Em 1780, Muyart havia escrito o seu tratado sobre a legislação referente às punições judiciais aplicadas na França. Em postagens anteriores, vimos que ele considerava válidas as confissões firmadas após sessões de tortura. Portanto se colocava contra a corrente de advogados e pensadores reformadores, todavia evitava o debate direto ao mesmo tempo que afirmava que seus oponentes eram “polemistas”, e garantia que “a força do passado” estava ao seu lado.
(...)
De tal modo a petição
de Dupaty inflamou os ânimos dos que já se sensibilizavam com os sofrimentos
dos acusados injustamente que logo a opinião pública colocou-se declaradamente
a favor dos processados e contra o sistema judiciário...
Isso alarmou o “Parlament de Paris”, que decidiu queimar publicamente o texto. O tribunal
questionou o gênero textual adotado no documento (o estilo romanesco) e contra-atacou
afirmando que a petição transmitia a ideia de que o advogado assumia a condição
de “porta-voz” de toda nação e que, em nome dela, formulava os juízos
catastróficos... É como se toda humanidade fizesse parte “de uma terra
desgrenhada”, lhe mostrasse “as feridas” e se colocasse ao seu lado “tremendo e
estendendo-lhe as mãos”.
Apesar dessa ofensiva, não houve como conter o avanço das ideias
reformadoras... O Marquês de Condorcet (Jean Caritat), que viria a se tornar “o
defensor mais coerente dos direitos humanos” ao tempo da Revolução, redigiu
panfletos nos quais defendia Dupaty (fins de 1786). De modo simplificado, lançou
novos ataques ao modo como as autoridades jurídicas desprezavam o ser humano e ao
modo como violavam a “lei natural”. Como se sabe, dois anos depois o próprio
rei Luís XVI tomou atitudes mais afinadas com as reivindicações e aboliu
(provisoriamente) “a tortura antes da execução para obter nomes de cúmplices”.
O livro cita trechos do decreto real e suas providências:
“reafirmar a
inocência (...) remover do castigo qualquer excesso de severidade (...e) punir
os malfeitores com toda a moderação que a humanidade exige”.
A campanha cresceu de
tal forma que, em 1789, quando se vislumbrava a reunião dos Estados Gerais, “a
correção dos abusos no código criminal” tornou-se uma das questões mais citadas
nas “listas de queixas” propostas para a assembleia.
(...)
“A
Invenção dos Direitos Humanos” não nos deixa perder de vista que toda polêmica
em torno da tortura judicial e das demandas por uma reforma nos códigos se
relacionam à empatia pelos sofredores e pelos “novos significados atribuídos ao
corpo”... Tanto os ossos quebrados de Calas quanto a gangrena de Lardoise
(aquele acusado defendido por Dupaty) provocaram a inquietação nas mentes que
exigiam dignidade no trato dos corpos.
O breve panfleto de
Benjamin Rush (1787) já apontava “os defeitos do castigo público”, demonstrando
que tal procedimento não estava de acordo com as noções de indivíduo autônomo e
solidário. Rush era médico e até entendia a sanha dos magistrados tradicionais pela
aplicação de castigos aos condenados, provocando-lhes dores corporais. Mas de
sua parte preferia punições mais relacionadas a “trabalho, vigilância, solidão
e silêncio”, pois isso atendia às prerrogativas “da individualidade e potencial
utilidade do criminoso”.
Evidentemente Rush
era dos que se colocavam contrários aos castigos em público, pois isso destruía
a simpatia (ou empatia), algo tão precioso e que ele considerava “a
vice-regente da benevolência em nosso mundo”.
A “simpatia”
lembra que temos de reconhecer que os demais possuem interioridade e direitos
que devem ser respeitados. A preocupação de Rush indica que essa percepção vinha
fundamentando uma nova moralidade e sinalizava “a centelha do divino” na vida e
relações humanas. Não por acaso, o doutor relacionava a sensibilidade ao senso
de justiça, um “reflexo condicionado para o bem moral”. Assim, não podia aceitar
os castigos públicos proporcionados pela Lei, pois eles travavam a simpatia, o “amor
universal” e a percepção de que também os criminosos possuem “corpos e almas
semelhantes” aos nossos.
Leia: A
Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto