terça-feira, 31 de agosto de 2021

“1984”, de George Orwell – a moça conseguia adivinhar o modo de ser de Katherine mesmo sem a ter conhecido; a formação das jovens a partir da doutrinação do Partido em defesa da castidade; privação em benefício do fanatismo ideológico; fomentando o instinto de paternidade e a integração das crianças ao programa de repressão política; relembrando o episódio em que, depois de se apartarem de grupo de passeio, teve oportunidade de atirar a esposa ao fundo de um abismo

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Logo no início da conversa a respeito de Katherine, Winston admirou-se com a rapidez de Júlia ao tirar conclusões certeiras... Como a jovem podia saber até mesmo aquele detalhe a respeito da “relação enquanto dever para com o Partido”?
Ela foi explicando que “também estivera na escola” e que as “maiores de dezesseis” tinham “aulas de sexo uma vez por mês”, além disso, o Movimento Juvenil tratava de completar a doutrinação sexual das garotas durante longos anos. A maioria delas seguia as orientações à risca, e esse certamente era o caso de Katherine, mas Júlia podia dizer que sempre há as que apenas disfarçam.
Ela falou a respeito, pois tinha experiência e opinião, já que “tudo girava em torno da própria sexualidade”. Winston reconheceu que, melhor do que ele, Júlia havia percebido “o sentido íntimo do puritanismo sexual do Partido”. O Partido simplesmente não podia controlar as muitas intencionalidades que derivavam do instinto sexual e por isso trabalhava para destruí-lo, além de impor a privação “que provocava a histeria” canalizada para “a febre guerreira e adoração dos chefes”.
Ainda de acordo com Júlia, as relações baseadas no amor consomem energia, mas levam a uma satisfação desprendida de qualquer preocupação... Naturalmente o Partido não admitia que as pessoas se sentissem assim, já que pretendia que todos estivessem a ponto de “estourar de energia”, e a todo momento... De fato, os intermináveis desfiles, a adoração ao Grande Irmão, “os Planos Trienais e os Dois Minutos de Ódio” se encaixavam nessa observação e eram tão mais exagerados quanto mais as pessoas fossem sexualmente reprimidas.
E ela disse mais... Argumentou que quando o sujeito está satisfeito e feliz consigo mesmo não vê motivos para se envolver com toda aquela “maldita burrice”.
(...)
Winston acabou concordando que “havia uma ligação direta e íntima entre a castidade e a ortodoxia política”. Pensou que, em outras palavras, o Partido eliminava o instinto sexual e desse modo incutia “medo, ódio e credulidade lunática” nos seus membros.
Também o instinto da paternidade foi manipulado pelo Partido... Por motivos óbvios, a família não era abolida, e os pais eram levados a uma dedicação amorosa aos seus filhos. Por sua vez, estes recebiam a doutrinação partidária para espionar os pais e denunciar seus crimes.
Podemos dizer que cada família acabava se tornando, na figura das crianças doutrinadas, “uma extensão da Polícia do Pensamento”. Onde podiam encontrar delatores mais eficientes do que entre as crianças?
Este raciocínio, e ainda o calor que estava fazendo, levaram-no a pensar novamente em Katherine. Para ele, era certo que o denunciaria, e só não o fez porque sua limitação intelectual não lhe permitira reconhecer “a heresia dos pensamentos”.
(...)
Ele decidiu contar à Júlia a respeito de uma ocasião em que estivera com Katherine num passeio comunal em Kent, quando fazia uns três ou quatro meses que estavam casados... A tarde era de muito calor e acabaram se perdendo do grupo.
Ao tomarem caminho diverso, acabaram chegando num precipício à beira de uma mina de calcário antiga. O local era perigoso e qualquer deslize podia resultar em queda de uns dez ou vinte metros sobre rochas imensas... E o caso é que o local estava deserto, assim não havia a quem pudessem consultar para reencontrar o pessoal.
Tudo indicava que tinham se perdido, então Katherine ficou nervosa também porque julgou que haviam feito mal ao se separarem do grupo apenas porque o mesmo era muito ruidoso. Ela sugeriu retornarem às carreiras por determinada trilha, mas no mesmo momento ele havia notado umas flores que despontavam numas fendas do rochedo. As flores deviam ser bem raras, já que da mesma raiz surgiam duas belas colorações (“maravilha e tijolo”). Sua reação foi chamar a esposa para que também pudesse contemplá-las.
Sua curiosidade a fez voltar da trilha que estava disposta a seguir, e até a se inclinar perigosamente sobre a grande rocha para observar melhor. Winston contou que sua primeira reação foi a de segurá-la pela cintura para que não se acidentasse... Mas depois considerou que estavam sós no ambiente e que dificilmente haveria ali um microfone dos aparelhos de repressão; e mesmo se houvesse capturaria apenas sons.
O calor era insuportável e chegava a provocar sonolência. Ele explicou que sua testa “estava banhada em suor” assim como no momento mesmo em que conversavam na torre da igreja, e que lhe passou pela cabeça uma ideia... Antes que terminasse a frase, a garota perguntou-lhe por que não empurrara Katherine para o precipício. E emendou que em seu lugar teria feito isso mesmo.
Winston respondeu que tinha certeza de que ela o faria... Explicou que também ele, se fosse naquela ocasião “a pessoa que havia se tornado tempos depois”... Mas podia ser que não tivesse a coragem.
Júlia quis saber se ele lamentava por não a ter empurrado numa oportunidade tão propícia. Sim, ele afirmou que “de certo modo, foi uma pena”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“1984”, de George Orwell – tendo trabalhado na “pornosec”, Júlia sabia explicar o mecanismo de produção do material horroroso direcionado aos proles; uma mão-de-obra jovem e feminina sob medida para um delicado setor do departamento de ficção; sobre a primeira contravenção aos princípios moralistas impostos aos membros do Partido; uma geração adaptada à vida sob o poder extremado do IngSoc; um início de conversa a respeito de Katherine

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Júlia era bem-vista pelos maiorais do Partido, uma “excelente cidadã”. Também por isso acabou sendo chamada para trabalhar no setor do Departamento de Ficção que produzia a pornografia destinada aos proles... O pessoal que trabalhava na “Pornosec” chamava este setor de “Casa da Lama”.
Ela disse ao Winston que ficou por um ano na “Pornosec”, onde ajudava na produção de encadernações que saíam completamente lacradas com títulos como “Contos da Chibata ou Uma Noite Num Internato de Moças”, normalmente comprados pela juventude prole... Em sua opinião, a ideia de “adquirir algo ilegal” contribuía para o sucesso das publicações neste segmento.
Winston quis saber mais sobre os livretos... Júlia explicou que se tratava de uma “droga horrorosa”, que ela não tinha a menor ideia de como podiam se entreter com algo tão desagradável e chato. A respeito da produção, disse não tinha segredo, já que usavam seis enredos que eram misturados e passavam por pequenas adaptações... Ela trabalhava “nos caledoscópios” e jamais estivera no grupo dos “Reescritores”, pois não lidava bem com a produção textual.
Mas se havia algo que Júlia podia garantir era que na “Pornosec” só trabalhavam moças. Apenas a chefia ficava por conta de um homem. Dizia-se que os homens, por conta de seus “instintos sexuais menos controláveis do que os das mulheres”, podiam ser mais facilmente contaminados pela “imundície” do material produzido na “Casa da Lama”. Mulheres casadas também não eram admitidas, já que deduziam que as jovens solteiras eram “puras”.
Ao falar a respeito dessa última condição, Júlia fez questão de salientar que não era o seu caso, pois mal contava os dezesseis anos quando se envolveu sexualmente pela primeira vez, e justamente com um tipo que contava sessenta anos. O homem era ardoroso militante e se suicidou, o que foi bom para ela, pois certamente entregaria seu nome às autoridades. Depois dele houve muitos outros casos...
Júlia não renunciava às suas diversões e, como o Partido as proibia, “infringia a lei da melhor maneira possível”, pois considerava natural elaborar artimanhas para burlar a lei e escapar da captura policial... Tão natural quanto “eles” (o Partido) se esforçavam para “proibir os prazeres”.
(...)
Winston percebeu que a crítica da namorada em relação a “eles” se concentrava no fato de sentir que lhe prejudicavam a vida particular... Não formulava exatamente uma crítica sistemática ao Partido e tampouco se interessava pelo conteúdo doutrinário.
Júlia não fazia uso do vocabulário da “Novilíngua”, sequer das palavras que já estavam incorporadas ao dia a dia das pessoas. O rapaz falou-lhe dos boatos sobre a “Fraternidade”. Mas ela não acreditava que pudesse existir uma organização como aquela, e jamais ouvira falar da mesma... Achava absurdo e estúpido pretenderem uma “revolta organizada contra o Partido”, pois não teriam a menor chance de triunfar.
Para ela, o mais razoável que tinham a fazer era “desrespeitar a lei e continuar vivendo”. Ao ouvir essas palavras, Winston pensou se havia outros que pensavam como ela... Talvez entre os da “nova geração”, tipos que só conheciam a realidade que havia sido imposta pelo IngSoc depois de seu triunfo na Revolução. Talvez considerassem o Partido uma instituição de poder que não podia ser alterada, algo tão “natural como o firmamento” e assim jamais se rebelariam contra “eles”. No máximo se limitariam a fugir de sua repressão.
(...)
Winston e Júlia não falaram a respeito de casamento... Até porque não se encontravam para firmar noivado, além do mais a situação dele em relação à Katherine impossibilitaria qualquer análise dos comitês responsáveis.
Houve um momento em que a moça quis saber a respeito de sua esposa... Winston respondeu que a palavra “benpensante” (em “novilíngua”) estava de boa medida para explicar o modo de ser de Katherine, que era ortodoxa e “incapaz de um mau pensamento”.
Júlia não compreendia bem o termo, mas conhecia mulheres daquele tipo. Mesmo quando ele se pôs a falar a respeito de seu casamento, a garota conseguiu antecipar as diversas situações, como a reação de tornar-se enrijecida assim que ele a tocava ou a de dar a entender que o repelia mesmo quando tomava a iniciativa de enlaçá-lo com os braços e pernas.
Falar do casamento, que podia ser algo bem desagradável, tornava-se fácil porque Júlia conhecia a doutrinação do Partido voltada para as mulheres. Ele resolveu falar sobre o planejamento de Katherine para a manutenção do matrimônio e insistência em gerar um filho, situação que a embaraçava, já que intimamente sentia repulsa pelo relacionamento sexual ao mesmo tempo em que se obrigava a ele...
A própria Júlia concluiu o argumento usado por Katherine para as ocasiões semanais, que se tratava de um dever dos dois “para com o Partido”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

domingo, 29 de agosto de 2021

“1984”, de George Orwell – o “falar a prestações” de Júlia e Winston pelas calçadas de Londres à noite; um inesperado e inimaginável beijo após a queda de uma bomba-foguete; a jornada semanal da garota e o “voluntariado” de Winston na oficina de confecção de componentes para bombas; encontro no campanário abafado e infestado de pombos e detritos; revelações sobre particularidades do cotidiano da jovem, seu trabalho no Departamento de Ficção e opinião a respeito da produção dos livros; nada a dizer sobre acontecimentos anteriores a 1960; período escolar e inclusão nos movimentos ideológicos juvenis

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Na sequência do mês de maio os dois só conseguiram ficar juntos numa única oportunidade. E mais uma vez foi um local indicado por Júlia, “o campanário de uma igreja arruinada, local quase deserto onde uma bomba atômica caíra trinta anos antes”. Havia a dificuldade de se deslocar até lá, além do inconveniente de ser infestado por pombos e suas imundícies.
É certo que passavam um pelo outro nas calçadas em certas noites, mas nessas ocasiões jamais se olhavam ou ficavam lado-a-lado. Além disso, evitavam completar as frases que trocavam para não serem flagrados pelas teletelas dos trajetos ou por membros do partido que estivessem circulando em meio aos transeuntes. O fato de retomarem as “conversas interrompidas” momentos depois tornava a comunicação bem estranha, todavia eles se entendiam bem mesmo que concluíssem a conversa depois de alguns dias e em ponto diferente da calçada. Júlia chamava essas conversas de “falar a prestações”. Obviamente ensinara o método ao Winston, que admirava sua “habilidade de falar sem mexer os lábios”.
(...)
Não foram poucas as vezes em que passaram um pelo outro “sem nada dizer” por terem notado a presença de patrulha ou o sobrevoo de helicóptero na área. Apesar disso, por incrível que possa parecer, houve uma ocasião em que conseguiram se beijar quando andavam pelas calçadas à noite. E isso foi possível depois que uma bomba-foguete caiu nas proximidades, provocando tremor da terra, barulho ensurdecedor e considerável destruição...
A atmosfera tornou-se escurecida e a gente que se encontrava nos arredores foi lançada ao chão. Winston encheu-se de pavor, pois notou várias escoriações no próprio corpo. Mais assustado ficou ao notar Júlia caída e com uma “brancura de morte” no rosto, porém as condições permitiram que se aproximasse para conferir, e foi assim que a apertou contra o próprio peito e colou os lábios nos dela... De repente sentiu que ela o beijava e pôde entender que seu rosto verdade estava coberto pela poeira branca de destroços.
(...)
Mesmo que não houvesse riscos, teriam dificuldade para se encontrar com regularidade por causa das longas jornadas de trabalho de ambos. Winston trabalhava sessenta horas por semana, Júlia cumpria horários ainda mais extenuantes e seus dias de folga dependiam do desenvolvimento das atividades no Departamento de Ficção, de modo que nem sempre coincidiam com os do namorado.
No caso de Júlia, havia ainda a sua determinação de participar de eventos extras e voluntários, como conferências e distribuição de material gráfico com a literatura da Liga Juvenil Anti-Sexo... A moça envolvia-se ainda na organização da “Semana do Ódio, cobrando contribuições da campanha de poupança, e atividades similares”. Ela mesma havia garantido ao Winston que o engajamento lhe dava “camuflagem” e afastava as desconfianças.
Basicamente considerava que “respeitando as leis menores podia infringir as maiores”. E tanto confiava neste princípio que insistiu para que Winston se oferecesse para o trabalho voluntário “numa fábrica de munições, nas horas vagas”, como faziam os mais esforçados militantes. E foi o que ele fez... Tornou-se assíduo no trabalho junto a uma “oficina mal iluminada e ventilada”, onde, por quatro horas suportava atividades desagradáveis de montagem de partes de fusíveis de bomba ao som das músicas das teletelas.
(...)
Na tarde ensolarada em que se encontraram no campanário da igreja puderam falar a respeito das conversas não concluídas em suas caminhadas noturnas pelas calçadas. Mas, conforme salientado anteriormente, tiveram de suportar uma atmosfera abafada e malcheirosa pelas fezes e penas de pombos.
Apesar disso, acomodaram-se no assoalho e aproveitaram para conversar por um bom tempo. Suportaram os detritos e o odor também porque desde onde estavam podiam conferir se alguém se aproximava.
Graças a este encontro, Winston pôde saber que Júlia contava vinte e seis anos, “morava numa hospedaria com outras trinta moças”, o que a desagradava sobremaneira, e trabalhava no Departamento de Ficção operando “máquinas novelizadoras”. Aliás ele havia imaginado isso mesmo.
A moça não tinha muitas queixas em relação ao trabalho de manter funcionando e “em bom estado um poderoso e complicado motor elétrico”. E não tinha dificuldade para explicar “todo o processo de composição de um romance, desde a diretriz geral traçada pelo Comité de Planejamento até os retoques finais, pelo Esquadrão de reescritores”. O único senão é que ela mesma não tinha qualquer interesse pelo produto final de seu setor, já que a leitura não era das atividades que mais apreciava... Achava inclusive que os livros eram artigos comuns que, “como botinas ou compotas”, deviam ser produzidos em série apenas porque o Partido exigia.
A respeito dos questionamentos tão caros ao Winston, tinha a dizer que não se lembrava de nada que fosse anterior a 1960... Conhecera apenas um avô que falava a sobre alguns fatos anteriores à Revolução, mas o velho simplesmente desapareceu quando ela tinha somente oito anos.
Até onde se lembrava, Júlia sabia que havia se destacado em sua época de escola... Chegou a ser a capitã do time de hóquei e venceu a competição de ginástica por dois anos seguidos. Além disso, tornou-se “chefe de tropa nos Espiões e secretária distrital da Liga da Juventude antes de entrar para a Liga Juvenil Anti-Sexo”.
Como se pode concluir, um início de biografia insuspeito e bem ajustado aos princípios do IngSoc.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

sábado, 28 de agosto de 2021

“1984”, de George Orwell – rebelde diante das convenções, Júlia satisfez duplamente seu parceiro politicamente perturbado; breve cochilo e contemplação do corpo desprotegido da mulher; pesava a consciência de que o Partido manipulava a mente e o físico, daí a relação representar uma afronta à poderosa estrutura; fim do encontro e orientações para a retirada e novo encontro

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Júlia se comportou como uma profissional do sexo e Winston mostrou-se ainda mais satisfeito... Ele perguntou se ela se sentia vontade por tudo o que fazia, se gostava daquelas coisas... Não perguntava exatamente a respeito de si, se sentia-se atraída por ele, mas nas iniciativas que ela estava tomando. Ela disse que “adorava”, e que tinha mesmo preferência pelos relacionamentos mais lascivos.
Winston achou bom ouvir suas palavras... Como podemos notar, para ele “o instinto animal, o desejo simples, indiscriminado, eram a força que faria a derrocada do Partido”.
Então podemos dizer que, com Júlia, sentia-se duplamente satisfeito... Não por acaso se entregaram com volúpia na relva da clareira protegida pelas árvores... Depois, completamente esgotados fisicamente, deixaram-se cair. A temperatura havia se elevado e o forte calor os levou a um cochilo de uns trinta minutos.
(...)
Quando Winston despertou, pôs-se a contemplar a garota. Além das sardas, podia notar umas ruguinhas perto dos olhos... Definitivamente não era exatamente bonita, mas tinha uma bela boca e cabelos escuros, curtos, mas macios e densos. Um “corpo jovem e forte” que ele nem sabia em que parte de Londres vivia. Não sabia sequer todo o seu nome! Havia certa fragilidade na garota adormecida, então teve pena... Evidentemente no momento ele devia protegê-la, todavia, quando desperta, parecia adquirir blindagem própria.
A atração que o dominou quando estiveram à sombra da aveleira não se repetiu... Continuou a apreciar a pela clara e macia de Júlia pensando sobre como, no passado, assim que viam um corpo feminino, os homens não perdiam tempo com conjecturas e logo “partiam para cima”.
Os tempos eram bem outros e:

                   “não era (mais) possível ter amor puro, ou pura lascívia. Não havia mais emoção pura; estava tudo misturado com medo e ódio. A união fora uma batalha, o clímax uma vitória. Era um golpe desferido no Partido. Era um ato político”.

(...)
Depois que despertou, Júlia voltou a assumir a conduta altiva, “alerta e prática”. Arrumou-se rapidamente e disse que poderiam voltar a se encontrar no mesmo local. Salientou que, se fosse o caso, teriam de aguardar que um ou dois messes se passassem.
Enquanto ajustava a faixa escarlate na cintura deu algumas orientações sobre a volta para a cidade. Winston ouviu-a com atenção, pois compreendia que dos dois era ela quem tinha experiência naquele tipo de indisciplina, além de conhecer melhor as circunvizinhanças de Londres graças aos inúmeros passeios comunais.
De fato, Júlia ditou-lhe um itinerário completamente diferente do que ele havia feito... Aliás, devia chegar a uma estação diferente da que havia usado em sua partida para o campo. E disse-lhe ainda que jamais devia fazer o mesmo caminho quando retornasse de suas aventuras. Falava com ares de quem muito entendia que aquele era um princípio que não podia ser ignorado. Depois anunciou que sairia antes e que ele deveria aguardar meia hora após a sua partida para também deixar a clareira.
Sem perder tempo, falou-lhe o nome de uma rua de um bairro prole onde poderiam se encontrar após quatro dias... Obviamente seria depois do trabalho... No local ocorria uma feira sempre concorrida por “gente muito ruidosa”. Combinou que estaria numa barraca como que a procurar algo específico (cadarços ou linha de costura) e que se não percebesse qualquer perigo faria um sinal (assoaria o nariz) para que se aproximasse. Insistiu que, se não fizesse o sinal, ele devia passar direto sem demonstrar que a conhece. Se tudo corresse bem, poderiam conversar por uns quinze minutos no meio da agitação popular e combinar novo encontro.
Por fim, Júlia disse que tinha de se retirar... Certificou-se de que ele havia decorado suas instruções e acrescentou que devia estar de volta às sete e trinta da noite, pois trabalharia “duas horas para a Liga Juvenil Anti-Sexo”. Pôs-se a falar rapidamente que, sem dúvida, era “algo horroroso”. Na sequência pediu ao Winston que passasse uma escova em sua roupa e pediu que cuidasse de limpar eventuais pedaços de folhas ou de pequenos ramos em seus cabelos.
Devidamente preparada, ainda o abraçou e beijou... “Adeus, meu amor, adeus”, foi o que disse por fim e desapareceu por um caminho em meio à folhagem sem provocar qualquer ruído.
(...)
Como notamos, Winston foi “todo atenção”.
Ao se ver só, pensou novamente que não conhecia todo o nome de Júlia e não sabia onde ela morava. Mas entendeu que isso não tinha a menor importância, até porque não teriam chance de se encontrar em local fechado ou de se corresponder por carta.
Neste ponto o que se pode adiantar é que jamais retornaram ao bosque que se parecia com a “Terra Dourada” dos sonhos de Winston.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“1984”, de George Orwell – uma paisagem já vislumbrada em sonho, a “Terra Dourada”; o espetáculo proporcionado pelo tordo canoro; Júlia e seu “gesto magnífico”, de “aniquilar a civilização”, como no sonho; relato da jovem sobre suas aventuras sexuais com membros do Partido e de seu desprezo ao pessoal do Partido Interno; Winston aprova a conduta, pois considerava que a lascívia podia destruir o regime

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Colocaram-se à sombra de aveleiras para se protegerem do calor... Ao voltar o olhar para o campo, Winston recordou-se da paisagem de seu sonho e achou que a conhecia “de vista” por antecipação: “um pasto velho, com um caminho que serpeava de um lado a outro, pontilhado de cupins. Na sebe irregular, do lado oposto, os ramos dos ulmeiros balouçavam de leve na brisa, e suas folhas palpitavam em densas massas, como cabelo de mulher. Devia haver por ali, embora não pudesse vê-lo, um regato com espraiados verdes onde nadavam alguns peixes”.
Não se conteve e aos sussurros perguntou à Júlia se havia algum regato... Ela respondeu que sim, na beira do outro campo. E completou dizendo que havia peixes, sendo alguns bem grandes, que podiam ser vistos nas águas à sombra dos chorões.
Winston não se conteve e deixou escapar que “quase” era a “Terra Dourada”. Como não podia deixar de ser, ela quis saber. Ele respondeu que era apenas uma paisagem que eventualmente via em sonho.
(...)
A conversa sobre a “Terra Dourada” foi interrompida por um tordo que havia pousado num ramo bem próximo a eles... Júlia chamou a atenção do namorado para que pudessem contemplar a bela criatura, que abria e fechava as asas como que a aproveitar o calor dos raios solares que passavam por entre a folhagem.
O passarinho pôs-se a cantar animadamente, preenchendo a tarde de alegria e paz. Parecia se exibir com exclusividade ao casal, que permaneceu em silêncio a contemplá-lo. De fato, a cantoria era das mais espetaculares, pois suas variações nunca se repetiam. E seria o caso de se perguntar para quem ou a que cantava, já que nas proximidades não havia fêmea ou um seu concorrente.
Winston pensou sobre isso e refletiu se não havia mesmo nenhum microfone por perto... Se existisse, o equipamento certamente não teria captado nada do que falaram, pois só se comunicaram aos sussurros... O mesmo não se podia dizer a respeito da cantoria do tordo. Algum tempo se passou, a ave continuou a se exibir e Winston abandonou mais esses temores.
(...)
Em vez de se preocupar com a possibilidade de algum agente estar capturando os sons locais, remotamente graças à fiação conectada a supostos microfones, Winston resolveu aproveitar o momento... A bela cantoria do tordo e a “cintura morna e macia” de sua namorada deviam lhe bastar. Por isso puxou-a mais para perto de si. Suas mãos deslizavam pelas curvas da jovem enquanto se beijavam ardentemente. Os dois ofegavam regularmente e talvez por isso o tordo tivesse se assustado e voou para longe,
Tanto se acariciaram que Winston acabou desejando-a... Júlia explicou que deviam retornar à clareira e assim fizeram. Seguiram com tanta rapidez que mal evitavam os ramos secos.
Protegidos pela “segurança da muralha de árvores novas”, buscaram-se um ao outro... Winston não pôde deixar de notar o modo como Júlia se desfez do macacão e o lançou para um dos lados com ligeireza, “num gesto magnífico” como que a “aniquilar toda uma civilização” tal como se passava em seu sonho.
Encantado, contemplou “o corpo muito branco” de Júlia deitado na relva ensolarada... Mais que isso, manteve-se a fitar sua face sardenta e o seu “leve sorriso de ousadia”. De repente ajoelhou-se para ficar bem perto dela... Perguntou-lhe se já havia se envolvido com outros daquele mesmo modo anteriormente. Ela respondeu que “naturalmente”, que já fizera aquilo “centenas de vezes”. Depois corrigiu admitindo que tivesse sido “muitíssimas vezes”.
Winston quis saber se havia se encontrado com membros do Partido e ela respondeu que era sempre com membros do Partido que se envolvia em aventuras como aquelas, mas não do Partido Interno... Chamou-os de “porcos” e admitiu que sabia que vários deles quisessem. Na sequência salientou que não eles não eram tão santos como queriam fazer crer.
Ao ouvir essas revelações, o rapaz sentiu o coração se agitar. Mas não era por despeito, e sim porque considerou que Júlia era do tipo de mulher que ele gostaria que prevalecesse na sociedade... Ela havia dito “muitíssimas vezes”! Winston esperava que tivessem sido inúmeras, milhares até.
Aquele tipo de comportamento pervertido o animava na esperança de que o Partido e sua estrutura de poder estivessem carcomidos, podres mesmo... A aparência de robustez e “seu culto da severidade e à autonegação podiam ser apenas uma máscara da iniquidade”.
Para Winston, as rebeldias sexuais como a de Júlia podiam desmantelar o sistema... Se pudesse, infeccionaria os moralistas “com lepra ou sífilis” e com tudo o mais que pudesse “apodrecer, minar, debilitar” o IngSoc.
Na sequência, fez a moça ajoelhar-se diante de si e disse-lhe que aprovava a conduta dela, pois quanto mais tivesse se envolvido sexualmente com outros mais a desejaria... Perguntou-lhe se o compreendia... Ela respondeu que sim, “perfeitamente”. Ele emendou que nutria ódio pela pureza e a virtude, e que, de sua parte, não haveria virtude “em lugar nenhum”, pois desejava “que todos fossem corruptos até os ossos”.
Júlia respondeu que estava tudo certo... Chamou-o de “querido” e disse que ela servia aos seus propósitos, pois era “corrupta até os ossos”.
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Um abraço,
Prof.Gilberto

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

“1984”, de George Orwell – Winston disse à Júlia o que pensava a seu respeito antes de ter recebido o “recado”; do modo como a aparência e as atitudes fanáticas contribuem para iludir e ao mesmo tempo “proteger dos perigos”; um chocolate de qualidade e estranha sensação de “déjà-vu”; a moça explica a atração pelo Winston; impropérios ao se referir ao Partido e aos seus maiorais; convém permanecer na área protegida pelas ramagens

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Winston e Júlia chegaram à clareira do bosque que ela parecia conhecer bem... Estamos neste ponto do início do encontro em que ela quis saber o que ele pensava a seu respeito até o dia em que lhe dera o recado num dos corredores do Ministério da Verdade...
Como não pretendia mentir-lhe, Winston respondeu com sinceridade que a odiava e que alimentava desejos de violentá-la e depois eliminá-la. Confessou que há duas semanas estivera a ponto de quebrar-lhe a cabeça, pois imaginou que ela fosse dos quadros da Polícia do Pensamento.
Júlia riu-se a valer... Achou graça que o seu comportamento e modo de se apresentar enganavam tão bem. Mas disse que era um disparate associá-la à Polícia do Pensamento, então quis que Winston confirmasse que era isso mesmo o que imaginava. Ele respondeu que talvez não fosse bem assim, mas admitiu que sua jovialidade e saúde o levaram a imaginar que fosse das mais fanáticas seguidoras do Partido.
A garota pareceu entender e traçou uma síntese do que mais ele podia ter pensado a seu respeito: “boa militante; pura de palavras e atos; assídua nas passeatas com suas faixas e palavras de ordem; atividades comunais de recreação”. Para ela, era de se admirar que alguém pudesse achar que poderia atuar como agente de combate a “ideocriminosos”. E que o denunciasse, levando-o à morte.
Winston confirmou que pensava mais ou menos assim e que ela tinha de concordar que havia muitas mulheres que atuavam daquela forma. Júlia não discordou e sentenciou que “a faixa escarlate da Liga Juvenil Anti-Sexo” passava a impressão... Arrancou no mesmo instante e lançou-a sobre a vegetação ao mesmo tempo em que a chamava de “porcaria”. Depois tirou uma barra de chocolate do bolso de seu macacão e a dividiu com o companheiro. Ele se admirou com o aroma e a qualidade do acabamento do invólucro prateado, algo de qualidade e nada comparado ao que era fornecido pelo regime, “em papel pardo-fosco, e o chocolate sempre quebradiço, com gosto de fumaça de lixo”.
O petisco era algo raro, mas Winston tinha certeza de que já havia experimentado algo parecido... O perfume e o sabor traziam-lhe “recordações que não podia precisar, mas que eram poderosas e perturbadoras”. Quis saber onde ela havia conseguido.
Júlia contou que tinha sido no mercado negro... Respondeu como se estivesse falando de algo natural. Depois emendou que as pessoas a conheciam a partir do que enxergavam de seu “exterior”, alguém que se destacava nas competições, que havia sido “chefe de tropa nos Espiões”, que trabalhava voluntariamente “três noites por semana na Liga Juvenil Anti-Sexo” e que tinha uma militância exemplar pelas ruas de Londres... Nas passeatas sempre era vista ajudando a levar as maiores faixas, e com a fisionomia disposta e alegre.
Por fim, salientou que aquele seu modo de se comportar era a única maneira de “não correr perigo”.
(...)
Winston a ouviu com atenção enquanto saboreava seu pedaço de chocolate... Algo incrivelmente delicioso e que o levava a pensar a respeito da recordação que o incomodara, “algo que podia sentir, mas não reduzir a uma forma definida, como um objeto visto com o rabo do olho”. Concluiu que o melhor que tinha a fazer era tirá-la da cabeça... O que podia fazer se a única coisa que sabia a respeito daquela “reminiscência” era “que se tratava da lembrança de algum ato que gostaria de desfazer, mas não podia”?
Voltou-se para Júlia e disse que ela era bem jovem e que devia ter uns dez ou quinze anos a menos que ele. Perguntou o que vira nele para que se sentisse atraída. Ela respondeu que achou que devia se arriscar, pois tinha visto algo de diferente em sua cara. Emendou que tinha aptidão para “descobrir gente que não se adapta” e logo que o viu imaginou que devia ser “contra eles”.
Obviamente ela se referia aos maiorais do Partido, notadamente o Partido Interno... Winston espantou-se com o modo como ela vociferava com ódio e desdém em relação ao poder. Sossegou um pouco ao lembrar-se que estavam seguros naquela clareira... Depois problematizou a respeito da possibilidade de haver mesmo segurança “em alguma parte”.
Chamava a atenção o modo como Júlia não poupava palavrões ao se referir ao regime e ao Partido principalmente porque o procedimento era altamente desaconselhável para seus membros... O próprio Winston não proferia impropérios e xingamentos em voz alta, por isso espantava-se com o fato de a garota parecer incapaz de falar sobre o Partido Interno “sem usar os palavrões que se veem escritos a giz e a carvão em certas ruas escuras”.
Não podia dizer que a reprovasse... Pelo contrário! O modo como ela se comportava revelava toda sua revolta contra o sistema, assim, para ele, aquilo soava “natural e saudável”.
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Retiraram-se da clareira e voltaram a caminhar pela alameda... Nos trechos em que era possível, andaram de braços envolvidos às cinturas um do outro. Para Winston, a ausência da faixa tornava a cintura de Júlia mais macia e “maleável”.
Falavam, mas era aos sussurros... Não demorou e alcançaram o fim do pequeno bosque, então a garota o fez parar, explicando que era melhor não avançarem mais, pois podia haver espiões à frente e desde que permanecessem protegidos pelas ramagens não corriam qualquer risco.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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