sexta-feira, 29 de novembro de 2019

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – Muyart, defensor da tortura como forma eficiente de se obter confissões; petição de Dupaty agitou a opinião pública e provocou oposição declarada do tribunal parisiense; Condorcet e sua publicação a favor de Dupaty; decreto real abolindo a tortura anterior às execuções; simpatia, como reflexo do amor divino e mentalidade de valorização dos corpos; ideias de Benjamin Rush contrárias aos castigos públicos

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/11/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_27.html antes de ler esta postagem:

Em 1780, Muyart havia escrito o seu tratado sobre a legislação referente às punições judiciais aplicadas na França. Em postagens anteriores, vimos que ele considerava válidas as confissões firmadas após sessões de tortura. Portanto se colocava contra a corrente de advogados e pensadores reformadores, todavia evitava o debate direto ao mesmo tempo que afirmava que seus oponentes eram “polemistas”, e garantia que “a força do passado” estava ao seu lado.
(...)
De tal modo a petição de Dupaty inflamou os ânimos dos que já se sensibilizavam com os sofrimentos dos acusados injustamente que logo a opinião pública colocou-se declaradamente a favor dos processados e contra o sistema judiciário...
Isso alarmou o “Parlament de Paris”, que decidiu queimar publicamente o texto. O tribunal questionou o gênero textual adotado no documento (o estilo romanesco) e contra-atacou afirmando que a petição transmitia a ideia de que o advogado assumia a condição de “porta-voz” de toda nação e que, em nome dela, formulava os juízos catastróficos... É como se toda humanidade fizesse parte “de uma terra desgrenhada”, lhe mostrasse “as feridas” e se colocasse ao seu lado “tremendo e estendendo-lhe as mãos”.
Apesar dessa ofensiva, não houve como conter o avanço das ideias reformadoras... O Marquês de Condorcet (Jean Caritat), que viria a se tornar “o defensor mais coerente dos direitos humanos” ao tempo da Revolução, redigiu panfletos nos quais defendia Dupaty (fins de 1786). De modo simplificado, lançou novos ataques ao modo como as autoridades jurídicas desprezavam o ser humano e ao modo como violavam a “lei natural”. Como se sabe, dois anos depois o próprio rei Luís XVI tomou atitudes mais afinadas com as reivindicações e aboliu (provisoriamente) “a tortura antes da execução para obter nomes de cúmplices”. O livro cita trechos do decreto real e suas providências:

                   “reafirmar a inocência (...) remover do castigo qualquer excesso de severidade (...e) punir os malfeitores com toda a moderação que a humanidade exige”.

A campanha cresceu de tal forma que, em 1789, quando se vislumbrava a reunião dos Estados Gerais, “a correção dos abusos no código criminal” tornou-se uma das questões mais citadas nas “listas de queixas” propostas para a assembleia.
(...)
“A Invenção dos Direitos Humanos” não nos deixa perder de vista que toda polêmica em torno da tortura judicial e das demandas por uma reforma nos códigos se relacionam à empatia pelos sofredores e pelos “novos significados atribuídos ao corpo”... Tanto os ossos quebrados de Calas quanto a gangrena de Lardoise (aquele acusado defendido por Dupaty) provocaram a inquietação nas mentes que exigiam dignidade no trato dos corpos.
O breve panfleto de Benjamin Rush (1787) já apontava “os defeitos do castigo público”, demonstrando que tal procedimento não estava de acordo com as noções de indivíduo autônomo e solidário. Rush era médico e até entendia a sanha dos magistrados tradicionais pela aplicação de castigos aos condenados, provocando-lhes dores corporais. Mas de sua parte preferia punições mais relacionadas a “trabalho, vigilância, solidão e silêncio”, pois isso atendia às prerrogativas “da individualidade e potencial utilidade do criminoso”.
Evidentemente Rush era dos que se colocavam contrários aos castigos em público, pois isso destruía a simpatia (ou empatia), algo tão precioso e que ele considerava “a vice-regente da benevolência em nosso mundo”.
A “simpatia” lembra que temos de reconhecer que os demais possuem interioridade e direitos que devem ser respeitados. A preocupação de Rush indica que essa percepção vinha fundamentando uma nova moralidade e sinalizava “a centelha do divino” na vida e relações humanas. Não por acaso, o doutor relacionava a sensibilidade ao senso de justiça, um “reflexo condicionado para o bem moral”. Assim, não podia aceitar os castigos públicos proporcionados pela Lei, pois eles travavam a simpatia, o “amor universal” e a percepção de que também os criminosos possuem “corpos e almas semelhantes” aos nossos.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – de críticas de Brissot e medidas adotadas por Luís XVI; fragmentos de Joseph-Michel-Antoine Servan em defesa da reforma penal; sobre a Sociedade dos Amigos dos Negros e a “Bibliotèque Philosophique du Législateur, du Politique et du Juriconsulte”, de Brissot; metodologia dos advogados nas petições em que se liam depoimentos de condenados na primeira pessoa; o exemplo de Charles-Marguerite Dupaty, “voz aos supliciados”, apelação aos juízes e súplica ao rei

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/11/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_25.html antes de ler esta postagem:

O texto de Brissot foi considerado agressivo pelos críticos da reforma da lei penal. O governo francês temia radicalismos e por isso deu ordens para que não mais se imprimisse o ensaio premiado em 1780 pela academia de Châlons-sur-Marne... O livro traz um fragmento do autor:

                   “Esses direitos sagrados que o homem recebeu da natureza, que a sociedade viola tão frequentemente com o seu aparato judicial, ainda requerem a supressão de muitos de nossos castigos mutiladores e a suavização daqueles que devemos preservar. É inconcebível que uma nação gentil (douce), vivendo num clima temperado sob um governo moderado, possa combinar um caráter amável e costumes pacíficos com a atrocidade de canibais. Pois os nossos castigos judiciais exalam apenas sangue e morte, e só tendem a inspirar fúria e desespero no coração do acusado”.

Obviamente o governo francês não se sentiu confortável com a referência adotada por Brissot, que o comparou aos canibais... Mas o final do século XVIII prosseguiu marcado pela defesa da reforma penal e pelos ataques contra “a barbárie da tortura judicial e o castigo cruel”, que haviam se tornado muito comuns. Os debates públicos e as publicações apresentaram tantos protestos que o rei Luís XVI acabou abolindo a tortura como instrumento de obtenção de confissões de culpa.
Joseph-Michel-Antoine Servan, histórico defensor das mudanças, foi um dos que aplaudiram a decisão do monarca. O advogado manifestou-se (1781) nesse sentido salientando que: “essa infame tortura que por tantos séculos usurpou o templo da própria justiça e o transformou numa escola de sofrimento, onde os carrascos professavam o refinamento da dor”... Para ele, nem mesmo entre os “selvagens” poderia haver quem defendesse a tortura judicial, algo só comparável a um “monstro absurdo indigno”.
(...)
Brissot era jovem e apesar de sua pouca experiência no campo do Direito, envolveu-se nos assuntos e tornou-se ativista político. Entre 1782 e 1785 escreveu dez volumes de sua “Bibliotèque Philosophique du Législateur, du Politique et du Juriconsulte”... A obra, que continha textos da autoria de outros defensores da reforma, foi impressa na Suíça e somente através do contrabando é que chegou à França.
Definitivamente, ele relacionava a temática da tortura à questão dos “direitos humanos”. Indignado, levantava a questão sobre a importância de “defender os direitos ultrajados da humanidade”... Importava, neste caso, a pouca idade dos que os defendem? Brissot fundou, em 1788, a Sociedade dos Amigos dos Negros, pioneira entre os franceses na defesa da abolição dos escravos. Isso nos leva a concluir que a luta pela reforma judicial se integrava definitivamente à “defesa dos direitos humanos”.
Brissot e os que escreviam petições na defesa dos injustamente acusados teciam severas críticas ao “sistema legal como um todo”, e não era incomum os advogados redigirem textos em primeira pessoa, dando voz aos seus clientes, sujeitos de experiências dramáticas... Faziam isso e, através de “narrativas romanescas melodramáticas”, sensibilizavam a opinião pública ao mesmo tempo em que procuravam legitimar as teses que defendiam.
(...)
Charles-Marguerite Dupaty, advogado em Bordeaux e residente na capital francesa, foi um dos muitos correspondentes de Brissot. Dupaty destacou-se por sua intervenção como as anteriormente citadas. O livro esclarece que ele assinou petições em nome de três processados por “roubo agravado” e que acabaram condenados ao suplício da roda.
Em sua primeira petição (1786), Dupaty atacou o processo desencadeado e forneceu detalhes do sofrimento de seus clientes na prisão. Fez isso “dando voz” aos condenados com a narrativa em primeira pessoa. Em trechos selecionados por “A Invenção dos Direitos Humanos” lemos: “E eu, Bradier (um dos presos), então disse, metade do meu corpo ficou inchado por seis meses”; “E eu, Lardoise (outro), graças a Deus fui capaz de resistir (referindo-se a uma epidemia que havia atingido a prisão), entretanto, à pressão de meus ferros”... Mais adiante, Dupaty assinalava que podia “muito bem acreditar” que o condenado havia suportado “trinta meses nos ferros!”... E voltando “à fala” de Lardoise, “machucou tanto a minha perna que ela gangrenou; quase tiveram de amputá-la”. Por fim, os registros dão conta de que Dupaty não conseguiu segurar as lágrimas diante dos clientes.
O advogado passou a dirigir-se aos juízes do caso e no final ao próprio rei:

                   “Juízes de Chaumont, Magistrados, Criminalistas, vós o escutais? (...) Eis o grito da razão, da verdade, da justiça e da Lei”.

                   Ao monarca implora que ele “escute o sangue dos inocentes”: “digne-se da altura de seu trono, digne-se a dar uma olhada em todas as ciladas sangrentas de sua legislação criminal, onde perecemos, onde todos os dias inocentes perecem”.

Por último, ainda dirigindo-se a Luís XVI, a petição em tom de súplica pede que o rei “reforme a legislação criminal de acordo com a razão e a humanidade”.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – ainda o debate entre as ideias de Beccaria e a tradicional defesa da tortura judicial; disseminação das traduções do tratado pela Europa e América; os adversários associavam o texto ao caso Calas; fragmentos de Linguet acusando uma “conspiração iluminista” contra o direito tradicional; ideias expostas na “Enciclopédia” de Diderot; premiações e incentivos aos textos em defesa da reforma e acirramento da crítica

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As traduções do texto de Beccaria se multiplicaram pela Europa... Em 1766 a Igreja Católica o incluiu no Index, mesmo assim, até 1800 quase 30 edições italianas (várias delas com notas apócrifas e falsas) e outras 9 francesas foram publicadas. Um ano após a condenação papal do tratado, os ingleses conheceram a publicação traduzida de Beccaria, e logo a seguir apareceram novas edições em Glasgow, Dublin, Edimburgo. Charleston. Com a publicação na Filadélfia, também a América passou a debater as ideias de reforma do Direito... Surgiram edições traduzidas também na Alemanha, Polônia, Holanda e Espanha.
Os tempos eram mesmo de sensibilização em torno dos sofrimentos dos processados judicialmente. Em Londres, o tradutor da obra de Beccaria assinalava que:

                   “as leis penais (...) ainda são tão imperfeitas, e se fazem acompanhar por tantas circunstâncias desnecessárias de crueldade em todas as nações, que uma tentativa de reduzi-las ao padrão da razão deve interessar a toda humanidade”.
(...)
Os inimigos do movimento iluminista passaram a implicar com a disseminação do texto de Beccaria e afirmaram que só podia haver uma conspiração para abalar o direito penal vigente nas sociedades... O fato é que após toda polêmica em torno do caso Calas houve intensa mobilização para se definir a reforma das leis judiciárias. Criticava-se o fato de Beccaria, um italiano “ignoto” e de ”conhecimento apenas superficial da lei”, exercer tanta influência entre os pensadores do Direito.
Simon-Nicolas-Henri Linguet, era dos críticos mais ferrenhos. Em 1779, o jornalista anunciou que ouvira de certa testemunha que:

                   “Pouco depois do caso Calas, os enciclopedistas, armados com os tormentos da vítima e aproveitando circunstâncias propícias, embora sem se comprometer diretamente, como é o seu costume, escreveram ao reverendo padre Barnabite em Milão, que é seu banqueiro italiano e um famoso matemático. Contaram-lhe que era o momento de desencadear uma catilinária contra o rigor dos castigos e contra a intolerância; que a filosofia italiana devia fornecer a artilharia, e eles fariam uso dela secretamente em Paris”.

Para Linguet, o tratado de Beccaria não passava de petição para favorecer Calas e outros que se tornassem vítimas dos processos entendidos como injustos. Pode-se dizer que a obra do italiano influenciou a campanha que se desencadeou contra a tortura judicial, todavia os resultados não foram imediatos e não foi de um momento para outro que os simpatizantes da causa se uniram em torno de suas ideias.
O livro cita dois artigos de 1765 publicados na “Enciclopédia” organizada por Diderot para exemplificar o anteriormente exposto. O texto de Antoine-Gaspard Boucher d’Argis trata da “jurisprudência da tortura” e faz referências a “tormentos violentos” aplicados em processados sem proferir qualquer julgamento a respeito da questão... O outro artigo, de Louis de Jaucourt (comumente chamado Chevalier de Jacourt), considera a tortura um expediente próprio do processo penal, mas condena a sua prática e, para isso, recorre a termos e argumentos que vão desde a “voz da humanidade” até a ineficácia do expediente em se comprovar evidências de culpa ou inocência.
(...)
O final da década de 1760 conheceu a publicação de outros cinco livros em defesa da reforma judiciária... Durante a década de 1780 foram 39 publicações! O período intermediário foi marcado por intensa campanha pelo fim das torturas e pela “moderação dos castigos”. Em países como França, Itália e Suíça ofereciam-se premiações para os melhores textos em defesa da reforma.
Como podemos depreender, na França o debate era dos mais ferrenhos e, para evitar maiores transtornos devido às críticas mais exaltadas, o governo tomou providências para impedir que a academia de Châlons-sur-Marne continuasse a “imprimir cópias do ensaio vencedor de 1780, de autoria de Jacques-Pierre Brissot”.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“Rei do Congo – A mentira que virou folclore”, de José Ramos Tinhorão – disputa pelas Canárias e sua posição estratégica; Fernando I, o Gentil, concessão de benefícios à burguesia; sobre a bolsa de seguros de 1380; revolução de Avis, conquista de Ceuta e dados acerca da frota lusitana utilizada no episódio em “De Bello Septensi” e “Anales de La Corona de Aragón”

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As expedições às Canárias foram de fundamental importância para o projeto de expansão marítima portuguesa pelo Atlântico. A localização do arquipélago, “a 115 quilômetros do mar fronteiro ao Marrocos, e a 215 quilômetros do Cabo Bojador sobre a costa da África, na direção sul”, era estratégica.
Após a segunda viagem comandada por Pezagno (1341), o rei D. Afonso IV entrou em negociação com o papa Clemente VI (1345) para que a Igreja reconhecesse a tutela portuguesa sobre as ilhas. Essa iniciativa se justificava pelo “achamento e conquista” que vinham sendo contestados pela Espanha (A Igreja de Roma reconhecia a primazia de Castela na questão). Para Portugal era imprescindível a garantia da posição avançada porque suas atividades de navegação pelo oceano em direção à costa africana eram promissoras de “novos achamentos”.
A rivalidade com a Espanha chegou a tal ponto que Lisboa passou por um período de ocupação espanhola, e isso exigiu muitas conversações até que os dois países chegassem a um tratado de paz. Em 1373, D. Fernando I (chamado “o Gentil”) promulgou várias leis que davam sinais de que Portugal prosseguiria no projeto de se tornar “grande potência-comercial”. Uma de suas iniciativas foi a criação do posto de “capitão-mor para assuntos marítimos”.
No começo do século XV ocorreu uma série de ações espanholas em parceria com a Santa Sé nas Canárias... Aos poucos se confirmou a posse castelhana sobre as ilhas, sobretudo em reconhecimento aos serviços prestados no combate a nativos e sarracenos. Os interesses portugueses não se arrefeceram e no correr do século as embarcações lusitanas atingiram os arquipélagos da Madeira (1418) e dos Açores (1445).
(...)
É praticamente impossível tratar das iniciativas políticas de D. Fernando I sem fazer referências a muitos outros benefícios concedidos aos homens envolvidos na construção de embarcações e no comércio ultramarino. É claro que os favorecidos eram basicamente a “burguesia comercial dos portos”. Entre os benefícios e incentivos, o livro destaca:

                   “permissão de corte de madeira em montes reais sem pagamento de impostos; aumento de tonelagem das embarcações; dispensa do pagamento de taxas de importação de materiais de interesse para a indústria naval; dispensa de impostos na compra de navios do estrangeiro e do pagamento sobre mercadorias na viagem inaugural de navio português ao exterior (com pagamento apenas de metade dos direitos sobre toda a carga que trouxessem do estrangeiro)”.

Em 1380, o monarca confirmou mais uma vez o interesse de apoiar os aliados do governo no projeto de expansão marítima e comercial do país ao aprovar a criação de uma bolsa de seguros que socorria os importantes grupos de armadores de Lisboa e do Porto. De modo simplificado, a seguradora recolhia 2% de tudo o que o comércio naval auferia... O fundo se destinava à renovação da frota nos casos de atos de pirataria, sinistros naturais ou guerra.
Não é difícil entender a movimentação da burguesia na época da morte de D. Fernando I, em 22 de outubro de 1383... Como sabemos o rei não tinha herdeiro e a antiga nobreza antecipou-se no apoio à unidade com Castela... Vimos que durante a revolução de Avis (que ocorreu entre 1383 e 1385 e que deve ser entendida como uma revolução burguesa) os comerciantes se engajaram militarmente em torno da figura do Mestre de Avis, que definitivamente era quem tinha condições de dar prosseguimento à parceria iniciada durante a dinastia anterior.
(...)
Depois do triunfo da revolução burguesa, o governo português tratou de negociar a paz com Castela. Este processo se concretizou em 1411 e partir de então os portugueses voltaram sua atenção para o Marrocos dominado pelos muçulmanos... Para lá suas embarcações foram dirigidas. A burguesia se encarregou de armá-las. Não faltaram nobres interessados em partir para campos de batalha com a intenção de serem armados cavaleiros.
Como se sabe, a conquista de Ceuta (1415) foi muito bem-sucedida graças ao esforço já destacado anteriormente. A História registra que bastou um dia de ataque para que as guarnições inimigas caíssem.
O livro destaca as informações de fragmentos de “De Bello Septensi” (1460), do pesquisador italiano Mateus Pisano, a respeito da frota portuguesa utilizada na ocasião: “63 navios, 27 galés trirremes, 32 embarcações birremes e 120 barcos menores”. Já de acordo com o historiador espanhol, Jeronimo Zurita y Castro, em seu “Anales de La Corona de Aragón” (1562-1569; com dados sobre as operações portuguesas até 1492), os registros dão conta da movimentação de: “33 galeões, 27 galés trirremes, 32 galeras e 120 outras embarcações menores”.
Leia: Rei do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – o debate entre as ideias de Beccaria e a tradicional defesa da tortura judicial prosseguiu; a partir da tradução de André Morellet e de muitas reedições a obra de Beccaria tornou-se baluarte contra a tortura

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Médicos e cientistas colocaram-se contra a frenologia e outras crenças sobre a relação entre a aparência das pessoas e sua índole ou alma. Basicamente argumentava-se que a dissimulação podia ser usada por qualquer criminoso e, de outra forma, um inocente podia ser levado a confessar deslizes não cometidos...
Ainda a respeito da polêmica sobre os sinais que as aparências podiam revelar, sobretudo quando os corpos fossem submetidos a torturas, Beccaria argumentava que ela perdia qualquer sentido na medida em que os que a suportassem “escapariam aos julgamentos negativos” ao passo que os mais fracos seriam vistos como culpados. Para Beccaria, a dor não servia para sentenciar os processados judicialmente, ela não era de modo algum “o teste da verdade, como se a verdade residisse nos músculos e fibras de um desgraçado sob tortura”. Assim, os sofrimentos dos que sofrem a dor da tortura não têm qualquer vínculo com “sentimento moral”.
(...)
Como a “questão” (aplicação da tortura) sofrida por Jean Callas havia ocorrido de modo privado, distante dos olhos de muitos que pretendiam observá-la, os vários advogados que se dispuseram a escrever petições e argumentações em sua defesa não puderam discorrer muito a respeito de sua reação.
Beccaria não aprovava de modo algum a tortura às escondidas porque, em seu entendimento, o processado não podia contar com a “proteção pública” mesmo antes que qualquer juízo de culpa recaísse sobre ele. A tortura privada impossibilitava ainda qualquer consideração contrária à punição.
(...)
É bem verdade que na França dos anos seguintes a 1750, os juízes já não se sentiam tão seguros em relação à eficácia da tortura para a obtenção de confissões... As penas de morte deixaram de ser aplicadas com frequência e, em vez disso, os magistrados decretavam o estrangulamento do condenado antes de ser lançado à fogueira ou à roda. Os tribunais regionais de apelação interferiram em vários processos para barrar torturas (as chamadas “torturas preparatórias) que ocorriam antes dos julgamentos (como se deu com Calas em Toulouse).
A tortura não foi completamente rejeitada pelos juízes. E pode se dizer que não concordariam com Beccaria no tocante ao seu desprezo pelo “caráter religioso” da tortura. O italiano se opunha tacitamente à ideia de que a tortura “limpava os condenados da infâmia” e, para ele, essa crença só podia ser explicada como “fruto da religião”. Seria o caso de se questionar sobre como a tortura podia “lavar a mancha” se ela mesma causava grave infâmia para o supliciado.
Um dos que defendiam a aplicação da tortura era Muyart de Vouglans que, portanto, se colocava contra as ideias de Beccaria. Para Vouglans, diante da condenação de “milhões de criminosos” punidos corretamente, a condenação de um inocente apenas fazia empalidecer. Devia-se considerar, ainda segundo o crítico de Beccaria, que as “milhões de condenações” jamais ocorreriam sem a aplicação da tortura.
Seguindo essa linha de raciocínio, muitos concordavam que a tortura permanecia um expediente útil e justificável “pela antiguidade e universalidade de seu emprego”. Para Muyart, as poucas exceções “só provavam a regra”, que podia ser investigada na História tanto da França quanto do Sacro Império Romano. Então, para ele, os princípios defendidos por Beccaria contradiziam “a lei canônica, a lei civil, a lei internacional e a ‘experiência de todos os séculos’”.
(...)
Não se pode dizer que Beccaria tenha destacado suas ideias sobre a tortura a partir da “nascente linguagem dos direitos”. Ele não fez isso, mas muitos de seus leitores perceberam a potencial conexão.
Um deles foi André Morellet, um abade francês que se ocupou de traduzir a obra do italiano. Ao modificar a ordem apresentada por Beccaria, acabou relacionando sua temática à dos “direitos do homem”. De acordo com Lynn Hunt, o abade “tirou a única referência de Beccaria a seu objetivo de apoiar os ‘direitos do homem’ do final do capítulo 11 na edição italiana original de 1764, passando-a para a introdução francesa de 1766”.
Com essa pequena transposição, passou-se a entender que a defesa dos “direitos do homem” era o maior objetivo da obra de Beccaria, para o qual, de modo algum o sofrimento individual promovido pelas torturas poderia ser justificado.
Consta que a alteração editorial promovida por Morellet permaneceu em muitas outras traduções publicadas posteriormente, inclusive em edições italianas. Sem dúvida essas traduções e reedições da obra de Beccaria se tornaram gigantesca avalanche de ataques aos procedimentos de tortura.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“Rei do Congo – A mentira que virou folclore”, de José Ramos Tinhorão – a expansão da empresa naval e mercantil durante os reinados dos séculos XIII e XIV; iniciativas de D. Dinis para o fortalecimento da marinha lusitana; bolsa de mercadorias na Lisboa de 1293; uma frota específica para cuidar da segurança dos navios mercantes; acordos comerciais e tratados com Inglaterra e França; contratação de Emmanuel Pezagno e outros genoveses para a organização marinha de paz e guerra; expedições às Canárias

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Antigas embarcações datadas do século XII e construídas em estaleiros portugueses. Como ocorria na “tercena” no Terreiro do Trigo, eram movidos a vela e a remo e muito comuns no Mediterrâneo. Algumas eram galés, outras eram chamadas de carracas e devem ser reconhecidas como precursoras das naves que dominariam as grandes navegações durante o século XV.
Aquelas primitivas embarcações foram utilizadas nos combates a corsários marroquinos e para o transporte de artigos extraídos ou produzidos no reino. Prova disso é o naufrágio (em 1194) de embarcação portuguesa que navegava o Mar do Norte carregado de “madeira, azeite e melgaço”.
(...)
O século XIII foi marcado por considerável ampliação da esquadra portuguesa, sobretudo graças à organização de muitas outras tercenas nas proximidades de Lisboa. O livro cita reinados marcados por essa expansão: Sancho II (1223-1247); Afonso III (1248-1279); D. Dinis (1279-1325).
Houve continuidade do avanço das atividades de proteção dos interesses marítimos lusitanos durante reinados que atravessaram os séculos XIV e XV. O texto cita os períodos dos governos de D. Fernando (1367-1383) e de D. João I (1385-1433). A essa altura, o estuário do Tejo, a ribeira do Coina e outras partes do litoral mais ao norte (ribeira de São Martinho, Vila de Nova Gaia e Aveiro) também testemunharam a evolução do projeto econômico encabeçado pelo Estado português.
A burguesia ligada aos portos e aos negócios relacionados à exploração marítima percebeu a importância de aliar seus interesses ao poder político. Os objetivos políticos e econômicos do Estado se ordenavam perfeitamente aos dessa ativa camada social. Ainda durante o século XIII, D. Dinis havia ordenado a plantação de vasto pinheiral em Leiria, junto ao rio Lis, com o objetivo de fornecer a matéria-prima necessária para a construção de embarcações em área que, de acordo com o livro, passou a ser identificada “pelo nome de Tercenas”.
(...)
O desenvolvimento do comércio marítimo português fortaleceu-se muito ao tempo de D. Dinis. As transações mercantis incluíam Inglaterra, Flandres e França. O monarca manteve-se atento às demandas do setor. A intensa movimentação de navios com carregamentos volumosos e valiosos resultou na criação, em 1293, de uma “bolsa de mercadorias” em Lisboa, que se destinava “a regular a atividade dos portos que estimulava o comércio por mar assumindo praticamente os prejuízos causados pelos naufrágios decorrentes dos perigos da navegação”.
Outras providências foram tomadas no sentido de garantir a segurança das embarcações que se dirigiam para o norte europeu. Assim, no começo do século XIV, D. Dinis possibilitou a criação de uma frota específica para essa finalidade. Em 1307, o rei nomeou Nunes Fernandes Cogominho para almirante da referida organização.
(...)
Houve ainda uma movimentação internacional com o objetivo de regulamentar a modalidade comercial que estava em franco crescimento. O livro registra o esforço do monarca português junto a Eduardo II, da Inglaterra, para o estabelecimento de um tratado comercial... E com Felipe IV, da França, firmou-se um acordo favorável aos portugueses na medida em que garantia privilégios a eles no porto de Harfleur, que era o mais importante na Normandia.
Em 1317, D. Dinis contratou o navegador genovês, Micer Emmanuel Pezagno (que o livro esclarece ser conhecido dos portugueses também por Manuel Pessanha, Pezaño ou Pessagno). Este genovês foi nomeado Almirante-Mor, a mais importante autoridade no que dizia respeito à “navegação de paz e guerra”, e se encarregou de juntar aos esforços portugueses vinte de seus “compatriotas especialistas em técnicas náuticas em uso no Mediterrâneo”.
Por “navegação de paz” entende-se o comércio marítimo. O livro destaca que a entrada do Mediterrâneo desde Gibraltar foi dominada pelos espanhóis até 1333... Como os mouros mantiveram o controle da região graças às suas conquistas no norte africano, a empresa portuguesa buscou as alternativas oferecidas pelo Atlântico... Daí verificarmos a não casualidade das expedições enviadas às ilhas Canárias nos anos 1336 e 1341. As equipes contavam com a participação de genoveses do time de Pezagno, além disso as cartas náuticas utilizadas pelas embarcações traziam “nomenclatura italianizada”.
Tinhorão cita “A cartografia dos Descobrimentos”, de Alfredo Pinheiro Marques (1994), que sentencia que a contratação de Emmanuel Pazagno em 1317 tinha como objetivo “organizar uma marinha de guerra e certamente nada mais que isso”.
Leia: Rei do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – sensibilização em torno do sofrimento dos suplícios judiciais; novamente o caso Calas e as petições de advogados sobre sua inocência; ideia de que a resignação e resistência do torturado indicavam inocência; Alexandre-Jérôme Loiseau de Mauléon e as palavras de Calas a respeito da própria inocência; metocospia, frenologia e outras crenças sobre a revelação do caráter da pessoa a partir de marcas exteriores

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/11/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_9.html antes de ler esta postagem:

Em várias sociedades europeias aconteceu, principalmente entre os mais estudados, uma sensibilização das pessoas em torno dos sofrimentos impostos aos supliciados pela tortura judicial. Isso ocorreu entre o início da década de 1760 e os anos 1780...
No começo, muitos advogados redigiram petições denunciando as injustiças contra Calas. Assim como Voltaire, eles não se colocavam incisivamente contra a tortura determinada pela justiça ou especificamente pelo suplício da roda. Focavam na questão do fanatismo e estavam convencidos de que a intolerância religiosa havia levado as pessoas comuns e os juízes de Toulouse a punirem o velho Jean Calas... De um modo geral, as petições se prolongavam em detalhes acerca da tortura e da morte do condenado, mas não colocavam em questão a legitimidade dos instrumentos de punição.
Podemos dizer que as petições que se tornaram públicas na defesa de Calas levavam em consideração que a dor que a tortura provocava, um “cruel castigo”, não havia sido suficiente para vencê-lo... De outro modo, podemos dizer que, para os advogados que se debruçaram sobre o caso e saíram em defesa do pobre homem, ele conseguiu provar que era inocente exatamente porque suportou a dor.
É como dizia Alexandre-Jérôme Loiseau de Mauléon que, em sua tese sobre a inocência do calvinista, afirmava que ele “suportou a questão (a tortura) com resignação heroica que só pertence à inocência”. Em um trecho de sua defesa destaca as “comoventes palavras de Calas”:

                   “Morro inocente; Jesus Cristo, a própria inocência, desejou fervorosamente morrer com um sofrimento ainda mais cruel. Deus pune em mim o pecado daquele infeliz (referia-se ao filho) que se matou. (...) Deus é justo, e adoro os seus castigos”.

Para Loiseau, essa “perseverança majestosa” do torturado alterou completamente os sentimentos dos que acompanhavam o seu caso. Conforme o supliciado repetia que era inocente ao mesmo tempo em que era submetido aos cruéis tormentos, todo o povo se compadecia e se arrependia dos juízos que haviam antecipado contra ele. Os golpes da vara de ferro contra seus ossos soavam “no fundo das almas” de todos que acompanhavam o suplício, “torrentes de lágrimas se derramavam” dos olhos das pessoas...
No dizer do próprio Loiseau, “lágrimas demasiado tardias”.
(...)
Acontece que, para muitos, a tortura continuava a ter sua eficácia judicial na medida em que forçava o indivíduo a confessar por mais que sua consciência resistisse. Lynn Hunt esclarece que havia uma tradição na Europa sobre a possibilidade de se conhecer o caráter das pessoas a partir de certas marcas ou sinais corpóreos (uma “tradição fisionômica”).
Diversas obras publicadas desde o final século XVI e durante o XVII tratavam da “Metoposcopia” e da ciência da “interpretação do caráter ou sorte” das pessoas a partir da interpretação de “linhas, rugas ou manchas na face”. “A Invenção dos Direitos Humanos” cita o título de uma delas, cujo autor era Richard Saunders (1653): “Fisionomia e Quiromancia, metocospia, as proporções simétricas e os sinais do corpo plenamente e acuradamente explicados, com suas significações naturais previsíveis tanto para os homens como para as mulheres”.
Como se vê, muitas pessoas acreditavam mesmo que os sinais visíveis dos corpos eram reveladores do interior de cada um. Até o final do século XVIII e começo do XIX ainda podiam se encontrar defensores dessas ideias, principalmente entre os adeptos da “frenologia” (que teciam considerações acerca do grau de inteligência a partir do formato e protuberâncias do crânio).
Mas, aos poucos, médicos e cientistas passaram a refutar mais incisivamente esses conceitos e a partir de 1750 se colocaram terminantemente contra essa crença infundada.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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