Meursault se aquietou... Esgotado física e mentalmente, atirou-se sobre a cama e adormeceu... Quando despertou contemplou estrelas e pôs-se a ouvir “ruídos do campo” e a absorver os “cheiros da noite da terra”.
Sua têmpora não latejava ou queimava e ele sentiu que “a paz maravilhosa do verão adormecido” o invadia. Ouviu ao longe, “no limite da noite”, o soar de apitos... Talvez anunciassem “partidas para um mundo que lhe era para sempre indiferente”.
Pensou na mãe... Pensou que enfim podia compreender o motivo de ela ter “arranjado um noivo no fim da vida”. Entendia que ela “fingira um recomeço” lá no asilo, “onde as vidas se apagavam” e “a noite era como uma treva melancólica”. Talvez reconhecendo que a morte se aproximava, ela se “sentisse libertada e pronta a tudo reviver”. Sem dúvida, atitude reveladora da autonomia que tem apreço pela dignidade. Para Meursault, “ninguém, ninguém tinha o direito de chorar sobre ela”.
(...)
Pensar na mãe levou-o a refletir sobre sua própria condição... Podia considerar que também ele se sentia “pronto a tudo reviver”.
Os momentos de cólera e desabafo que experimentara no ataque ao padre pareciam ter “o limpado do mal, esvaziado da esperança”. A noite serena e “carregada de sinais” possibilitava-lhe abrir-se “pela primeira vez à terna indiferença do mundo”.
O mundo não lhe era estranho... De modo algum! Sentia que se parecia com “aquele mundo” de suas reflexões, “que fora feliz e que ainda o era”. Então pôde concluir que “para que tudo ficasse consumado, para que se sentisse menos só, faltava-lhe desejar que houvesse muito público no dia da sua execução e que os espectadores o recebessem com gritos de ódio”.
Fim.
Leia: “O Estrangeiro”. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“O Estrangeiro”, de Albert Camus – Maria, e a colorida existência que ela representava, a face que Meursault esperava ver surgindo das pedras de sua cela; o padre tentou uma “aproximação fraterna” e foi rechaçado pelo condenado; no limite, a insistência na ideia de uma necessária remissão provocou a agressão que estava reprimida; depois de ouvir que o religioso rezaria por ele, Meursault deu início ao seu desabafo final

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O condenado animou-se a dar uma resposta e falou que olhava as pedras da parede há muitos meses. Podia dizer que não havia nada no mundo que ele conhecesse melhor do que aquelas pedras e que por algum tempo até procurou enxergar uma face nelas. Adiantou que a referida face só podia ter “a cor do céu e a chama do desejo”, pois se tratava da face de Maria. Mas no momento sabia que sua procura havia sido em vão e que estava tudo acabado... Além do mais nunca vira qualquer suor surgir das paredes.
O padre o encarou tristemente... Meursault acomodou as costas na parede e notou que tinha a testa estava bem suada. O outro dizia umas frases que não lhe despertava o menor interesse até que de repente perguntou se podia abraçá-lo. “Não!”, Meursault vociferou no mesmo instante.
O religioso retrocedeu de costas, virou-se para a parede e começou a passar a mão em sua superfície. Na sequência perguntou se ele gostava “tanto assim desta terra”. O rapaz não respondeu e se irritou ainda mais ao notar que o outro dramatizava ao manter-se de costas para ele.
Estava mesmo para pedir que se retirasse quando o religioso se voltou novamente à sua direção e exclamou que não podia acreditar nas palavras que ouvia. Depois insistiu que tinha certeza de que ele já teria desejado “uma outra vida". O rapaz respondeu que certamente isso já tinha lhe ocorrido, mas entendia que isso equivalia a “desejar ser rico, nadar muito depressa ou ter uma boca mais em feita”, um desses desejos comuns.
O padre o interrompeu e quis que ele lhe dissesse como imaginava “essa outra vida”. Meursault respondeu que seria uma vida que lhe permitisse lembrar-se da vida que experimentara até então. Terminou de responder e emendou que “já bastava”.
(...)
Meursault já não suportava a insistência do capelão, que teimava em continuar a falar a respeito “da outra vida” e da necessidade de reconhecer-se pecador e dependente da Divina Providência... Então resolveu avançar para explicar que “já não tinha muito tempo” e que “não queria perder o tempo que lhe restava com discussões”.
O homem parecia não fazer qualquer questão de finalizar o que tinha para dizer nem de se retirar, então perguntou o motivo de tratá-lo por “senhor” em vez de “pai”.
Essa foi demais! O rapaz não disfarçou o nervosismo e esbravejou que ele não era seu pai, além disso, “estava do lado dos outros”.
O padre colocou a mão em seu ombro, disse um “não, meu filho”. Na sequência cravou que estava do seu lado, mas não podia perceber isso porque “seu coração estava cego”. Por fim, disse que rezaria por ele.
(...)
Isso pareceu ser a “gota d’água”, já que Meursault começou “a gritar em altos berros” e a insultá-lo... Vociferou que não queria que rezasse por ele e que, mesmo que exista um inferno, não se importaria, já que preferia “ser queimado no fogo” a desaparecer.
Visivelmente irritado, agarrou a gola da batina do religioso e continuou a esbravejar com ímpetos de “alegria e cólera”. Provocou-o dizendo que sua confiança e certezas não valiam sequer um “cabelo de mulher”... Como podia ter “certeza de estar vivo”? Por tudo o que representava e dizia “vivia como um morto!”
A respeito de si, Meursault asseverou que era certo que tinha as mãos vazias, mas carregava certezas, e muito mais do que o que dizia que rezaria por ele. Tinha certezas a respeito de sua vida e “da morte que se aproximava”. E não precisava saber muito mais que disso! Gritou ainda que, além de “segurar essa verdade”, sabia que ela o mantinha convicto a respeito de si mesmo.
E prosseguiu em seu desagravo:

                   “Tinha tido razão, tinha ainda razão, teria sempre razão. Vivera de uma dada maneira e poderia ter vivido de outra dada maneira. Fizera isto e não fizera aquilo. Não fizera uma coisa e fizera outra. E depois? Era como se durante este tempo todo tivesse estado à espera deste minuto... E dessa madrugada em que seria justificado”.

Leia: “O Estrangeiro”. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto

terça-feira, 29 de junho de 2021

“O Estrangeiro”, de Albert Camus – o padre começou a falar a respeito de Deus e da necessidade de entregar-se à Sua misericórdia; Meursault não queria palavras de consolo e tampouco estava disposto a discutir a respeito das decisões dos que aceitaram que “morreriam para uma outra vida”; uma vez que o condenaram, nada mais poderiam exigir; a insistência do catequista tornou-se insuportável ao não admitir que o condenado desprezasse os ensinamentos da doutrina religiosa

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/06/o-estrangeiro-de-albert-camus-ansiedade.html antes de ler esta postagem:

Será que não era por “excesso de desespero” que falava daquele modo? O padre quis saber.
Meursault, que havia dito que não tinha qualquer interesse pelo assunto trazido pelo religioso, garantiu que não se sentia desesperado... Admitiu que sentisse medo, mas sabia que isso era natural.
O padre aproveitou a deixa e adiantou que Deus o ajudaria. Explicou que era assim mesmo, que conhecera muitos outros que estavam na mesma situação dele e que, finalmente, acabavam se voltando para Ele.
Meursault o ouviu e respondeu que os que assim procediam estavam “no seu direito”. Além disso, podia constatar que “tinham tempo”. De sua parte, entendia que ele próprio “não tinha tempo para se interessar pelo que não o interessava” e esperava que ninguém se metesse a querer ajudá-lo.
A afirmação do detento provocou certa irritação no religioso, todavia ele conseguiu manter o controle... Levantou-se, ajeitou as dobras da batina, respirou fundo e se dirigiu ao rapaz tratando-o por “meu amigo”. Disse que se dirigia a ele desse modo não porque se tratasse de “um condenado à morte”, já que pensava mesmo que “todos nós somos condenados à morte”.
Meursault o interrompeu e disse que não era a mesma coisa... Apesar disso garantiu que não se importava e que, além disso, aquela ideia não lhe servia de consolo. O padre não lhe tirou a razão, mas observou que, se não morresse em breve por causa da sentença, morreria de qualquer modo mais tarde. Isso implicava em admitir que o “problema” teria de ser encarado do mesmo modo... Então, como lidaria com a “terrível prova”?
Como sabemos, o rapaz já vinha refletindo sobre isso na solidão de sua cela... Respondeu que lidaria do mesmo modo como encarava a situação no momento... O padre o olhou fixamente, fitando-o nos olhos.
(...)
Meursault entendeu que aquilo era uma intimidação. Era também um jogo ao qual já estava acostumado, pois, em muitas ocasiões, desafiara o Manuel ou o Celeste... O perdedor era quem desviasse os olhos primeiro.
Pelo visto o padre também conhecia o desafio, já que mantinha o olhar sem qualquer tremor e falava sem vacilações... De repente questionou se o condenado não tinha mesmo qualquer esperança e se, além disso, conseguia achar que “morreria inteiramente”.
Meursault respondeu que sim... Isso fez o padre se sentir decepcionado mais uma vez. Ele baixou a cabeça, disse que lamentava e que era impossível suportar sua atitude. Talvez começasse a pensar que aquele condenado era dos mais arrogantes. De sua parte, Meursault já se sentia cansado da conversa e resolveu posicionar-se sob a claraboia...
(...)
Se pensarmos que ele aceitou “o jogo”, temos de concluir que ele foi o “perdedor”. Aconteceu que se encostou à parede e prestou pouca atenção às palavras do religioso que voltava a interrogá-lo.
Via-se que o homem havia se tornado inquieto. Começou a falar apressadamente e com emoção. Talvez por isso Meursault tenha decidido ouvir um pouco do que lhe era dito, e foi assim que percebeu que o religioso queria transmitir-lhe que tinha certeza de que o recurso seria aceito.
Ele disse isso e que estava preocupado por vê-lo carregar “o peso de um pecado” sobre os ombros, e o quanto isso o embaraçava. Emendou que era preciso aliviá-lo e que, em sua opinião, só “a justiça de Deus” tinha o remédio para os males que açoitavam um condenado pela justiça dos tribunais...
(...)
O padre dava a entender que queria que o rapaz compreendesse que “a justiça dos homens”, aquela que o julgara, não era nada diante da justiça divina.
Meursault salientou que “a justiça dos homens” o havia condenado, em outras palavras, Deus não tinha nada a ver com a sua situação de momento... O padre assentiu, mas observou que a sentença do tribunal não o “lavara de seu pecado”... O moço respondeu que não entendia muito bem o que viria a ser um pecado, disse que o tribunal deu a sentença de culpado e que, se assim era, pagaria pelo seu delito. Deixou claro que entendia que não podiam exigir mais nada dele.
O padre tornou a se levantar... Olhando para o chão, o encarcerado pensou que na pequena cela ele não tinha para onde ir e que o seu próximo movimento só podia ser o de se sentar novamente, mas o tipo deu um passo em sua direção e, sem ter como avançar mais, deteve-se e passou a observar o céu...
Por fim, pronunciou que Meursault estava enganado... Tratou-o por “meu filho” e emendou que poderiam pedir-lhe ainda mais... Acrescentou que talvez ainda lhe pedissem. Obviamente Meursault não tinha a menor ideia do que ainda poderiam lhe pedir e por isso perguntou. O padre disse que “poderiam lhe pedir para ver”.
(...)
Ver o quê? Meursault perguntou nervosamente...
O padre olhou à sua volta e visivelmente cansado formulou uma resposta referindo-se às pedras que compunham as paredes da cela... Como se estivesse a poetizar, disse que elas “suavam dor”. Depois acrescentou que até os mais miseráveis dos condenados chegaram a ver “uma Face Divina” a sair da obscuridade.
Certamente pediriam para ele também ver a mesma Face.
Leia: “O Estrangeiro”. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“O Estrangeiro”, de Albert Camus – ansiedade e angústia depois do pedido de revisão da pena; aceitando que o recurso seria rejeitado, poderia pensar que “a vida não vale a pena ser vivida” e que a morte chegará também para os que permanecerão após o fim de sua existência; o natural distanciamento da Maria; o capelão de tantas visitas rejeitadas entrou subitamente na cela; incompatibilidades entre o religioso e o descrente Meursault

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Meursault passava boa parte do dia a pensar no recurso...
Primeiro levava em consideração a hipótese da rejeição da papelada, o que significava que não escaparia da sentença capital. A partir dessa constatação, admitia que morreria “mais cedo do que outros” e, talvez como consolo, buscasse se convencer de que “a vida não vale a pena ser vivida”.
Refletia que no final das contas tanto fazia morrer aos trinta anos ou aos setenta... Enquanto alguns deixam a vida, muitos outros continuam a viver, mas a morte também pode chegar “hoje ou daqui a vinte anos” para qualquer um dos que permanecem viventes.
É claro que o rapaz não deixava de levar em consideração que a morte antecipada por causa da execução lhe tirava os anos de existência que potencialmente teria pela frente. Isso sem dúvida o incomodava, então procurava inibir essas reflexões ou tentava imaginar como estaria pensando no futuro, quando a morte o alcançaria de qualquer jeito.
(...)
De qualquer modo, para Meursault, prevalecia a máxima obviedade de que a morte encerra o ciclo vital, não importando quando e como. Por isso mesmo na maior parte do tempo aceitava que o melhor seria rejeitarem o recurso que o advogado havia impetrado. Se por um lado admitia essa ideia, por outro se via na necessidade de combater o “impulso do sangue e do corpo” pela vida.
Conseguia certa tranquilidade apenas nos momentos em que a resignação vencia a batalha contra o “impulso do sangue e do corpo”. E foi num desses momentos que se recusou a receber a visita do padre que atendia na prisão...
Em seu íntimo, descartava o recurso e podia sentir que “as ondas de sangue circulavam regularmente pelo corpo”. Estava tão sossegado na ocasião (da referida visita do padre) que queria apenas permanecer deitado, observando o céu que anunciava a chegada da noite e, pela primeira vez em muito tempo, pensando na Maria.
(...)
Aliás, fazia um bom tempo que ela não lhe escrevia...
Meursault pensou que talvez “se tivesse cansado de ser a amante de um condenado à morte”. Talvez ela estivesse doente ou teria morrido... Quem é que poderia saber?
O certo é que estavam separados e nada os ligava ou lembrava que se relacionavam afetivamente. Tornou-se indiferente pensar na Maria ou lembrar-se dela. Ele bem sabia que, estando para morrer, não devia despertar mais nenhum interesse.
Aceitava com naturalidade que após o seu passamento as pessoas se esquecessem dele, pois nada teriam a fazer com ele ou sua memória. E pensava mesmo sobre essas coisas quando o padre entrou em sua cela numa outra oportunidade.
(...)
Obviamente se espantou com a entrada súbita do religioso... Este logo percebeu o seu estranhamento e foi dizendo para não ter medo. O rapaz comentou que era de se esperar que o capelão o visitasse em outro momento.
O padre disse que a visita que fazia era amigável e que não tinha nada a ver com o recurso ou com o desenrolar de seu processo. Emendou que não sabia nada a respeito e foi se sentando na cama. Na sequência pediu que se juntasse a ele.
Apesar de achar que o homem havia chegado com docilidade, Meursault recusou-se a qualquer aproximação. O outro acomodou os cotovelos sobre os joelhos, baixou a cabeça e pôs-se a olhar para as próprias mãos. Esfregou-as e manteve-se cabisbaixo e pensativo por um bom tempo.
Tanto é que o rapaz já nem se dava conta da presença do padre em sua cela quando este se levantou e o encarou dizendo que várias vezes havia sido dispensado por ele. Perguntou por que se recusava a recebê-lo. Meursault respondeu que não tinha fé.
O padre quis saber se ele tinha certeza do que estava falando... O condenado não queria saber de conversa e foi dizendo que não valia a pena fazer-lhe aquele tipo de pergunta. Então o religioso acomodou as costas na parede e adotou uma postura desanimada... Sem muita segurança de que seria ouvido pelo rapaz, disse que muitas vezes nos julgamos “certos de alguma coisa quando, na realidade, não temos certeza alguma”.
De fato, Meursault não fez qualquer comentário a respeito do que acabara de ouvir. Todavia o padre insistiu e quis saber sua opinião... Tentando acabar de vez com o diálogo, ele disse apenas que “era possível”. Depois acrescentou que não estava certo do que realmente lhe interessava, mas sabia perfeitamente que o assunto que o padre trazia não lhe interessava. 
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Um abraço,
Prof.Gilberto

segunda-feira, 28 de junho de 2021

“O Estrangeiro”, de Albert Camus – da frieza, precisão e outras reflexões a respeito da execução na guilhotina; outros passatempos do condenado; atentando-se às batidas do coração e às sonoridades que podiam indicar a proximidade do angustiante momento derradeiro; noites em vigília e frase da mãe a respeito de nunca sermos “completamente infelizes”

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Com a guilhotina era assim, pensava Meursault...
O mecanismo raramente falhava, e se isso ocorresse o equipamento era consertado e voltava-se aos ritos iniciais da execução. Exatamente por causa dessa possibilidade remota é que o condenado se via desejando o pleno “funcionamento da máquina”.
Para ele, aí estava o “defeito”, mas ao mesmo tempo “o segredo da boa organização” de toda engrenagem punitiva, pois o condenado era levado a “colaborar moralmente” e a desejar que tudo ocorresse bem até o amargo fim.
(...)
De fato, tinha de concordar que até então não vinha refletindo corretamente a respeito dessas questões.
Ainda em relação ao ritual de execução na guilhotina, Meursault fazia uma ideia muito embasada no aprendizado que tivera sobre a Revolução Francesa, sobretudo as que diziam respeito às inúmeras execuções do tempo do Terror...
Imaginava que o condenado tivesse de “subir uns degraus” para atingir o patamar onde estaria a lâmina, mas enquanto se dedicava às reflexões em sua cela lembrou-se de certa reprodução fotográfica de um jornal que mostrava “a máquina no chão”.
Perguntou-se por que não havia se lembrado anteriormente da imagem que, de acordo com o seu entendimento, apresentava a guilhotina como “obra de precisão, brilhante e acabada”, todavia bem mais estreita do que ele mesmo imaginava. Entendia que acabamos exagerando “as coisas que não conhecemos” e que, no caso da imagem do jornal, a guilhotina não só estava no chão e no nível do condenado, como se tratava de uma máquina simples.
O condenado se encaminharia à ferramenta que o executaria do mesmo modo como se dirigiria a uma pessoa qualquer. Meursault percebia que também essa constatação tinha alguns aborrecimentos embutidos, já que “a subida ao cadafalso” poderia incutir no executado a imagem de que estaria “ascendendo ao céu”. Estando a máquina no mesmo nível do que a ela se dirigia, a morte chegava-lhe “discretamente, talvez com um pouco de vergonha, mas com muita precisão”.
(...)
Como salientamos na postagem anterior, esses eram os passatempos do Meursault em sua cela...
Normalmente mantinha-se deitado e a contemplar o céu... Conforme o fragmento de firmamento se tornava esverdeado, sabia que a noite se aproximava. Também se dedicava a acompanhar as batidas do coração e custava-lhe aceitar que algum dia elas cessariam, já que fazia muito tempo que o acompanhavam. O certo é que um dado batimento não se estenderia à cabeça, e então seria o fim.
O exercício era dos mais improdutivos... Poderia ficar por horas e avançar pela madrugada, e sempre teria de admitir “que o mais razoável” era não pretender qualquer domínio sobre a situação. Afinal de que lhe adiantaria reconhecer e antecipar-se ao último batimento do coração?
(...)
Apesar de procurar pensar em outras temáticas, algumas coisas o perturbavam com certa regularidade: o momento em que o levariam para a execução, e achava que este só poderia ocorrer numa madrugada; e “o recurso da sentença”.
Tinha convicção de que chegariam de madrugada para levá-lo à execução. Por isso procurava ocupar-se durante as noites, assim não seria surpreendido. Jamais gostara de ser surpreendido e, por outro lado, preferia “estar presente” no momento da condução ao aparelho fatal.
Passou a dormir algumas horas durante os dias exatamente para manter-se desperto na maior parte da noite. Principalmente depois da meia-noite dedicava-se a escutar as menores movimentações da cadeia, assim conseguiu distinguir as sonoridades mais leves. A aptidão deu-lhe a certeza de que jamais ouvira os passos fatídicos.
(...)
O céu se enchia de luz e cores, um novo dia se iniciava na cela, mas logo poderia ouvir passos e isso provocaria uma explosão ao coração. Então lembrava-se das palavras da mãe sobre nunca sermos “completamente infelizes” e avaliava que “mesmo na prisão” tinha de concordar com ela...
Os sons mais diminutos podiam levá-lo a se atirar contra a porta... Posicionava o ouvido contra ela e fixava-se nas sonoridades até reconhecer apenas a rouca respiração... O coração disparava e então reconhecia que teria direito a mais vinte e quatro horas de existência.
Leia: “O Estrangeiro”. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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