quinta-feira, 30 de abril de 2015

“A Legião Negra – A luta dos afro-brasileiros na Revolução Constitucionalista de 1932”, de Oswaldo Faustino – Maria Soldado parte para a fronteira do Paraná; promessas de apoios que não se confirmaram em diversas frentes; a história do lavrador Paulo Virgílio; tropas mineiras atacam os paulistas; o “batalhão do bispo”; estado de Maracaju participa da revolução

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Maria Soldado ficou muito animada por ter sido aceita como voluntária na Legião Negra... Dedicava-se com determinação aos treinamentos que se iniciavam bem cedo na Chácara do Carvalho.
O batalhão do qual fazia parte partiria para a fronteira com o estado do Paraná... A expectativa era muito boa, já que as tropas constitucionalistas contariam com o apoio de soldados vindos do Rio Grande do Sul...
Situação insuportável para Maria era não ter acesso ao rádio e o noticiário sobre a revolução... Por incrível que pareça, ela estava “mais por dentro dos assuntos” quando estava “do lado de fora”.
(...)
O trem conduziu o batalhão pela Estrada de Ferro Sorocabana... Ao lado de Maria instalou-se um jovem que havia frequentado a Frente Negra e que pretendia se tornar jornalista... O rapaz tinha o hábito de fazer anotações em um caderno que carregava para todo lugar. De algum modo ele conseguia informações a respeito dos movimentos dos batalhões e as estratégias adotadas pelos comandantes. Seus registros tinham a intenção de testemunhar os episódios revolucionários.
Então foi através desse jovem que Maria obteve notícias sobre as atividades revolucionárias. Foi ele quem garantiu que estavam rumando para Itararé, onde construiriam as trincheiras...
Percebe-se que o ânimo do soldado era de plena confiança... Porém Faustino destaca que o resultado das ações foi dramático, pois, devido a “grave erro logístico”, os paulistas tiveram de “bater em retirada” na direção do Rio Paranapanema, e isso possibilitou “150 quilômetros de caminho livre” para as tropas federais.
Como sabemos, o prometido reforço de tropas sulistas acabou não se confirmando.
(...)
Foi por intermédio do mesmo animado rapaz que Maria Soldado ficou sabendo que a principal frente da revolução estava no Vale do Rio Paraíba... O próprio coronel Palimércio conduzia as ações que visavam conquistar a cidade de Resende, no estado do Rio de Janeiro. Também ali havia a expectativa do apoio de tropas que viriam de Minas Gerais.
Como sabemos, as tropas mineiras chegaram à região para atacar os insurrectos de São Paulo... Na verdade, as forças legalistas tomaram importantes centros, como Cruzeiro e Lorena... Aos constitucionalistas restou a alternativa do “recuo tático”...
(...)
Se Maria pudesse ouvir o rádio certamente se emocionaria com a narrativa sobre o agricultor Paulo Virgílio, da cidade de Cunha, também nas proximidades fronteiriças com o Rio de Janeiro.
Faustino registra que um batalhão federal de cerca de 400 homens da Marinha marchou sobre a localidade e apavorou os habitantes... Famílias inteiras se embrenharam nas matas ou nos elevados da serra... Virgílio fez o mesmo e, não sem sacrifício, levou a esposa e os cinco filhos para os “grotões da Serra do Indaiá”.
O pobre Virgílio foi capturado quando buscava alimentos... Sofreu tortura... Seus algozes queriam informações sobre o paradeiro das tropas rebeldes... Fizeram ameaças diversas e exigiram que ele negasse sua naturalidade paulista e se declarasse fluminense (natural do estado do Rio de Janeiro)... Ele não se curvou ante as pressões e foi obrigado a cavar a própria cova... Conta-se que enquanto o crivaram de balas, bradou que São Paulo venceria.
(...)
Através das anotações do jovem soldado, aspirante a jornalista, Faustino nos apresenta as outras frentes de batalha...
Havia a Leste Paulista, que levaria as tropas a seguir pelo sul do estado de Minas Gerais... O texto revela que elas foram barradas na cidade de Pouso Alegre, e parte de seus soldados acabou massacrada no alto da Serra da Mantiqueira, na Garganta do Embaú... Também em Passa Quatro os rebeldes sofreram ataques e, por isso, rumaram para Campinas...
Durante a perseguição, as tropas leais a Vargas ocuparam importantes centros do estado de São Paulo, como Itapira... Em Atibaia e Bragança Paulista ocorreram novas batalhas sangrentas.
(...)
A frente Centro Paulista tinha palco na região da cidade de Botucatu... Ali houve engajamento da Igreja Católica, que apoiou as ações dos constitucionalistas... Faustino destaca que dom Carlos Duarte Costa doou “sua cruz peitoral de ouro, cravejada de pedras preciosas” para contribuir com os esforços revolucionários... Não era por acaso que as tropas locais ficaram conhecidas como “Batalhão do Bispo”.

                        Faustino não entra em detalhes, mas a biografia de dom Carlos Duarte Costa é polêmica... Ele foi excomungado pelo papa Pio XII depois de ter denunciado que o Vaticano teria organizado a “Operação Odessa” (que facilitou a fuga de nazista para a América Latina) e fundou a Igreja Católica Brasileira (também em 1945).

(...)
O estado do Maracaju apoiaria as tropas paulistas... Também isso constava dos registros do jovem soldado.
Este estado nada mais era do que o atual Mato Grosso do Sul... Os habitantes locais desejavam a sua emancipação desde os tempos da Guerra do Paraguai... No dia 10 de julho e 1932, tão logo começou a Revolução em São Paulo, proclamaram a criação do estado sem o consentimento do governo federal...
É claro que houve um forte ataque das tropas federais em Coxim e Porto Murtinho... Depois da perda do controle do porto de Santos para os getulistas, esse foi outro duro golpe para os batalhões paulistas, que ficaram sem qualquer possibilidade de abastecimento.
O estado do Maracaju deixou de existir em outubro do mesmo ano.
Leia: A Legião Negra. Selo Negro Edições.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quarta-feira, 29 de abril de 2015

“A Legião Negra – A luta dos afro-brasileiros na Revolução Constitucionalista de 1932”, de Oswaldo Faustino – encontro e constrangimento em plena madrugada; o jamaicano sugere parcerias com Miro; a luta dos “filhos da África” não devia ter fronteiras

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Miro abandonou Stela em sua solidão e amargura...
Caminhou pelos becos... Nada podia ver, mas tinha a sensação de que estava sendo perseguido... Aos poucos percebeu que alguém estava se aproximando... Precisava encontrar algo com o que pudesse se defender. Seu coração disparou, porém aquietou-se na medida em que reconheceu John Washington.
O jamaicano estava sem o uniforme e isso dificultou o reconhecimento imediato... Miro quis dizer-lhe que o lugar era muito perigoso para caminhadas solitárias durante a madrugada... O outro sorriu demonstrando a confiança dos que estão acostumados a perigos maiores.
De fato, o brasileiro tinha de reconhecer que a fuga do companheiro tinha sido das mais espetaculares... Os dois caminharam em direção à pensão onde Miro estava hospedado... Enquanto seguiam, John confessou-se apaixonado por Stela... Disse também que havia retornado ao bar, mas as portas já estavam trancadas... Revelou que gostaria que Miro servisse de intérprete para ela no momento em que lhe declarasse o seu amor.
Aquela conversa deixou Miro bem constrangido... O outro prosseguiu dizendo que notou que a luz da janela sobre o bar estava acesa... Miro não podia prosseguir ouvindo aquelas coisas, e é por isso que ele mudou o assunto perguntando sobre quanto tempo John permaneceria no país.
(...)
A pergunta de Miro funcionou, já que logo o rapaz jamaicano se empolgou ao falar novamente a respeito do movimento no qual estava envolvido. Destacou que não sabia que o Brasil era tão grande e mostrou-se impressionado também com a agitação política... Ele tinha ouvido falar de táticas de guerrilhas e chegou a conhecer a capoeira.
John explicou que escreveu uma carta aos membros da associação... Eles ficaram tão interessados que lhe deram a missão de aprender essas técnicas de resistência antes que retornasse aos Estados Unidos... No sul daquele país estavam se formando grupos negros paramilitares que poderiam aproveitar as táticas desenvolvidas pelos brasileiros.
O rapaz gostaria que Miro o ajudasse nessa tarefa, mas este deixou claro que não dominava a arte da capoeira e nem conhecia as táticas de guerrilha... Todavia pôs-se à disposição para procurar alguém com habilidade e conhecimento suficientes para contribuir com o jamaicano.
John Washington ficou animado e disse que em troca passaria as informações a respeito do movimento que se desenvolvia nos Estados Unidos, principalmente sobre as ideias de Garvey e de W.E.B. Du Bois... Ele esperava que Miro traduzisse os textos das duas lideranças e os repassasse às entidades que defendiam a causa dos negros no Brasil.
(...)
Por incrível que pareça, Miro ficou fascinado com tudo o que o outro lhe disse... Ele, que por tanto tempo vivera mergulhado na completa alienação e desprezo em relação à sua gente (até se considerava descendente de índios) passou a pretender conhecer as raízes negras e a se interessar pela “luta sem fronteiras” que os “filhos da África” já empreendiam pelo continente.
Washington percebeu a animação de Miro... Sugeriu que poderiam viajar juntos aos Estados Unidos, e que o brasileiro se encarregaria de ensinar capoeira e as táticas de guerrilha... Miro deixou claro de uma vez por todas que o seu ramo era a enfermagem, que a capoeira era “coisa de lutadores de rua” e que a guerrilha era um movimento praticado pelos “bandoleiros do cangaço”.
(...)
Aproximaram-se da pensão e Miro notou que o seu quarto estava iluminado...
Ele imaginou que estivesse sendo perseguido e, como não queria comprometer o gringo com mais complicações, despediu-se...
John ainda teve tempo de dizer que tinha visto cartazes sobre um comício da Legião Negra que ocorreria em Santos no dia seguinte... Afirmou que gostaria de participar e de contar com Miro para que lhe traduzisse os discursos...
Combinaram um local de encontro...
Cada um partiu para o seu lado.
Leia: A Legião Negra. Selo Negro Edições.
Um abraço,
Prof.Gilberto

terça-feira, 28 de abril de 2015

“A Legião Negra – A luta dos afro-brasileiros na Revolução Constitucionalista de 1932”, de Oswaldo Faustino – mais sobre o movimento de Marcus Mosiah Garvey e a fuga do ativista John Washington; Miro e Stela se envolvem romanticamente, mas ele não alimenta nenhuma esperança de que possam viver juntos

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O movimento de Marcus Mosiah Garvey se estendia por uma rede de mais de 40 países... Desde 1918 ele publicava o periódico Negro World e militava contra o preconceito e a discriminação dos negros... Também ele era jamaicano e entendia que os negros deviam integrar nações que lhes eram próprias, sendo assim, a África seria o destino de todos os que estavam, por causa da diáspora, afastados dela... Não era por acaso que o lema da Associação Universal para o Progresso Negro era “Um Deus! Uma aspiração! Um Destino”.
(...)
É claro que Miro jamais ouvira falar do movimento de Garvey, tampouco podia entender como é que algum negro pudesse se interessar em transferir-se da América para a África... Ficou espantado ao saber que pelo menos três viagens haviam sido promovidas pelo movimento, e que centenas de afrodescendentes decidiram (literalmente) embarcar no projeto.
Para ele, era espantoso que nos Estados Unidos existisse um movimento com aquelas características... Miro se recordou da ocasião em que o mascate Salim quis apresentar-lhe o jornal da Frente Negra... Apesar de ter se recusado a folheá-lo, tinha certeza de que a entidade brasileira não podia ser comparada ao movimento de Garvey.
(...)
As coisas tinham mudado muito... A amarga experiência vivida por Miro em Marilândia Paulista fizera com que ele passasse a rejeitar a ideia de que o nosso país fosse um paraíso onde a “democracia racial” garantia convivência pacífica entre negros e brancos. Era certo que ele estava arrependido por ter vivido alienado até então.
(...)
De certo modo a história de fuga de John Washington se parecia um pouco com a sua... Washington explicou que um dos marinheiros que estava no bar de Stela havia lhe “alugado” o uniforme, e foi assim que ele conseguiu se disfarçar e se intrometer em meio aos demais depois de permanecer por algum tempo escondido no porto de Boston enquanto os ativistas eram caçados pela polícia...
Miro achou graça quando o rapaz disse que depois de disfarçado não teve maiores problemas para deixar o país, já que para os oficiais brancos “os negros são todos parecidos”.
(...)
Na sequência dos acontecimentos vemos que a conversa interessantíssima entre Miro e Washington foi interrompida porque os colegas do gringo exigiam que ele levasse mais cervejas para a mesa...
Miro até foi convidado para se juntar aos bebedores, mas ele preferiu permanecer junto ao balcão bem perto da bela Stela... Se ele perguntasse a ela sobre essa sua opção, ouviria que era isso mesmo o que devia fazer.
Mais algum tempo se passou... Os marinheiros se embebedaram e se retiraram depois das oito da noite... Miro sugeriu que Stela fechasse o estabelecimento, até porque não havia mais fregueses. Ela concordou, e também topou a proposta de subirem até os cômodos de cima para tomarem chá...
(...)
Mal cerraram a porta do boteco e se agarraram freneticamente... Nem é preciso dizer como isso terminou. O casal subiu pela escada e se envolveu ardentemente... Era a primeira vez que Miro se entregava com paixão a uma mulher... Não havia como comparar as sensações que experimentou com Stela à relação tumultuada que teve com Marcela em Marilândia.
Passado o frenesi, Stela perguntou se Miro topava ficar com ela “para sempre”... Isso foi como que um “balde de água fria”... Em vez de respostas, Miro só reflexões se passaram por sua mente...
É claro que Stela era uma mulher maravilhosa, e ele estava muito satisfeito por se identificar com ela, uma negra como ele... Mas estava muito amargurado com a experiência do casamento frustrado, e calculava que no final das contas apenas faria a bela Stela sofrer...
Miro nada disse... Beijou-a, retirou-se para um banho e depois começou a se vestir... Na verdade ele também tinha medo de se apaixonar...
Ele se retirou sem encará-la de frente... Nem notou que lágrimas molhavam a face da jovem amante.
Leia: A Legião Negra. Selo Negro Edições.
Um abraço,
Prof.Gilberto

segunda-feira, 27 de abril de 2015

“A Legião Negra – A luta dos afro-brasileiros na Revolução Constitucionalista de 1932”, de Oswaldo Faustino – Stela Maris, uma linda garçonete; uma referência sobre a rainha Ngola Nzinga Mbande; o fugitivo John Washington, um ativista jamaicano da Associação Universal para o Progresso Negro

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Miro precisava arranjar algum trabalho... E é por isso que todos os dias ele deixava a pensão bem cedo.
Mas a situação não estava nada boa... Nenhuma companhia contratava porque as exportações estavam em baixa, assim os estivadores tinham de se virar com pequenos bicos ou amargar o desemprego.
(...)
Certo dia, enquanto perambulava pelos becos nas proximidades do porto de Santos, Miro acabou se instalando em um boteco onde marinheiros acomodados em uma das mesas riam a valer. Esfomeado como estava, não perdeu tempo e também entrou no pequeno estabelecimento.
No mesmo instante, ele ficou maravilhado com a bela atendente, uma “negra retinta, cabelos ondulados, compridos, até o meio das costas, olhos de jabuticaba, rosto e lábio finos”... A visão o fez paralisar instantaneamente.
Os animados marinheiros que bebiam cervejas e outras variedades de aperitivos eram norte-americanos... Entre eles havia um que não tirava os olhos da garçonete. O moço viu quando Miro fez o seu pedido (lanche de carne assada e suco de laranja), mas não reparou que o recém-chegado foi tomado de fascínio pela bela jovem.
A garota também se sentiu atraída por Miro, e logo os dois começaram a conversar com certa animação... Ele disse que estava na cidade em busca de emprego, que estava instalado na pensão, e que não era raro perambular de madrugada quando sentia fome...
Ela era bem tímida, mas sentiu confiança em Miro, que se espantou quando ela falou que trabalhava sozinha e que fechava o bar às dez da noite... Ela explicou que morava com o tio na parte de cima do estabelecimento...
Fazia dez anos que a mãe dela havia morrido... O tio (irmão da falecida) a socorreu. Não fosse ele e a sua existência seria ainda mais dramática, já que não tinha a quem recorrer (a mãe era solteira)...
Ela contou que o tio estava internado no hospital devido a um grave acidente... Quando revelou que se chamava Stela Maris, Miro pôs-se a falar de seus conhecimentos de etimologia... Explicou que o nome da bela tinha origem no latim e que significa “estrela do mar”.
As palavras de Miro a enchiam de vaidade... Mas não era a primeira vez que lhe falavam coisas bonitas... Ela até se lembrou de ocasião em que um oficial da marinha angolana a comparara à rainha Ngola Nzinga Mbande.

                        (também conhecida como Rainha Jinga, de acordo com Faustino, nasceu em 1583 e viveu por 80 anos... “Foi rainha dos reinos do Ndongo e de Matamba; liderou tropas de resistência aos invasores portugueses; converteu-se ao cristianismo e adotou o nome de Dona Ana de Sousa; revoltou-se contra os desmandos dos colonizadores e voltou a se rebelar; assinou tratado com a metrópole e reinseriu os ex-escravos na sociedade angolana. Depois de sua morte, cerca de 7 mil de seus soldados foram escravizados e enviados para o Brasil. O nome da Rainha Jinga ainda hoje é cantado em vários folguedos populares, como a Folia de Reis).

O marinheiro que estava interessado pela Stela Maris se aproximou... Em inglês pediu uma aguardente... Ela não entendia absolutamente nada do que os gringos pediam... Miro traduziu a solicitação e isso a deixou surpresa.
A moça explicou que sempre que aqueles estrangeiros apareciam, aquele tipo especificamente se encarregava de mostrar a ela o que eles queriam... Algumas vezes ele avançava para o outro lado do balcão para pegar a mercadoria porque ela tinha mesmo muita dificuldade de entendê-los.
Stela lembrou-se ainda de uma frase (give me two beers) que a deixou muito confusa numa das ocasiões... Miro sorriu do modo como ela pronunciou e explicou que tinham lhe pedido duas cervejas...
(...)
Estavam se entendendo, mas o marinheiro quis saber se a aguardente estava a caminho... Miro explicou a ela o que o rapaz pretendia... Enquanto ela se ocupou em encher o copo, o tipo se aproximou de Miro para conversar, pois notou que ele falava inglês.
Foi assim que Miro ficou sabendo que aquele moço não era bem um marinheiro... O tipo se chamava John Washington e, sempre conversando em inglês, revelou que se tratava de um ativista contra o “racismo institucionalizado” nos Estados Unidos... Na verdade era jamaicano e estava no Brasil há duas semanas... Contou que o líder do movimento do qual participava, Marcus Garvey, fundara a Associação Universal para o Progresso Negro, também era jamaicano e estava preso.
Aconteceu que o pessoal que fazia parte das células teve de fugir para escapar das perseguições policiais... Mesmo sendo um fugitivo, John tinha umas tarefas a cumprir...
Leia: A Legião Negra. Selo Negro Edições.
Um abraço,
Prof.Gilberto

sexta-feira, 24 de abril de 2015

“A Legião Negra – A luta dos afro-brasileiros na Revolução Constitucionalista de 1932”, de Oswaldo Faustino – a patroa e suas conhecidas do tempo em que estudavam no Des Oiseaux; mulheres da elite não precisavam se alistar; a Maria cozinheira se tornou Maria Soldado; despedidas e reunião

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A patroa de Maria seguiu para a Chácara do Carvalho... Ela estava decidida a se alistar em algum dos setores destinados às tarefas femininas...
Era imprescindível que as mulheres contribuíssem com o esforço revolucionário paulista... Vimos que os jornais e o rádio anunciavam que sua dedicação podia ser comparada à das esposas dos bandeirantes... Havia quem as comparasse às “mulheres de Atenas”, com a ressalva de que as paulistas se sobressaíam por irem à luta!
A campanha não podia parar... O ouro arrecadado estava sendo bem aplicado, pelo menos era o que garantia o noticiário.
Vimos que não era com “total desprendimento” que a patroa agia... Em sua mente dúvidas pareciam pairar... Doaria anéis e aliança ao “ouro para o bem de São Paulo”?
Maria nada tinha que pudesse doar... Exceto, é claro, a sua disposição de trabalhar...
(...)
Vejamos o que ocorreu.
Estamos neste ponto em que as duas deixaram a banca de jornal do português Quincas e seguiram a pé para o posto de alistamento...
Aconteceu que a patroa encontrou duas antigas amigas de sua época no Des Oiseaux. Então ela disse qualquer coisa a respeito de cada uma (sobre suas viagens à Europa, casamentos muito bem arranjados; sobre encontros nos horários do chá da tarde...) e deixou Maria a certa distância para que pudesse cumprimentá-las e trocar algumas palavras...
Enquanto as elegantes “quatrocentonas” trocavam ideias a respeito de suas preocupações em relação à guerra e sobre as “novidades da high society”, Maria se impacientava. Não foi por acaso que ela perguntou à patroa se poderia seguir sozinha para sede da 2ª Região Militar...
A patroa autorizou a cozinheira a ir em frente e cumprir o seu dever... Ela e as amigas iriam para uma casa de chá que havia sido inaugurada por aqueles dias na Rua Dona Angélica... Depois esclareceu que Maria teria de retornar de bonde para a mansão.
Tudo indicava que a patroa já tinha resolvido a sua participação no movimento revolucionário da “brava gente bandeirante” ali na calçada mesmo, pois disse à Maria que ela não precisava se alistar porque, com as amigas que acabara de encontrar, atuaria no “Centro de Coordenação das Atividades Femininas, na sede da Liga das Senhoras Católicas de São Paulo”...
Olívia Guedes Penteado, fundadora da referida entidade, era parente da patroa de Maria.
(...)
Na Junta de Alistamento, Maria procedeu conforme o solicitado... Basicamente teve de responder a algumas questões para identificação...
Já estava anoitecendo quando chegou à mansão onde trabalhava.
Na verdade retornou a casa para se despedir dos patrões e das crianças...
Maria não estava sozinha... Em frente à mansão, cerca de 20 voluntários negros e indígenas a aguardaram... Todos estavam fardados.
E para a surpresa dos patrões, também a cozinheira trajava um fardamento militar... Ela explicou-lhes que entendera que seria mais útil na linha de frente... Disse também que os companheiros de Legião a chamavam de “Maria Soldado”.
Mas aquela novidade era demais para os patrões, que tentaram argumentar sobre os perigos a que ela estava se expondo...
Nada do que disseram, e nem mesmo a choradeira dos filhos dos patrões (que pareciam mesmo gostar dela), foi suficiente para convencê-la a desistir da Legião Negra.
(...)
Na sequência, Maria se encaminhou para a casa de dona Nicota (tia da patroa) para se despedir. Essa consideração se devia à ocasião em que Maria havia sido “emprestada” para cozinhar para ela.
Os voluntários fardados que a acompanhavam permaneceram à sua espera na rua.
Dona Nicota era muito religiosa... Demonstrou seu espanto com a decisão da negra Maria e não se despediu antes de rezarem o Rosário “com os mistérios gozosos, dolorosos e gloriosos”... Depois a velha pendurou uma correntinha com a medalha de Nossa Senhora Auxiliadora no pescoço da soldada...
(...)
Depois disso, Maria foi ter com os companheiros de armas... Emocionou-se ao pensar no carinho que os patrões lhe dispensaram... Uma lágrima rolou pelo seu rosto.
Mas era com alegria que partia com os demais... O grupo se acomodou numa “birosca” para bebericar, participar da roda de samba e falar sobre “histórias de assombração e de traições”...
Decididamente ela se sentia parte de uma família.
Leia: A Legião Negra. Selo Negro Edições.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quinta-feira, 23 de abril de 2015

“A Legião Negra – A luta dos afro-brasileiros na Revolução Constitucionalista de 1932”, de Oswaldo Faustino – o suicídio de Santos Dumont; a patroa segue com Maria para a Chácara do Carvalho, onde se alistarão; recordações dos eventos sociais na mansão dos Prado; modernistas também em campanha; ouro para a revolução

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/04/a-legiao-negra-luta-dos-afro_22.html antes de ler esta postagem:

Santos Dumont se suicidou em 1932...
O “pai da aviação” estava mesmo muito deprimido... Os tempos gloriosos haviam passado para ele. Ele padecia também de esclerose múltipla...
Residia no Grande Hotel de la Plage, no Guarujá...
Conta-se que “ao ouvir o ronco das aeronaves das forças federais”, que seguiam para bombardear São Paulo, ele soltou gritos de pavor... Não suportou o fato de ter sido o inventor da “desgraça do mundo”... No dia 23 de julho trancou-se no quarto e se enforcou com duas gravatas.
(...)
Pelo rádio, Maria ouviu os comentários sobre a tragédia que marcou o fim do ilustre brasileiro... Os locutores concluíam que o lamentável episódio só podia ser creditado ao governo federal.
Por aqueles dias a patroa resolveu seguir para o alistamento... Ela acomodou a sua cozinheira no automóvel dirigido por Otacílio, chofer da família, que há muitos anos trabalhava para a mansão...
A madame daria a sua contribuição à revolução, e era com satisfação que também encaminhava a empregada... Sem dúvida, contribuir para a vitória de São Paulo era uma honra.
A mulher solicitou ao motorista que fizesse um caminho mais longo... Passaria em alguns estabelecimentos para comprar pães finos para o chá da tarde...
Maria estava no banco da frente e era com admiração que contemplava as ruas do centro... Ficou encantada com os postes e os lampiões a gás... Pensava sobre a trágica morte de Santos Dumont...
(...)
Largo do Café, Largo São Bento, convento dos beneditinos, Viaduto Santa Efigênia, Estação da Luz, Estação da Sorocabana, Campos Elíseos...
Logo divisaram a Chácara do Carvalho, sede da 2ª Região Militar... A madame não pôde se conter de emoção ao recordar dos tempos em que, junto ao marido, frequentava as festas promovidas pela família Prado... Eram encontros fabulosos e a gente rica não dispensava aquelas oportunidades.
A patroa destampou a falar sobre certas particularidades dos dourados tempos de outrora... Disse que o marido praticara hóquei a cavalo naquela chácara com o doutor Veríssimo e o doutor Martinho Silva Prado... Sobre este último, disse que era marido de dona Veridiana; que ele era tio dela e que era 14 anos mais velho do que ela; e que (diziam), na mansão de Higienópolis, viviam separados...
A patroa parecia se divertir com seu conhecimento sobre as particularidades da gente granfina... Mas ela mesma nem podia ter tanta certeza de suas recordações, já que em 1910, quando o velho Martinho Prado morreu aos 83 anos, era apenas uma garotinha.
(...)
Ela ordenou que o motorista Otacílio parasse o carro próximo de uma banca de jornal... A banca do português Quincas... A mulher quis ler a primeira página de um jornal que estava exposto. O texto versava sobre o civismo das mulheres de São Paulo e sua dedicação à guerra...
O jornal comparava o esforço das paulistas de 1932 ao brio das esposas dos bandeirantes dos tempos coloniais, que se negavam receber os maridos se esses regressavam derrotados de suas empreitadas pelo interior...
Cozinheiras, enfermeiras, coletoras de donativos, costureiras... Cerca de 50 mil mulheres eram aguardadas para o alistamento que certamente resultaria em reforço do “caixa do estado”. Algumas delas seriam encaminhadas para o setor de “produção de material bélico leve”...
A patroa quis saber de Maria para qual departamento ela pretendia se encaminhar... A empregada não sabia dizer, e respondeu que iria para onde estivessem precisando mais... Para onde a mandassem...
(...)
A madame sentiu firmeza nas palavras da outra... Lamentou que Quintiliana não pudesse se alistar, já que tivera de viajar para participar do sepultamento do pai...
(...)
Numa outra folha de jornal, a patroa entendeu que a indústria do estado estava se adaptando aos esforços de guerra, e que as mulheres ficaram com a missão de arrecadar “ouro para o bem de São Paulo”...
Uma reprodução fotográfica mostrava ao leitor que os modernistas (Tarsila do Amaral, Anita Malfati, Mário de Andrade e Menotti Del Picchia) “marchavam com a classe média na campanha cívico-revolucionária”.
O ouro arrecadado servia a diversas finalidades... Um dos jornais informava que foram construídas Casas do Soldado e postos para prestação de socorro e outros serviços aos que se feriam em combate... Também fundaram uma “Casa da Formiga”, que ampararia os filhos dos combatentes...
(...)
A patroa de Maria tocou por um instante os próprios anéis e aliança... Parecia certo que teria de se desfazer deles...
Ela nada disse, mas a empregada em seu silencia podia imaginar o que ela pensava naquele instante...
A cidade estava mobilizada... E era isso o que se podia depreender dos jornais:

igrejas, conventos, clubes, asilos, orfanatos, hospitais, associações, bazares e alguma mansões das famílias tradicionais transformaram-se em base de apoio logístico para o exército constitucionalista. Os batalhões em traslado, muitas vezes, se abrigam nas escolas, cujas aulas foram suspensas.

Sem perder mais tempo diante da banca, a patroa locomoveu-se a passos largos em direção à chácara... Maria a acompanhou com decisão.
Leia: A Legião Negra. Selo Negro Edições.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quarta-feira, 22 de abril de 2015

“A Legião Negra – A luta dos afro-brasileiros na Revolução Constitucionalista de 1932”, de Oswaldo Faustino – rosto negro refletido na vidraça; uma visão da mãe, um pedido de perdão; reconciliação com a própria identidade e carta a Berenice; a crise econômica de 1929 e a falta de trabalho para os estivadores de Santos

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/04/a-legiao-negra-luta-dos-afro_18.html antes de ler esta postagem:

Logo que chegou à Baixada Santista, Miro se sentiu novamente sem rumo...
Parou diante de uma loja e viu a sua imagem refletida na vidraça. Talvez, pela primeira vez em sua vida, prestasse atenção ao próprio rosto... Mesmo sem ter conhecido o pai, acreditava que fosse parecido com ele... Mas o que viu refletido o fez pensar em Benê, sua mãe que definhou no hospital psiquiátrico, por quem ele sentia a mais profunda aversão.
Depois de muitos anos, Miro se viu referindo-se a Benê como sua mãe... Então lágrimas saltaram-lhe dos olhos.
(...)
Miro arrependeu-se por todo mal que havia causado à mãe... Enfim assumiu que, em vez de desprezá-la, devia tê-la amado... Ele se emocionou porque naquele momento (é verdade que tardiamente) o seu sentimento era todo amor, mas não teria como manifestar o seu arrependimento...
Enfim ele reconhecia que Benê havia sofrido muito...
(...)
Recém-chegado a Santos, Miro teve uma visão...
A imagem da mãe surgiu em sua mente... Ela abria os braços... Ele também manifestou o desejo de abraçá-la. Então fez isso e pediu perdão “por tê-la matado em vida”... Disse ainda que agora estava convicto que bastaria um gesto seu e a mãe seria retirada do hospital para viver na casa da madrinha, a dona Berenice.
Miro estava delirando... Junto à parede da loja, foi escorregando até ficar prostrado na calçada.
Passou algum tempo e ele teve certeza de ter ouvido a mãe preocupada perguntar-lhe se estava passando mal.
Na verdade tratava-se de uma idosa que passava pelo local e ficou compadecida pelo estado lastimável daquele desconhecido... De fato, Miro estava despertando a curiosidade de muitos que passaram por ele, mas no máximo, assim que o viam, os transeuntes lançavam críticas ao alcoolismo e aos viciados...
(...)
Já era noite quando Miro despertou de sua alucinação... Agradeceu a bondosa senhora e disse que devia ter sofrido algum mal estar... A mulher insistiu, pois queria ajudá-lo, mas ele se levantou e se despediu para procurar um lugar onde pudesse se instalar...
Tudo o que Miro encontrou foi uma pensão num beco suspeito, onde prostitutas procuravam clientes...
Foi num dos quartos da “pensão de alta rotatividade” que ele se ajeitou como pôde... Acomodou-se e voltou a pensar na “visão” que tivera da mãe, então resolveu escrever uma carta para a tia Berenice. Sua intenção era a de revelar-lhe que, enfim, havia reconhecido a própria mãe.
(...)
Foi com desmedida emoção que a já idosa Berenice leu a carta do afilhado... Até então ela nem sabia dos motivos que o levaram a se afastar de São Paulo... Jamais tivera notícias suas...
A carta revelava que ele temia retornar porque era provável que a polícia política ainda o perseguisse... Berenice compreendeu a angústia de Miro... Ela também entendeu o fato de não querer visitas, pois estava instalado em um lugar “indecente”... Ficou animada com a possibilidade de qualquer dia daqueles receber um telegrama com o convite para passear pela cidade, praias e outros atrativos do litoral.
Berenice ficou emocionada ao constatar que Miro se referia à mãe com palavras carinhosas... Não fossem suas limitações físicas, partiria naquele mesmo momento para se encontrar com ele...
Ela também estava muito preocupada com a agitação revolucionária na cidade... Restava-lhe responder a carta.
(...)
Berenice não tinha ideia de como a condição de Miro era das mais difíceis...
É que ele não encontrava trabalho...
A “quebra da Bolsa de Nova York” trouxe gravíssimos problemas também para as exportações brasileiras.
As companhias haviam demitido funcionários, e não estavam contratando...
Poucos eram os estivadores que conseguiam algum bico...
Leia: A Legião Negra. Selo Negro Edições.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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