sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

“1984”, de George Orwell - retomada das sessões, esclarecimentos acerca dos estágios do “processo de reintegração” e início da fase de “compreensão”; percepção de certo relaxamento das amarras e da aplicação do choque; resgatando os escritos de Winston para a problematização; revelações a respeito da autoria do “livro proibido” e das obviedades almejadas pelos desvairados; o Partido é eterno e ponto, Winston devia explicar por que tinha de manter-se no poder

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/12/1984-de-george-orwell-final-da-sessao.html antes de ler esta postagem:

Houve muitas outras sessões... Winston não teria como dizer quantas, em quais intervalos e suas durações. Simplesmente porque não havia como o detento saber. No máximo imaginava que o processo se prolongava por “período enorme, indefinido”. Certamente por semanas a fio.
A sensação era a de que haviam se passado muitos meses... O entorpecimento impedia a avaliação sobre os intervalos entre os interrogatórios... Alguns dias ou algumas horas? Não havia como saber.
O caso é que as intervenções dependiam da programação estabelecida por O’Brien.
(...)
Depois de finalizada a que foi destacada na última postagem, O’Brien o interpelou com um esclarecimento acerca do desenrolar de seu caso. Disse que a “reintegração” tinha três estágios: “aprender, compreender e aceitar”. No momento estava dando início à fase do compreender.
O rapaz permanecia deitado e ligado à cama... Apesar de sua condição delicada, sentia que já podia movimentar joelhos, cabeça e dobrar os cotovelos. Evitava movimentos bruscos e mesmo se pretendesse não conseguiria deslocar-se satisfatoriamente.
O dispositivo destinado à dilaceração de seu corpo permanecia à disposição de O’Brien, que poderia acioná-lo sempre que desaprovasse falas e gestos do preso político. De certo modo, Winston mantinha-se menos aterrorizado em relação a este expediente... Além disso, sabia que se não se manifestasse estupidamente poderia evitar o acionamento da alavanca e as injeções aplicadas pelo tipo de avental branco.
De fato, até onde podia raciocinar, calculava que várias sessões vinham ocorrendo sem que fossem aplicadas cargas ao dispositivo.
(...)
O’Brien foi antecipando que sabia que Winston enchia-se que questionamentos a respeito do quanto o Ministério do Amor se empenhava nos processos dos presos políticos sem entender o sentido de tudo aquilo.
Salientou que na época em que Winston estava em liberdade vivia a se perguntar sobre a mesma questão. Isso acontecia enquanto podia perceber o dinamismo da sociedade sem que compreendesse as forças que determinavam sua orientação.
Não foi por acaso que na sequência perguntou-lhe se se lembrava de suas anotações no diário, notadamente a que apontava que “compreendia como, mas não compreendia o porquê”. Comentou que suas reflexões em torno “do porquê” eram indicações de que já trazia em seu íntimo as dúvidas a respeito do próprio estado mental.
O’Brien referiu-se ao “livro de Goldstein” e sugeriu que sabia que Winston o havia lido na íntegra ou em parte... Perguntou se os textos lhe haviam revelado algo que já não soubesse. O rapaz quis saber se ele conhecia o conteúdo e O’Brien respondeu que ele mesmo havia participado da autoria... Destacou que “nenhum livro é produzido individualmente”.
Winston mostrou-se interessado e perguntou se o conteúdo do “livro proibido” era verdadeiro... O’Brien respondeu que o que estava descrito podia ser considerado verdadeiro, mas o programa apresentado era “insensato”. Emendou que para os incautos a produção até podia ser vista como reveladora de sábios ensinamentos que eram mantidos em segredo, um valioso material didático comprometido com o esclarecimento necessário à “rebelião proletária” que colocaria fim ao poder do Partido.
Depois expôs a interpretação do próprio Winston. Ele sabia que o rapaz entendeu que o livro indicava um final previsível... No fundo uma “grande bobagem”. Ele e os que se guiam pela sensatez sabiam que “os proletários nunca se revoltarão, em mil anos, ou num milhão de anos” simplesmente porque não têm poder para isso. Nem era preciso perder tempo com maiores explicações a respeito... Por fim sentenciou que as perspectivas de insurreição eram nulas e o aconselhou a desistir de vez desse tipo de alucinação.
Argumentou que simplesmente não havia como o Partido sofrer qualquer derrota. Seu domínio não teria fim e essa constatação deveria ser premissa dos pensamentos de qualquer um, principalmente dos de Winston, que devia se “reabilitar” antes de ser definitivamente eliminado.
(...)
A mensagem era essa... O “Partido é eterno!”. Mas O’Brien advertiu que falaria a respeito do “como” e do “porquê” pinçados dos registros do diário de Winston.
Comentou que estava claro que o rapaz tinha conhecimento de “como” o Partido se mantinha no poder... Perguntou a ele se podia dizer-lhe os motivos de o Partido se agarrar ao poder. Qual seria o objetivo? Por que devia manter sua constante sede de poder?
Winston se calou... O’Brien viu que ele estava lutando contra o esgotamento físico e mental, mas exigiu respostas. Notou também que ele procurava contemplar atentamente sua fisionomia agitada, e cansada, pelo fanatismo doentio.
O raciocínio do moço era lento, mas aos poucos definia algumas respostas... Assim se imaginou dizendo as obviedades afinadas aos mais convictos membros do Partido Interno, como aquele que se posicionava diante de seus olhos.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

“1984”, de George Orwell - final da sessão de interrogatórios, aplicação de tortura através do dilacerador e de injeção de solução psicotrópica; satisfação de O’Brien ao concluir que o detento já “enxergava de acordo com a conveniência dos opressores”; tempo para breve conversa e permissão para esclarecimentos de dúvidas; a respeito dos encaminhamentos que foram dados ao caso de Júlia; Grande Irmão, o imortal; dando sentido às afirmações ilógicas a respeito da “não existência”; a enigmática “Fraternidade”; a “sala 101” e a silenciosa atuação do homem do avental branco

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/12/1984-de-george-orwell-do-ministerio-do.html antes de ler esta postagem:

Winston deixou de ver os dedos de O’Brien antes mesmo que este retirasse a mão diante de seus olhos... A visão simplesmente desapareceu de sua vista. Em sua memória surgiu uma imagem que indicava que em algum momento já muito antigo havia sido um tipo diferente.
O’Brien estava satisfeito e perguntou-lhe se conseguia perceber que “é possível”. Evidentemente se referia ao fato de Winston ter conseguido enxergar cinco dedos quando lhe eram mostrados apenas quatro... O rapaz respondeu que sim ao mesmo tempo em que notava que o homem do avental branco estava quebrando uma ampola e introduzindo seu conteúdo numa seringa.
O outro ainda tinha algumas palavras a dizer... Sorriu, ajeitou os óculos e dirigiu-se diretamente a ele com uma postura que bem podia ser entendida como familiar. Quis saber se Winston se lembrava de ter escrito no diário que não se importava se ele (O’Brien) era amigo ou inimigo, já que entendia que se tratava de alguém “com quem se podia conversar”. Afirmou que a consideração tinha fundamento porque, de fato, ele gostava de conversar com Winston porque sua mente o atraía.
E disse mais... Falou que sua mente parecia-se com a dele mesmo, sendo que a diferença elementar estava no fato de o rapaz ser louco. Por fim, emendou que ele podia fazer-lhe perguntas. Que ficasse à vontade se o quisesse.
(...)
Winston quis saber se podia perguntar sobre qualquer coisa... O’Brien notou que seus olhos se fixavam no mostrador e respondeu que sim. Como que a tranquilizá-lo, disse que o dispositivo estava desligado.
Então, qual seria sua primeira pergunta? Winston quis saber a respeito de Júlia, o que tinham feito com ela? O’Brien respondeu que a moça o havia traído sem pestanejar, “imediatamente, sem reservas”. Acrescentou que conhecia poucos casos de traição como aquele.
Segundo O’Brien, o rapaz teria dificuldade para reconhecê-la... Toda rebeldia que ela fazia questão de demonstrar, “fingimento, loucura e sujeira mental”, foram destruídos eficazmente. Podia dizer que se tratou de um “caso de cartilha”, já que o processo da moça transcorrera à perfeição.
Winston ousou afirmar que só podia concluir que Júlia havia sido torturada... O’Brien não deu importância à observação e nada respondeu.
(...)
A segunda pergunta de Winston foi a respeito do Grande Irmão... Afinal, ele existia? O’Brien respondeu que “naturalmente existe; o Partido existe; o Grande Irmão é a corporificação do Partido”.
O rapaz pensou que aquela resposta nada tivesse de literal, em vez disso, tinha sentido mais metafórico... Por isso perguntou se o Grande Irmão tinha existência assim como a dele próprio. O’Brien respondeu rapidamente que ele (Winston) não mais existia.
Evidentemente isso provocou uma sensação de nulidade. Esforçou-se e pensou a respeito... Concluiu que O’Brien usava argumentos afinados com o processo a que vinha sendo submetido. Por tudo o que havia passado no Ministério do Amor, a intenção do membro do Partido Interno só podia ser a de garantir o juízo de que ele passara a ser um “não existente”. Em seu íntimo concluía que aquilo era absurdamente insensato e não passava de “jogo de palavras”.
Ao menos mantinha a capacidade de analisar a falta de lógica na afirmação “tu não existes”. Ao mesmo tempo parecia entender a “utilidade” de a pronunciarem aos seus ouvidos. Os “argumentos loucos e irrespondíveis” tinham a função de o manter arrasado.
Depois de refletir a respeito dos juízos sobre sua existência, Winston respondeu:

                   “Creio que existo. Tenho consciência de minha própria identidade. Nasci, e morrerei. Tenho braços e pernas. Ocupo um determinado ponto no espaço. Ao mesmo tempo, nenhum outro sólido pode ocupar o mesmo ponto”.

Depois dessas palavras perguntou se o Grande Irmão existia no sentido que acabara de expor. O’Brien respondeu que não tinha importância e cravou que sim, “o Grande Irmão existe”.
Winston quis saber se o líder supremo morreria em algum momento. “Lógico que não; como poderia morrer?”, foi a resposta de O’Brien. Haveria outra pergunta? O rapaz fez referência à “Fraternidade”: a associação secreta de Goldstein existia mesmo?
Em relação ao grupamento rebelde que ele e Júlia pensaram fazer parte pouco antes de serem capturados, O’Brien respondeu que era algo sobre o qual nunca saberia. Emendou que ainda que resolvessem libertá-lo após o processo, jamais saberia a resposta àquela pergunta mesmo que vivesse até a velhice. A “Fraternidade” permaneceria “enigma insolúvel em sua cabeça”.
(...)
Winston ouviu atentamente e permaneceu em silêncio por breve tempo. Restava-lhe uma pergunta que, aliás, era a primeira que gostaria de ter feito... Sua respiração tornou-se pesada enquanto pensava que O’Brien já devia saber de sua ansiedade e assunto pendente. Olhava-o e parecia perceber que ele não escondia seu desprezo e ironia.
Apesar da vacilação, conseguiu perguntar... “O que é a sala 101”? O tipo respondeu secamente que ele sabia o que havia na sala 101. Queria dizer que sua dúvida não fazia sentido. Completou dizendo que “todo mundo sabe o que há na sala 101”. Apontou para o homem de avental branco.
Essa “revelação” encerrou a sessão... Na sequência o silencioso homem do avental branco espetou a agulha no braço de Winston e injetou a solução. No mesmo instante o rapaz adormeceu profundamente.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

“1984”, de George Orwell - do Ministério do Amor saia-se “homem oco”; tratamento de choque de intensidade elevadíssima; respostas afinadas com o sugestionamento; “dois e dois podem perfeitamente ser cindo, quando necessário”

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/12/1984-de-george-orwell-ao-ingsoc-nao.html antes de ler esta postagem:

Só podia pensar que a mente de O’Brien conseguia absorver tudo o que ele pensava na maior discrição... Sua empolgação ao falar a respeito da metodologia aplicada à repressão aos presos políticos, e em especial o modo como Jones, Aaronson e Rutherford capitularam, transmitia a Winston a ideia de estar ouvindo um louco. Mas isso logo era refutado... Se havia algum louco ali, era ele mesmo.
O tipo voltou a falar mais rispidamente que o detento nem precisava perder tempo imaginando que se salvaria... É claro que podia chegar a se render, mas era certo que todos os que se envolviam em articulações contra o sistema jamais escapavam do amargo fim. Até podia ser que o Ministério do Amor decidisse poupar-lhe a vida, mas sua existência estaria sempre conectada ao aparato repressor, pois as interferências e repressões psíquicas ali introduzidas o acompanhariam enquanto vivesse.
O que O’Brien queria dizer era que enquanto Winston estivesse em suas mãos passaria por operações de sufocamento da personalidade... Mesmo que vivesse mais mil anos jamais se recuperaria, e isso significava basicamente que jamais voltaria a “sentir sensações humanas comuns”. Ele se tornaria um “homem oco” e para melhor explicar, emendou:

                   “Tudo estará morto dentro de ti. Nunca mais serás capaz de amor, ou amizade, ou alegria de viver, riso, curiosidade, coragem ou integridade. Serás oco. Havemos de te espremer, te deixar vazio, e então saberemos como te encher”.

(...)
Depois dessas palavras, voltou-se ao tipo do avental branco e transmitiu-lhe uma ordem. Sob a cabeça de Winston foi colocado um pesado aparelho enquanto sentava-se ao seu lado. Mandou que o tipo posicionasse o mostrador do aparelho em três mil... Logo após tocaram as têmporas do rapaz com dois terminais eletrônicos em cujas pontas havia pequenas almofadas umedecidas.
No mesmo instante, Winston perdeu quase que totalmente os sentidos... O’Brien pegou-lhe a mão garantindo que a intervenção não causaria dor. Num tom quase bondoso pediu-lhe que o olhasse bem nos olhos. A percepção do detento era a de que ocorria uma explosão sem que se pudesse ouvir qualquer barulho. Em vez disso, um “clarão ofuscante” o impactou pavorosamente.
O rapaz não sentia dores... De repente percebeu-se deitado de costas como se tivesse sido lançado no momento da estranha explosão. Pelo visto o golpe o atirara para o alto, havia caído numa posição de prostrado como consequência do golpe a que fora submetido. Não podia ter certeza do que havia se processado com seu físico, mas algo lhe dizia que sua mente havia sido afetada drasticamente.
(...)
A visão estava embaçada... Aos poucos voltou-lhe o foco e então começou a se lembrar “de quem era, onde estava, e reconheceu o rosto que o fitava de perto”. Todavia prevalecia a sensação de vazio, como se houvessem extraído um naco de seu cérebro.
O’Brien disse que aquela sensação não tardaria a passar... Na sequência pediu que o olhasse fixamente nos olhos e perguntou-lhe sobre qual país travava guerra com a Oceania... Por um instante Winston manteve-se em silêncio e a pensar que sabia o que era a Oceania e que era cidadão desse país. Lembrou-se de Lestásia e Eurásia, mas não sabia dizer se havia guerra e contra quem. Por isso respondeu que não se lembrava.
O outro afirmou que a guerra era contra a Lestásia e quis saber se ele se lembrava... Winston disse que sim e na sequência ouviu que a guerra da Oceania sempre fora contra a Lestásia. Sempre! Desde o seu nascimento e desde muito antes, no começo da história... Uma guerra sem qualquer interrupção.
Mais uma vez O’Brien perguntou se ele se lembrava dessas informações... Sim, Winston respondeu que se lembrava. Depois ouviu referências a respeito de uma “lenda” em torno de três homens que haviam sido “condenados à morte por traição”. O’Brien salientou que ele imaginou ter visto certo documento que provava a inocência dos sentenciados. A seguir destacou que tal registro jamais existiu, deixando claro que o papel não passava de invenção do próprio Winston. A pergunta era em torno de sua lembrança do momento em que havia “inventado tal prova”.
Sim, Winston respondeu que se lembrava o ocorridos de onze anos antes. Depois o outro falou que havia lhe mostrado os dedos da mão e que o rapaz afirmara ter visto que eram cinco. Ele se lembrava perfeitamente... Então O’Brien levantou novamente a mão esquerda, anunciou que lhe mostrava cinco dedos, mas na verdade escondia o polegar. Quis saber se Winston via cinco dedos... Sim, ele confirmou.
O caso é que, de fato, foi isso o que enxergou “sem deformidade”. Todavia, aos poucos, passou a sentir um abalo interior e percebeu-se amedrontado e espantado. Apesar disso podia constatar que o sugestionamento ao qual vinha sendo submetido parecia produzir resultado.
Era como se a área que havia se esvaziado em seu cérebro fosse preenchida pelas “verdades” incutidas por O’Brien. Pelo menos a partir do impacto da questão que lhe era colocada notava que “dois e dois podiam perfeitamente ser cinco, se fosse necessário”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

“1984”, de George Orwell - ao IngSoc não bastava que o processado passasse a se comportar com falsa obediência ou desprezível submissão; que não se alimentasse qualquer medíocre esperança, os defeitos das engrenagens devem ser corrigidos e eliminados; da ineficácia dos antigos sistemas de repressão que encaminhavam os sentenciados à morte sem que eles tivessem abandonado as nocivas ideias; os “invólucros de homens” que se tornaram Jones, Aaronson e Rutherford; uma figura intelectual e fisicamente superior aos criminosos políticos

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/12/1984-de-george-orwell-obrien-esclarece.html antes de ler esta postagem:

A mensagem ao Winston era direta... Nas mãos de O’Brien e da equipe de repressão instalada no Ministério do Amor não havia qualquer possibilidade de ser lembrado no futuro. Seria “eliminado da história, transformado em gás solto na atmosfera”. Nenhum documento o citaria... Nada de lembrança! Em síntese, seria aniquilado tanto do passado quanto futuro. Simplesmente não teria existido.
De sua parte, começou a pensar a respeito da tortura que vinha sofrendo e sua real necessidade... Por tudo o que o outro estava dizendo, aquele “trabalho científico” podia não passar de perda de tempo.
O’Brien parecia ler seus pensamentos e colocou o rosto diante de seus olhos. Na sequência disse que sabia o que ele devia estar pensando: Já que no final das contas “deixaria de existir” pouco importava o que dissesse ou fizesse. Não era isso mesmo o que estava pensando? Winston fez que sim.
O’Brien sorriu e disse que o rapaz representava uma deficiência na engrenagem, “uma nódoa que deve ser limpa”. Mas precisava entender que o sistema estava muito a frente dos opressores de outras épocas. Ao IngSoc não bastava a “obediência negativa ou a desprezível submissão”.
Nesse sentido esperava-se que sua rendição se desse apenas por “livre e espontânea vontade”.
(...)
Havia mais a ser entendido pelo detento. A resistência dos que passavam pelo processo não era o motivo de sua destruição... Aliás, enquanto se percebesse relutância e aversão aos métodos e orientações doutrinárias, o aparelho repressivo não avançaria na eliminação física. O objetivo era a conversão da mente e incutir-lhe nova forma.
Nesse processo eliminariam “todo mal e alucinação”. Desse modo, o outrora rebelde restauraria a fidelidade à ideologia. Evidentemente isso devia ocorrer “de corpo e alma” e não apenas por aparência. O’Brien deixou claro ao Winston que, antes de ser executado, teria de voltar aos quadros partidários. Ele que não pensasse que se admitiria o mais secreto “pensamento equivocado”. No fundo, o processo todo buscava eliminar antes de tudo as aberrações mentais e isso valia até o derradeiro momento... Os agentes ficavam atentos até o instante mesmo em que o condenado era sentenciado. Não se admitia qualquer desvio.
Todo esse rigor em relação aos “pensamentos errôneos” se devia à apuração dos expurgos e condenações promovidas no passado. Winston devia saber! Inúmeros foram os casos dos hereges que seguiram publicamente para a grande fogueira vociferando as máximas de sua heresia... De peito aberto, se enchendo de glória. E o mesmo ocorria entre os condenados russos que se encaminharam para a morte tendo os princípios sediciosos ainda evidentes em sua mente.
Novamente O’Brien fazia questão de salientar a diferença entre a eficiência da repressão promovida pelo Partido e aquelas do passado... O Partido, ele disse, tornava perfeita a mente do indivíduo antes de executá-lo. E para mais esclarecer essa questão, enfatizou que:

                   “A ordem dos antigos despotismos era ‘tu não farás’. Os totalitários mudaram para ‘tu farás’. Nossa ordem é ‘tu és’. Ninguém, dos que trazemos a este lugar, se volta contra nós. Todo mundo é levado”.

(...)
Depois O’Brien voltou a falar sobre os casos de Jones, Aaronson e Rutherford... Para a decepção de Winston, que os via como inocentes, os “miseráveis traidores” se comportaram exemplarmente após o tratamento ao qual foram submetidos.
Ele próprio havia participado dos interrogatórios e pôde constatar a transformação pela qual passaram... Aos poucos admitiram suas falhas e logo expuseram fraquezas e vergonha diante da majestade do Partido: gemeram, choraram, rolaram pelo chão... E não era porque estavam sofrendo com dores ou porque estivessem amedrontados! Admitiram sinceramente sua culpa e ansiavam a penitência.
É claro que Winston sabia... Os três foram eliminados. O que ele não podia imaginar é que quando isso aconteceu, não passavam de “invólucros de homens” que sofriam a mágoa por terem se tornado traidores... Do fundo de seus corações manifestavam o amor que devotavam ao Grande Irmão. Sentiam-se puros de pensamento e por isso pediam que os fuzilassem o quanto antes, pois desejavam morrer na condição de reabilitados.
(...)
Enquanto falava, O’Brien exibia uma expressão entusiasmada e “quase sonhadora”. Winston imaginou que aquilo não podia ser encenação. O tipo acreditava mesmo em tudo o que estava lhe dizendo.
De sua parte, lamentava não possuir a mesma “estatura intelectual”. O pior era constatar que em todos os aspectos que pretendesse comparar se perceberia inferior a ele. E mais... Qualquer pensamento que cogitasse em seu mais profundo silêncio era antecipadamente descoberto, “examinado e repelido” pelo outro.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

“1984”, de George Orwell - O’Brien esclarece o que o Partido espera ao final do processo no Ministério do Amor; erros da inquisição e dos totalitaristas russos nas execuções de heréticos e subversivos políticos; necessidade de confissões “verdadeiras”, eliminação de mártires e de referências rebeldes na história

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/12/1984-de-george-orwell-avaliacao-clinica.html antes de ler esta postagem:

O’Brien começou a fazer uma série de perguntas que nada tinham a ver com a problematização da “liberdade de se escrever (ou dizer) que dois e dois são quatro”. Perguntou ao Winston se ele tinha ideia de há quanto tempo estava no Ministério do Amor e o que pensava que o Partido queria quando transferia as pessoas para aquelas instalações...
Vimos que Winston não tinha a menor ideia de há quanto tempo vinha passando por interrogatórios marcados por torturas psíquica e física. Em relação às motivações do regime ao encaminhar pessoas ao Ministério, disse que o Partido pretendia coletar confissões a respeito dos crimes que elas cometiam. O’Brien observou que não era por este motivo e pediu a ele que refletisse sobre outra possível causa.
Depois de algum tempo, o rapaz respondeu que podia ser para punir os infratores da ordem. Não! Ouviu a exclamação ríspida e entusiasmada... Que ficasse sabendo que não se tratava apenas de obtenção de confissões e punições.
(...)
O’Brien parecia empolgado ao falar a respeito do processo que ele entendia como perfeito e bem engendrado pelo Partido. Explicou que tipos como Winston eram levados àquele lugar para que fossem curados da loucura. Emendou que ninguém que chegava às instalações do Ministério do Amor depois de capturado saía sem passar com êxito pelo processo de cura.
Era preciso entender que o Partido não estava interessado “nos estúpidos crimes” como os que ele havia cometido. O “ato físico” de nada valia! Ao regime interessava os pensamentos dos que cometiam a imprudência da sedição. No final das contas, a intenção era destruir os inimigos do IngSoc, mas, mais que isso, buscava-se modificá-los... Será que Winston podia entender isso?
Foi o que O’Brien perguntou enquanto mantinha o rosto próximo ao do rapaz... Este o ouvia e analisava a feiura do poderoso membro do Partido Interno. Reparava seu fanatismo em relação à ideologia do IngSoc. A convicção exacerbada o fazia sentir-se apequenado a ponto de desejar apenas desaparecer no parco acolchoado da cama. O que poderia responder? Seu pensamento focava somente a possibilidade de a alavanca ser acionada novamente a qualquer momento.
(...)
Mas aconteceu que O’Brien virou-se para o lado oposto e começou perambular pela sala. Depois de alguns passos voltou a falar a respeito do programa que a repressão desenvolvia no Ministério do Amor. Disse que ali não ocorriam martírios... E para se fazer entender, passou a destacar o conhecimento acerca da Idade Média, algo ao qual sabia que Winston tivera acesso.
Salientou que as inúmeras perseguições religiosas promovidas pela inquisição haviam sido um fracasso, já que pretendiam pôr fim às heresias e no entanto elas acabaram se perpetuando... Os tribunais enviavam hereges às fogueiras e isso parecia funcionar como propaganda, pois milhares de outros surgiam na sequência. Por que isso ocorria?
A pergunta de O’Brien era retórica e logo ele se pôs a explicar que as execuções ordenadas pela inquisição eram abertas. Além disso, os condenados eram eliminados antes que se arrependessem... A rigor, dizia-se que eram executados exatamente porque não haviam “confessado tudo” ou porque não manifestavam arrependimentos. Acabavam mortos por não renegarem as heresias que haviam abraçado. Isso gerava uma reação contrária à que se esperava, já que para muitos o condenado devia ser exaltado enquanto os inquisidores se tornavam motivo de vergonha.
(...)
O’Brien falou ainda a respeito das perseguições promovidas por nazistas e russos durante o século XX. Em relação a esses últimos, garantiu que eram mais cruéis do que a inquisição e que haviam percebido a importância de não permitir que os executados se tornassem mártires. Nesse sentido, antes do processo, tratavam de propagar notas difamatórias que destruíam sua dignidade.
A tortura e o isolamento impostos aos réus completavam a repressão russa. Reduzidos a quase nada, confessavam tudo o que os inquiridores desejavam... Admitiam terem errado e conforme entregavam nomes de outros sediciosos caíam em vergonhoso pranto.
O problema entre os russos é que os crimes contra o regime voltavam a ocorrer e quando menos se esperava os nomes de antigos condenados eram lembrados como mártires. Isso significa que a degradação a que haviam sido submetidos se apagava da memória coletiva.
Neste ponto O’Brien quis explicar em quê os agentes russos de repressão falhavam e disse que seu erro consistia em não aprofundar a confissão, que era sempre falsa e condicionada ao suplício exacerbado.
Emendou que o Partido não cometia o mesmo erro, pois cuidava para que as confissões proferidas pelos acusados fossem sempre verdadeiras. E que não se duvidasse disso, pois, no limite, o método desenvolvido possibilitava tornar verdadeira toda e qualquer confissão... A vantagem estava no fato de impedirem que “os mortos se levantassem contra o regime”.
A principal lição que transmitia para Winston era a respeito da inutilidade de imaginar que no futuro alguém pretenderia reabilitar seu nome. Ninguém jamais ouviria falar dele! Seria “eliminado da história, transformado em gás solto na estratosfera”. Ele devia saber disso... O Partido cuidava de apagar os registros indesejáveis, anulando qualquer lembrança.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas