quinta-feira, 29 de abril de 2021

“A Ópera de Três Vinténs” – peça de Bertold Brecht musicada por Kurt Weill – Brown entendeu que não podia agir senão de acordo com a vontade de Peachum; o mendigo deixou claro que não se pisa no pé do homem mais pobre de Londres; Jenny é chamada para revelar o endereço de momento do Navalha; o enforcamento deve se dar até às seis, senão...; terceiro rufar de tambores e terceira estrofe da “canção da ineficácia”; cortinas fechadas, Jenny tocará um realejo e cantará a “Canção de Salomão”


Brown entendeu o recado de Peachum... Por isso mesmo ficou apavorado. Olhou para o policial Smith e gritou que aquilo só podia ser uma ameaça, uma chantagem!
Como que a se justificar junto ao subalterno, disse que não se podia “fazer nada contra o homem”, pois era o bem da ordem pública que estava em jogo e ele entendia que, se tudo se desse como o “rei dos mendigos” falava, não podiam mesmo fazer nada contra ele. Jamais se vira em situação semelhante!
Peachum retrucou que no momento ele podia conferir que, pela primeira vez, se via ameaçado por um tipo pobre. Em relação à rainha, disse que Brown podia proceder como bem entendesse, mas “no pé do homem mais pobre de Londres” ele não podia pisar, pois se fizesse isso terminaria “deschefiado”.
(...)
Brown pareceu entender o recado porque na sequência proferiu que tinha de prender o Mac Navalha... Mas aquilo era fácil falar, difícil era precisar “pôr as mãos nele”. Isso era traumático!
Peachum se intrometeu e disse que não podia contradizê-lo, mas se assim era, ele mesmo cuidaria do bandido. Isso mostraria que “ainda há moral neste país”. Na sequência, o velho chamou Jenny e perguntou-lhe onde estava o senhor Macheath... Ela respondeu que Mac estava “na casa de Suky Tawdry, Oxford Street, 21”.
O chefe de polícia nem podia crer... No mesmo instante ordenou ao Smith que fosse ao endereço indicado para prender Macheath, que deveria ser levado imediatamente a Old Bailey... Depois anunciou que iria vestir seu uniforme de gala, pois a ocasião era das mais especiais.
Peachum fez nova ameaça ao dizer que esperava que o Navalha fosse mesmo enforcado “até às seis”, senão... O chefe Brown lamentou e para si mesmo disse “oh, Mac, não teve jeito mesmo”.
(...)
Brown se retirou com os demais policiais...
Logo se ouviu o terceiro rufar de tambores desde as ruas.
Peachum ouviu o som da solenidade... Pelo menos para a sua gente ele podia indicar a “reformulação do plano de marcha; nova direção: cárceres de Old Bailey”. Então conclamou: “Em frente!”.
Os mendigos se retiraram... Quando ficou só, Peachum cantou a terceira estrofe da “Canção da Ineficácia”...
(...)

Terceira estrofe – “Canção da Ineficácia do Empenho Humano”

"Se o homem não quer nada,
Dá-lhe uma paulada;
Curtindo-lhe o couro
Aprende a valer ouro.
         Pois que nesta vida
         O bom moço não tem vez:
         Com a lição devida
         Vem a sensatez".

(...)
A cortina se fecha... Diante dela aparece Jenny com um realejo para cantar a “Canção de Salomão”.
Como se verá, a composição cita personagens históricos, o modo como se destacaram e o infortúnio de cada um... Qual seria a saída, a salvação, para eles? Poderiam ter destino diferente?
Até Brecht é citado na canção. Seu nome surge na penúltima estrofe.
Mac Navalha é citado na última.
Mas essa canção/poesia fica para a próxima postagem.
Leia: “A ópera de três vinténs”. Editora Paz e Terra.
Indicação do filme (14 anos)
Um abraço,
Prof.Gilberto

“A Ópera de Três Vinténs” – peça de Bertold Brecht musicada por Kurt Weill – a banda de mendigos toca os acordes para a “Canção da Ineficácia do Empenho Humano”; duras e ameaçadoras palavras de Peachum ao chefe de polícia; os ricos parecem esquecer do quão numerosos são os miseráveis; certamente a rainha merece aparecer entre rosas e não em meio a pestilentos e aleijados; a policia teria coragem de os massacrar?


Peachum repetiu a palavra separando bem as sílabas: “i-no-fen-si-vo”!
Essa era a senha para que os mendigos da banda iniciassem compassos musicais... E foi isso o que aconteceu. O chefe Brown assustou-se e perguntou o que aquilo significava. O “rei dos mendigos” esclareceu que era simplesmente música, tudo o que os seus companheiros podiam fazer. Cantariam “a canção da ineficácia”. Será que o chefe da polícia não conhecia? Era ouvir e aprender!
(...)
“Canção da Ineficácia do Empenho Humano”

"Quem vive da cabeça
De lucros não transborda.
Tenta: que da cabeça
Só um piolho engorda.
         Pois que nessa vida
         O espertalhão não tem vez:
         Nunca é percebida
         Manha e malvadez
Faça um grande projeto
Seja a luz brilhante,
Faça um outro projeto –
Ambos não vão avante.
         Pois que nesta vida
         O charlatão não tem vez:
         Só na dura lida
         Achas altivez.
Corra atrás da sorte,
Mas não corra demais;
Todos correm atrás da sorte
E a sorte – sempre mais.
         Pois nesta vida
         O sôfrego não tem vez:
         A gana desmedida
         Leva ao xadrez".

(...)
Esse encontro de Brown com Peachum e a “canção da ineficácia” não são reproduzidos no filme.
Todavia vimos que, no filme, após a parte em que o “rei dos mendigos” ficou sabendo que o Navalha se tornara presidente de Banco e saiu tresloucadamente para impedir a marcha dos miseráveis, o narrador pronunciou algumas palavras semelhantes à da canção. Isso pode ser conferido em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/04/a-opera-de-tres-vintens-peca-de-bertold_21.html.
(...)
Após a canção, Peachum dirige algumas duras palavras ao chefe Brown... Disse-lhe que seu plano “era genial, mas infalível”. Depois de tudo o que verificara, podia entender que em seu escritório só conseguiria prender “alguns jovenzinhos” que se reuniam ali para festejar “a coroação de sua rainha com um baile a fantasia”.
Disse ainda que os “verdadeiros miseráveis” estavam para chegar. Milhares deles... E então o chefe de polícia teria uma noção mais próxima da realidade da gente pobre... Ali em sua rouparia não encontraria nada demais! O caso é que as pessoas que vivem bem já “esqueceram o espantoso número de pobres”.
Peachum aproveitou que o policial o ouvia com atenção e emendou que era preciso imaginar os miseráveis à porta da igreja onde se celebraria a coração... É claro que “é uma visão nada festiva”, pois “o aspecto deles não agrada mesmo”.
Acaso o chefe de polícia saberia o que é erisipela? Se sim, deveria pensar que a jovem rainha merece “estar entre rosas e não entre pessoas erisipelosas”. E o que dizer dos mutilados que se amontoariam “no portal da igreja”? Ele, enquanto chefe da segurança, precisava evitar aquilo.
Brown não sabia o que dizer, então Peachum continuou falando que talvez ele estivesse pensando que seus homens armados pudessem conter os “pobres coitados”... Puro engano! Será que ele podia imaginar seiscentos aleijados sendo derrubados pelos policiais com seus cassetetes? Seria muito feio. Ainda mais no momento da coroação! Algo nojento, de dar náuseas.
Por fim, Peachum disse que de tanto falar sobre aquelas coisas medonhas até se sentia mal... Por isso pediu uma cadeirinha para se sentar e respirar mais calmamente.
Leia: “A ópera de três vinténs”. Editora Paz e Terra.
Indicação do filme (14 anos)
Um abraço,
Prof.Gilberto

quarta-feira, 28 de abril de 2021

“A Ópera de Três Vinténs” – peça de Bertold Brecht musicada por Kurt Weill – Peachum fala sobre sua condição de pobre homem que não pode ser ultrajado pelo chefe de polícia, diz que sabe que o homem está prestes a enfrentar um momento terrível e orienta as garotas de Turnbridge a oferecer-lhe café; uma fala a respeito da lei, “feita única e exclusivamente para explorar aqueles que não a entendem ou que, por pura necessidade, não podem cumpri-la”; ironia nos trocadilhos a respeito da honestidade dos juízes, que fazem valer a justiça; segundo rufar de tambores desde as ruas; Brown parte para a ofensiva e garante que levará os “senhores patriotas” mendigos para Old Bailey; chega o momento da senha para a entrada da banda


O chefe de polícia havia entendido a ameaça de Peachum de promover confusões durante as festas de coroação da rainha com o “desfile de mendigos”. Por isso reuniu os tiras para prendê-lo imediatamente. Ele não desconfiava, mas sabemos que os maltrapilhos já estivam bem adiantados em seus preparativos.
Como vimos, depois de esconder o seu pessoal, o “rei dos mendigos” o colocou numa situação delicada ao manifestar-se com intimidade à autoridade. Fazendo-se de desentendido, Brown vociferou contra a petulância do velho, ordenou que lhe tirassem o chapéu e gritou que não podia ser que o bandido (referia-se ao próprio Peachum) estivesse ainda solto... Por sua vez, Peachum devolveu os ataques que lhe eram dirigidos salientando que o pior dos bandidos de Londres era seu amigo e estava à solta.
Numa tentativa de mostrar aos seus homens que nada tinha a ver com aquela ofensa, o policial quis saber quem era o tal pior bandido seu “amigo” a que o outro aludia. Peachum não pestanejou e respondeu que era o Mac Navalha.
(...) 
O “rei dos mendigos” falou de modo que todos os policiais escutassem que Mac Navalha era o criminoso perigoso que contava com a amizade de seu chefe... Sobre si mesmo, Peachum garantiu que se tratava de “um homem pobre”, que não podia ser destratado por Brown, e falando diretamente a ele cravou que o via “a um passo da pior hora de sua vida”. Então perguntou-lhe se gostaria de um café...
O velho pediu às amigas de Jenny que oferecessem café ao chefe de polícia... Ensinou que deviam ser educadas. Depois perguntou por que não podiam todos viver em harmonia. Salientou que todos obedecem a lei e que ela é “feita única e exclusivamente para explorar aqueles que não a entendem ou que, por pura necessidade, não podem cumpri-la”.
Peachum disse ainda que, para receber a parte que cabe a cada um na exploração, a pessoa tem de “agir rigorosamente dentro da lei”... Brown entendeu que o outro estava querendo dizer que os (nossos) “juízes são corruptos” e chamou-lhe a atenção. O velho o corrigiu e garantiu que de modo algum pensava daquele modo. Disse que “nossos juízes são absolutamente incorruptíveis” e que nenhum dinheiro do mundo pode corrompê-los “a ponto de fazerem valer a justiça”.
(...) 
Como se pode notar, Peachum usou de muita ironia em seus trocadilhos propositais na resposta ao chefe de polícia.
Neste ponto todos ouviram o rufar de tambores desde as ruas... E essa foi a segunda vez. Quando ocorreu a primeira, os mendigos dedicavam-se à produção dos cartazes e um deles anunciou que a guarda da rainha se colocava em formação...
Sobre o segundo rufar de tambores, Peachum afirmou que era o anúncio de que a guarda saía para formar alas. Acrescentou que “os mais pobres entre os pobres” siariam “meia hora depois”.
Brown confirmou e ressaltou que os mais pobres sairiam “meia hora depois diretamente para a prisão de Old Bailey, onde permaneceriam durante todo o inverno”. Dirigindo-se aos policiais, ordenou que começassem a “catar” o que encontrassem pela frente... Voltando-se aos mendigos, perguntou-lhes se alguma vez já teriam ouvido falar de Brown-o-tigre. E particularmente a Peachum, disse que havia encontrado “a solução” e podia afirmar que salvara “um amigo da morte certa”.
(...) 
Brown estava convencido de que, enfim, “dava as cartas” e por isso disse que ia “dar uma geral” no covil do mendigo... Prenderia todos... Mas nem sabia dizer por qual motivo os tipos seriam presos, então improvisou que os prenderia “por mendicância”, já que Peachum havia insinuado que aproveitaria a ocasião especial daquele dia “para jogar os mendigos” contra ele, chefe de polícia, e contra a rainha. Por isso os mendigos teriam de ir para a cadeia.
Peachum ouviu as frases arrogantes de Brown. Disse que “tudo bem”, mas queria saber sobre a quais mendigos ele estava se referindo... O policial respondeu que eram os estropiados que encontrasse na verificação que fariam. Voltou-se ao Smith e gritou que “os senhores patriotas” (referindo-se aos estropiados mendigos) deviam acompanhá-los.
Neste momento, Peachum advertiu o chefe Brown dizendo que estava ali para impedi-lo de agir com precipitação. E pelo visto era graças ao bom Deus que havia resolvido primeiro falar-lhe diretamente... Está certo que podia prender aquela “meia dúzia de coitados que estava vendo”... Mas ali todos eram inofensivos.
Como sabemos, essa era a senha para que a Senhora Peachum liberasse a banda dos mendigos para iniciar “uma música qualquer”. Por isso o velho repetiu a palavra separando bem as sílabas, “i-no-fen-si-vo”!
Leia: “A ópera de três vinténs”. Editora Paz e Terra.
Indicação do filme (14 anos)
Um abraço,
Prof.Gilberto

“O Estrangeiro”, de Albert Camus – um estranho no meio do pátio dos velhos; tomando conhecimento do horário sepultamento com o ritual da religião; a morgue, sua claridade e o caixão no centro da sala; a enfermeira de traços árabes com o lenço colorido à cabeça e a atadura no rosto; o porteiro aparece para reabrir o caixão, é interrompido por Meursault e decide permanecer de pé atrás de sua cadeira; sonolência, tentativa de estabelecer diálogo e mais uma vez o rapaz se atrapalha ao não se lembrar da conversa que haviam tido antes

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/04/o-estrangeiro-de-albert-camus-mais.html antes de ler esta postagem:

O diretor conduziu Meursault pelo pátio... Havia grupos aqui e ali, e os idosos conversavam ruidosamente, mas calavam-se assim que o desconhecido se aproximava. O assunto voltava logo que os dois seguiam em frente, e tinha-se a impressão de que se ouvia “um papaguear de periquitos”.
Era a conversa dos envelhecidos, mas Meursault não teve tempo de elucubrar sobre os prováveis assuntos porque, ao chegarem “à porta de uma pequena construção”, o diretor o deixou e se despediu dizendo que estava à sua disposição no escritório... Explicou que o enterro estava marcado para as dez da manhã do dia seguinte, pois desse modo se permitiria que ele velasse a mãe durante a noite. Acrescentou ainda que soubera através dos internos que ela desejava um “enterro religioso” e, assim sendo, ele mesmo havia tomado as providências a respeito.
(...)
Meursault agradeceu... E na sequência pôs-se a pensar na religiosidade da mãe.
Ela não era ateia, mas também não podia se dizer que fosse devotada à religião. O momento não era propício a mais essas divagações, então entrou e voltou sua atenção à sala, que era muito clara, com suas paredes caiadas e uma grande vidraça que permitia a entrada da luz natural em abundância. Havia “algumas cadeiras e cavaletes em forma de X”... Dois desses suportes sustentavam o caixão no meio da sala.
A respeito do féretro “de madeira pintada de casca de noz”, notou o brilho dos parafusos atarraxados. Junto ao caixão estava uma enfermeira de origem árabe. Ela tinha “um lenço colorido na cabeça” e trajava uma bata branca.
Antes que pudesse captar algo mais do recinto, foi interrompido pelo porteiro chegou esbaforido e a gaguejando... Queria dizer que não deviam ter fechado o caixão, e que estava ali para abri-lo para permitir que o rapaz contemplasse a mãe morta. No momento mesmo em que o tipo se aproximou do caixão, Meursault o deteve.
O porteiro perguntou se ele não desejava ver a mãe morta e a resposta foi “não”. O tipo se calou enquanto ele se embaraçava em seus pensamentos ao imaginar que não devia ter agido daquele modo.
O porteiro quis saber o motivo de ele não querer ver a mãe... Meursault respondeu que não sabia. Neste ponto o rapaz não entendeu que o funcionário o estivesse censurando, mas sim que estava curioso...
Aconteceu que o tipo retorceu os bigodes e, sem encará-lo, afirmou que compreendia.
(...)
Ele notou que os olhos do funcionário eram azuis claros e que sua pele era de pouca vermelhidão. O homem ofereceu-lhe uma cadeira e sentou-se mais atrás... A enfermeira de traços árabes se retirou de perto do caixão. Conforme ela se encaminhava para a saída, o porteiro disse a Meursault em tom de confidência que a mulher tinha um cancro.
De fato, pôde notar que ela tinha uma atadura debaixo dos olhos... A tira envolvia a cabeça e na região do nariz não se notava nenhuma saliência. Logo que a mulher se retirou, o porteiro disse que o deixaria sozinho. Meursault fez um gesto qualquer, talvez o dispensando...
Mas o fato é que, em vez de se retirar, o tipo resolveu permanecer de pé atrás do filho da defunta... Sentado na cadeira, e de costas para o homem, Meursault sentiu-se incomodado... A luz do entardecer enchia a sala, e desde a vidraça ouvia-se o zunir de besouros...
O zunir dos insetos e a claridade eram monótonos e provocaram sonolência no rapaz... Talvez para não vacilar diante da preguiça que o dominava, perguntou ao porteiro se já trabalhava há muito tempo no asilo. Falou sem se virar para o acompanhante, que imediatamente respondeu “cinco anos”. Meursault chegou a pensar que, tão rápida havia sido a resposta, o tipo sempre estivera preparado para aquela pergunta.
Depois o homem pôs-se a tagarelar como já o fizera à sua chegada. Disse que ninguém imaginava que um dia ele “acabaria como porteiro de asilo”. E em Marengo! Era de Paris e contava sessenta e quatro anos... Meursault mostrou-se admirado. Então o funcionário não era de Marengo? Mas então lembrou que ele estivera a falar-lhe antes de o levar o diretor... Talvez já tivesse falado a este respeito, e era certo que lhe falara sobre o sepultamento de sua mãe.
O porteiro era da opinião de que deviam enterrá-la o quanto antes porque o calor era dos mais intensos na planície, e mais ainda onde estavam. Quando dissera essas coisas, falara também que era de Paris, onde “fica-se com o morto, às vezes três ou quatro dias”. Em Marengo e nas paragens vizinhas não era assim, e os parentes do defunto nem tinham tempo para “digerir a fatalidade” e já tinham de “correr atrás do carro funerário”.
Meursault lembrou que o tipo lhe dissera essas coisas e que havia sido interpelado pela esposa, que o advertiu dizendo que “não são coisas que se digam ao senhor”... Só agora ele se lembrava, inclusive que o velho tinha corado e pedido desculpa. E mais... Ele mesmo teria dito ao homem que não precisava se desculpar, pois considerava aquela uma verdade interessante.
Leia: “O Estrangeiro”. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“O Estrangeiro”, de Albert Camus – mais algumas considerações sobre o texto e as postagens; viagem e chegada a Marengo; um primeiro contato com o porteiro; palavras do diretor do asilo sobre as informações referentes à interna falecida; notas sobre a condição financeira do único filho; a instituição entende a dificuldade do jovem manter a velha mãe em sua companhia; o hábito da velha de cair em prantos a cada mudança; um espaço reservado para o velório

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/04/o-estrangeiro-de-albert-camus.html antes de ler esta postagem:

No livro, a narração se dá em primeira pessoa. A ideia aqui é a de nos afastarmos de Meursault, assim acompanhamos sua trajetória, a problematizamos e refletimos sobre ela e sobre a que nós mesmos trilhamos. Isso é inevitável.
(...)
Vimos como se inicia “O Estrangeiro”... O rapaz recebeu a mensagem sobre a morte da mãe, tratou de conseguir uma licença do trabalho para se dirigir a Marengo. Almoçou no restaurante do Celeste e visitou o Manuel, que lhe emprestou a gravata preta e forneceu um pouco de fumo também.
Não podemos dizer que a notícia da morte o tivesse abalado emocionalmente. Mais que isso, Meursault pareceu sentir o incômodo que esse tipo de ocorrência provoca na rotina. Além das providências a serem tomadas, teve de lidar com aqueles que o cercam. Teria de dar-lhes alguma satisfação?
Com o chefe, por exemplo, experimentou certo mal-estar ao solicitar o afastamento do serviço e, como que a se justificar, disse-lhe que não tinha culpa pela morte da mãe. Os tipos que frequentam o restaurante expressaram “à distância” o seu pesar...
Já as palavras do Celeste, “mãe, só há uma”, ao mesmo tempo que transmitiram o seu pesar, lembraram ao rapaz que o ocorrido é “único” em nossas vidas e, por tudo o que a mãe representa, merece o nosso recato e dedicação no cumprimento dos rituais de um sepultamento digno.
(...)
Meursault teve de se apressar para chegar ao ônibus. As tensões do dia e a tarde de calor o esgotaram. Depois de embarcado não demorou a adormecer...
Ao despertar, notou que poltrona ao lado da sua estava ocupada por um soldado. Este quis mostrar-se simpático, sorriu e perguntou-lhe se vinha de longe. A resposta foi monossílaba, “sim”, e isso bastou. A viagem prosseguiu até o fim sem que tivesse de voltar a falar.
(...)
Os passageiros desembarcaram na aldeia. Meursault sabia que o asilo se localizava dois quilômetros mais adiante e decidiu fazer o trajeto caminhando.
Logo que chegou à portaria quis dirigir-se ao local onde a mãe estava sendo velada... O funcionário o alertou que, antes disso, deveria conversar com o diretor. O caso é que o homem estava tratando de assuntos com outros e por isso teria de esperar.
Enquanto aguardava a sua vez de falar com o diretor, Meursault permaneceu junto ao porteiro, que se mostrava eloquente. Algum tempo se passou até que fosse autorizado a entrar no gabinete da chefia. O diretor era um tipo envelhecido e de olhos claros.
Meursault notou que o homem era laureado com a “Legião de honra” e que, pelo modo como apertou sua mão, devia ter a mania dos cumprimentos mais efusivos. Depois de verificar uns papéis, o diretor falou que a falecida havia chegado ao asilo há três anos e que o rapaz era “seu único amparo”...
Essas palavras incomodaram Meursault, que principiou a explicar-se. O diretor o interrompeu dizendo que não havia motivo para se justificar e emendou que ao ler a papelada a respeito de sua mãe ficara sabendo que ele não podia bancar despesas com ela. A mãe “precisava de uma enfermeira” que a acompanhasse o tempo todo...
O homem parecia consolar Meursault ao dizer-lhe que sabia que seu salário era modesto. Por fim cravou que a falecida tinha sido feliz na instituição, onde conviveu com pessoas da mesma idade e tornou-se amiga de algumas delas... Que ficasse tranquilo, pois entendia que ele era ainda jovem e certamente a mãe aborrecia-se junto à sua companhia.
(...)
Meursault ouviu o diretor e pensou que ele tinha razão. Lembrou-se de quando a mãe vivia com ele e permanecia muito tempo em silêncio e a segui-lo com os olhos. É verdade que depois que passou a viver no asilo teve certa dificuldade para se acostumar e “chorava muitas vezes”... Mas o que podia fazer se esse era o seu hábito? Provavelmente choraria se ficasse sabendo que teria de deixar o lugar.
Esse hábito de manifestar-se a respeito das coisas sempre aos prantos fez com que Meursault deixasse de visitá-la com frequência... Além disso, a viagem até Marengo tomava-lhe todo o domingo. Eram duas horas de viagem mais o tempo destinado à aquisição de passagens e deslocamentos.
Pensou sobre essas coisas sem dar ouvidos às demais frases do diretor... Por fim percebeu que o homem o chamava para ver a mãe. Meursault levantou-se em silêncio e o acompanhou até a porta. Ao chegarem à escada, o tipo explicou-lhe que tinha resolvido levar a defunta “para a nossa morgue particular. Para não impressionar os outros. Cada vez que algum morre, os outros ficam nervosos durante dois ou três dias, o que torna o serviço difícil”.
Leia: “O Estrangeiro”. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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