quarta-feira, 19 de maio de 2021

“Rei do Congo – A mentira que virou folclore”, de José Ramos Tinhorão – ainda a resposta de D. João III a D. Afonso do Congo e sua sugestão para conter a captura de fidalgos e familiares do rei pelo tráfico de escravos; formação de consciência identitária “superior” em relação aos demais africanos escravizados em Portugal; sobre as origens dos cultos em honra a Nossa Senhora do Rosário; relacionando o rosário da santa ao do oracular Ifá; relacionando São Jorge a Ogum; encantando-se com a representação do rei Baltazar, negro a contemplar o Menino Deus na capela dos Reis Magos na Igreja de São Domingos

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/05/rei-do-congo-mentira-que-virou-folclore.html antes de ler esta postagem:

Em sua carta, D. João III também respondeu à indignação de D. Afonso do Congo em relação à captura de parentes, fidalgos e a gente de seu reino por mercadores inescrupulosos que atuavam graças ao favorecimento de feitores e de “oficiais” que deviam fazer cumprir os acordos entre Portugal e o Congo.
Como se pode observar, o rei português apresentou uma “solução” para as “infrações” que tanto afligiam o aliado africano:

                   “E quanto aos que se vendem em essa cidade (a capital do Congo), para se saber se são naturais ou de fora, para isto deve haver na feira um lugar deputado (determinado) onde se vendessem, em o qual lugar estariam dois homens vossos criados que conhecessem os ditos escravos e assim se vendessem pelas casas, que se não comprassem sem os ditos dois homens serem presentes”.

Também o fragmento acima foi recolhido pelo autor desde “As cartas do ‘rei do Congo’ D. Afonso”, cujos documentos foram compilados, conforme evidenciado em postagens anteriores, por Antonio Luís Ferronha.
(...)
Fica claro que desde o começo do século XVI, entre os escravos oriundos da África que eram enviados a Portugal havia congoleses cristianizados.
Entre os portugueses, e mesmo entre os estrangeiros de passagem pelo país, pouca atenção se dava às diferenças entre a massa escravizada, que era vista genericamente como “negros da África”... O livro destaca que entre os trazidos do Congo começou a se formar uma consciência que os diferenciava em relação aos demais africanos, sabidamente “islamizados ou pagãos”.
O caso é que, de certa forma, passaram a se sentir “superiores em relação aos outros escravos” por se reconhecerem cristãos oriundos do “Congo cristão”, um “reino irmão” de Portugal.
Durante a segunda metade do século, os escravos congoleses mostraram-se mais altivos em relação à sua identidade, e os portugueses reconheceram cada vez mais sua “condição original africana de cristãos livres” e sua devoção à Nossa Senhora do Rosário, a “santa de Lisboa”. Assim, aceitaram com certa naturalidade o título de “Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos” conferido a Ela pelos congoleses e seus descendentes.
(...)
Especificamente a respeito da devoção à Nossa Senhora do Rosário, o livro destaca que ela começou na Alemanha durante o século XIII por iniciativa de São Domingos. A tradição foi “relançada em Portugal” no ano de 1484 e logo tornou-se popular com as manifestações religiosas e preces dirigidas à Virgem por ocasião de um “flagelo de peste”.

(...)

No começo, os padres que estiveram em missão no Congo insistiam em converter os africanos através de ensinamentos complexos e relacionados aos simbolismos e sacramentos católicos, catequese e celebrações de missas sempre de difícil entendimento para eles... Também por isso os nativos resistiam a abandonar “os elementos básicos de sua cultura original”.
Em Portugal, quando os negros do Congo começaram a chegar a partir dos anos 1520, já havia grande contingente de africanos adeptos do islamismo escravizados. O livro dá conta de que, “apenas os da cota da Coroa”, somavam cerca de 4500...
Como vimos anteriormente, “os do Congo” tornaram-se conhecidos por sua devoção ao Rosário tão logo sentiram-se atraídos por “imagens coincidentes com suas crenças reveladas a seus olhos no interior da Igreja de São Domingos de Lisboa”. E isso ocorreu conforme se defrontaram “com a imagem de Nossa Senhora do Rosário a exibir seu rosário de contas” na Igreja de São Domingos. Para o autor, eles compararam o rosário da santa:

                   “ao de seu oracular Ifá: o porta-voz dos mistérios, consultado através de um código de leitura de como caíam as nozes da árvore sagrada ‘okpê’, quando atiradas ao acaso num golpe de mão por um sacerdote africano”.

Outra imagem que certamente chamou a atenção dos congoleses cristianizados transferidos para Portugal foi a de São Jorge, o santo cavaleiro que, paramentado com “sua armadura de metal”, e que golpeia mortalmente o “dragão do mal (já malferido por sua lança)”, foi associado por eles à “figura de Ogum, divindade africana que ensinou os homens a forjar o ferro”.
(...)
Como podemos notar, esses símbolos em muito aproximaram os congoleses cristianizados da religiosidade vivenciada pelos lusitanos... O livro cita ainda outra significativa identificação.
Também na Igreja de São Domingos, eles conheceram o “retábulo da Capela dos Reis Magos, mandado pintar pelo rei D. Dinis na virada do século XIII para o XIV”. Na pintura que apresentava o “nascimento de Cristo” e a contemplação dos reis magos, encantaram-se com “a figura do rei negro Baltazar” a contemplar “o Menino Deus deitado nas palhas”.
Leia: Rei do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas