terça-feira, 29 de dezembro de 2020

“Deus lhe pague”, peça de Joracy Camargo – opiniões do velho mendigo sobre as esmolas, vingança contra a sociedade e acumulação de riqueza; a pobreza dos ricos e a riqueza dos mendigos; palavras certas rendem esmolas dos ricos aflitos; a miséria de tipos como Vieira de Castro; calculando a acumulação do velho mendigo em vinte e cinco anos de mendicância

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2020/08/deus-lhe-pague-peca-de-joracy-camargo_6.html antes de ler esta postagem:

Barata quis saber se o velho e experiente mendigo, com o qual trocava ideias durante a noite em frente à igreja, era contra a esmola... Em resposta ouviu que ele era a favor dele mesmo, “esmola ao seu favor”, e acrescentou que era contra os outros. O fato de seguir pedindo se explicava pelo fato de a própria sociedade assim o exigir... Era simples, pedindo esmolas se vingava da sociedade. Explicou que dessa maneira acabou se enriquecendo.
Barata se espantou e sem dar mostras de que acreditava no que acabara de ouvir perguntou se o amigo havia mesmo se enriquecido. O velho confirmou que, com seu ofício, se tornara riquíssimo... Mas então foi obrigado a se enriquecer?
Sem pressa de responder, o velho mendigo disse que a sociedade é “defeituosa”. O normal para todos é que o mendigo seja pobre para toda vida ou enquanto estiver recorrendo à mendicância. Depois acrescentou que os ricos é que são pobres (de espírito, de tranquilidade, fraternidade...), inclusive de dinheiro em alguns casos.
A cada frase do velho, Barata se sentia mais confuso. Confessou que não estava entendendo nada... Não pediu maiores explicações no mesmo instante porque viu um tipo distinto se retirando da igreja. Sem titubear, estendeu-lhe a mão e resmungou um “uma esmolinha pelo amor de Deus”... O homem prosseguiu com sua passada rápida sem conceder-lhe qualquer níquel. Como que a querer dar exemplo ao companheiro, o velho posicionou seu chapéu em gesto de pedinte e implorou dizendo: “Favoreça, em nome de Deus, a um pobre que tem fome!”. O tipo distinto depositou a esmola no chapéu e retirou-se visivelmente agitado. Barata espantou-se mais uma vez enquanto o companheiro misterioso lhe perguntava se conhecia o cavalheiro que acabara de sair da igreja...
Evidentemente Barata não tinha a menor ideia a respeito do distinto homem. O velho tratou de responder que aquele era certo Vieira de Castro, um milionário que presidia um rico conglomerado de fábricas de tecido... Na sequência observou o adiantado da hora... O que um homem tão rico buscaria numa igreja àquela hora? Barata saberia “o que significa um momento de contrição religiosa de um milionário?”
Mais uma vez o pobre Barata ficou sem ter o que dizer e o companheiro foi esclarecendo que homens como Vieira de Castro sofrem por serem egoístas e porque travam árduas disputas com empresários rivais... Uma condição miserável! Miséria pior do que a vivida pelos mendigos!
Barata espantou-se mais uma vez... Aquele distinto senhor poderia sofrer uma miséria maior do que a sua? O velho foi dizendo que a miséria do “ser mendigo” é das mais confortáveis e certamente faria inveja aos milionários...
(...)
Mendigo “genuíno”, Barata poderia pensar que o velho que lhe transmitia aqueles estranhos ensinamentos não podia servir de parâmetro para a comparação que ele mesmo estava propondo. Talvez por isso tenha voltado a insistir na explicação sobre ter sido obrigado a se enriquecer e a fazer fortuna.
O velho respondeu que sempre guardou tudo o que recebia de esmola. Simplesmente foi obrigado a guardar porque a própria sociedade o impediu de gastar... Para exemplificar o que queria dizer, mostrou as vestes desgastadas... Ganhou aquela roupa de esmola já fazia vinte e cinco anos e por “motivos óbvios” jamais a substituiu. Simplesmente não podia fazer isso, e dessa forma economizava o valor equivalente a dois ternos a cada ano.
Na sequência o velho acompanhou Barata numa série de cálculos sobre o quanto economizara durante os vinte e cinco anos de mendicância: o quanto poupou por não gastar com roupas novas; por não gastar com comida e gorjetas em restaurantes, pois sempre se contentou com os restos que lhe eram oferecidos; por não ter despesas com passatempos “como cinema, teatro, esportes e certos luxos” que para um mendigo só poderiam ser considerados inconvenientes.
O raciocínio parece ter mostrado satisfatoriamente ao Barata a possibilidade do mendigo se enriquecer na mesma medida em que, com a série de gastos com supérfluos, o rico poderia empobrecer.
Leia: “Deus lhe pague”. Ediouro.
Um abraço,
Prof.Gilberto

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

“A Ópera de Três Vinténs” – peça de Bertold Brecht musicada por Kurt Weill – considerações iniciais; um pouco a respeito de Mac Navalha e J.J. Peachum; o cantor de feira e a “moritat” do Mac Navalha; sobre o início do filme de 1931 e a perseguição nazista

“A Ópera de três vinténs”, texto de Bertold Brecht e música de Kurt Weill, estreou no final de agosto de 1928... O dramaturgo a redigiu com base na “Ópera do Mendigo” (1728), de John Gay. Por três anos o texto passou por alterações e o que para muitos resultaria em fiasco, tornou-se sucesso de público.
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De modo simplificado, o enredo trata dos últimos dias da trajetória criminosa do Mac Navalha (Mackie Messer), que chefiava um grupo de marginais que aterrorizava os distritos de Londres com assaltos. Mac Navalha era conhecido por explorar prostitutas e temido por suas ações marcadas por atentados violentos. Ele se envolveu com a bela Polly, filha do “rei dos mendigos”, Jonathan Jeremiah Peachum que, com o auxílio de sua esposa, Célia, explorava os mendigos da cidade, fornecendo-lhes acessórios em troca do pagamento de taxas abusivas.
Peachum não aceitou qualquer relacionamento de sua única filha com o Navalha... Ele considerava o adversário desprezível e então recorreu à polícia londrina para tirá-lo de circulação. O que ele não sabia é que entre Mac Navalha e Brown, o policial chefe, havia cumplicidade e um antigo vínculo de amizade.
(...)
A mensagem agressiva e as canções da peça conduzem o espectador à reflexão crítica... No começo de 1931 George Wilhelm Pabst lançou a brilhante adaptação de “A Ópera dos Três Vinténs” para o cinema.
Brecht e Kurt Weill trabalharam na adaptação de sua obra para o cinema. Evidentemente a sequência das cenas passou por alterações. Além disso, a mensagem se tornou mais direta e ainda mais agressiva em relação à decadência e costumes burgueses. Os dois perceberam que algumas canções da peça original se tornavam mais significativas ao serem interpretadas por personagens diferentes e em momentos também alternados.
Com a ascensão do Nazismo em 1933, a obra e as apresentações tornaram-se proibidas.
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Na abertura de “A Ópera de três vinténs” assistimos a uma feira no Soho... Notamos a agitação típica das feiras onde “os mendigos mendigam, os assaltantes assaltam, as prostitutas se prostituem”. Um cantor de feira se destaca no alto de um pequeno palanque, onde, aos gritos, canta as notícias (uma “moritat”) sobre Mac Navalha e suas maldades:

                   “Tubarão tem dentes fortes/Que não tenta esconder; Mackie tem uma navalha/Que ninguém consegue ver//Tubarão tem barbatanas/Que de sangue rubras são; Mackie usa uma luva/Que esconde a vil ação//Nas londrinas águas verdes/Some gente – grande azar! Não é cólera nem peste/É o Navalha a rondar//Num domingo ensolarado/Um cadáver jaz no chão – E um homem dobra a esquina – É o Navalha, o valentão//Mosche Meier está sumido/E outros tantos marajás: Sua grana embolsa o Mackie/Mas tu nada provarás”...
(o roteiro destaca que Peachum, o rei dos mendigos, passeia com a mulher e a filha; entrementes o cantor prossegue)
                   “Jenny Towler foi achada/Esfaqueada lá no cais – Quem furou seu peito branco?/Foi Navalha? É demais!//E o cocheiro, a testemunha/Que não pode mais depor,/ Onde foi que evaporou-se?/Mackie sabe? Não, senhor!//E o incêndio lá no Soho:/Seis crianças e um ancião – Entre o povo está o Navalha,/A quem nada indagarão.//E violada foi no sono/Uma viúva, que é menor... Qual o preço prometido/Pelo tal bandido-mor?”

(...)
No início do filme ouvimos o canto dos socialmente excluídos... Cansados de sermões e lições de moral, sugerem que os ricos e bem alimentados (que vivem a falar mal dos maltrapilhos e desvalidos) entendam que antes de criticá-los, ofendê-los e impor moral, devem dar condições para que também eles possam viver dignamente e bem alimentados. Que lhes concedam ao menos uma fatia do filão de pão!
A canção faz parte da peça... Ela é entoada pelo Navalha (a mensagem também é sua) e pela prostituta Jenny-Espelunca no final do segundo ato.
Leia: “Deus lhe pague”. Ediouro.
Indicação do filme - 14 anos
Um abraço,
Prof.Gilberto

sábado, 19 de dezembro de 2020

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – posição dos “homens de cor livres” em relação ao movimento revolucionário dos escravos em Saint Domingue e a expectativa da “Sociedade dos amigos dos Negros”; fragmentos dos argumentos do deputado Armand-Guy Kersaint; ambiguidade dos “homens de cor livres”; a República e seus inimigos na Europa e no Caribe; alianças dos cultivadores brancos com ingleses, e dos negros rebelados com espanhóis; comissários da República francesa em missão no Caribe

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Após o fracasso da revolta dos “homens de cor livres” liderada por Vincent Ogé, a campanha pelos direitos desse segmento teve prosseguimento e, como vimos, a “Sociedade dos Amigos dos Negros” conseguiu a aprovação do decreto (maio de 1791) que garantia direitos políticos aos “homens de cor livres nascidos de mães e pais livres”. Vimos também que os deputados anularam o decreto de maio de 1791 por causa da revolta dos escravos em Saint Domingue...
(...)
Na sequência das reflexões propostas por Lynn Hunt, somos levados a pensar sobre de que modo
os “homens de cor livres” se posicionavam em relação ao movimento dos escravos da ilha. Como sabemos, também eles possuíam cativos. Além disso, muitos haviam participado dos grupamentos armados que perseguiam escravos fugitivos. No começo dos acontecimentos revolucionários na França, a “Sociedade dos Amigos dos Negros” entendia que os “homens de cor livres” de Saint Domingue poderiam barrar as agitações de escravos mais radicais e até servirem de “mediadores em qualquer futura abolição”.
As ideias da “Sociedade dos Amigos dos Negros” eram repelidas pela maioria dos deputados... Mas conforme o movimento rebelde em Saint Domingue se mostrou incontrolável para as autoridades coloniais, muitos deles resolveram apoiá-las. Sobretudo a partir de 1792. Em síntese, esperavam uma união dos “homens de cor livres” com os brancos dos extratos inferiores em apoio às tropas da metrópole. Isso deveria derrotar tanto os ricos cultivadores brancos quanto os escravos rebelados.
A historiadora destaca trechos de argumentos de um dos deputados, Armand-Guy Kersaint*, que exemplificam o anteriormente exposto:

                   “Essa classe (referia-se aos brancos pobres) é reforçada pela dos homens de cor livres que possuem propriedade: esse é o partido da Assembleia Nacional nesta ilha. (...) Os receios de nossos colonos (os ricos cultivadores brancos) têm, portanto, fundamento, uma vez que eles têm tudo a temer da influência de nossa revolução sobre seus escravos. Os direitos do homem derrubam o sistema em que se assentam suas fortunas, (...) Somente mudando os seus princípios é que (os colonos) salvarão as suas vidas e as suas fortunas”.

                   * A respeito de Kersaint, podemos ressaltar que ele pertencia à nobreza, possuía plantações e era um antigo oficial da Marinha. Como deputado, participou intensamente dos referidos debates e aos poucos passou a sustentar a ideia de uma “abolição gradual da escravidão”.

Já os “homens de cor livres” tiveram envolvimentos nos conflitos marcados pela ambiguidade, pois em alguns episódios apoiaram os brancos proprietários em sua luta contra a sublevação dos escravos. Em outras ocasiões os rebeldes receberam o seu apoio.
(...)
Novamente vemos o debate em torno dos direitos, e depois da aprovação da Declaração de 1789, concomitantemente a um episódio de luta por direitos, no caso a rebelião dos escravos em Saint Domingue...
A mesma Assembleia que havia decretado que a discussão não se aplicava às colônias, teve de admitir que os direitos abrangiam localidades e grupos distanciados geograficamente da metrópole. Não demorou e os que se opunham a estender os direitos aos “homens de cor livres” tiveram de concordar que a reflexão (e tomadas de decisões) sobre o sistema escravagista dizia respeito à condição daquele segmento social. Entenderam que tão logo reconhecessem os direitos, a abolição seria o próximo passo.
(...)
Em 1793 a Revolução tomou um rumo mais radical na França... A República foi declarada e a Grã-Bretanha tornou-se o principal inimigo externo... No Caribe, onde as colônias estavam em polvorosa, o maior rival era a Espanha.
O conturbado panorama da metrópole levou os ricos cultivadores brancos a buscarem socorro junto aos britânicos. Por outro lado, vários escravos rebelados (iludidos por falsas promessas de libertação) resolveram se juntar aos espanhóis que dominavam a outra metade da ilha.
Dois comissários franceses foram enviados aos rebelados em agosto de 1793... Eles chegaram com promessas de abolição aos que lutassem em defesa da República. Também seus familiares seriam contemplados com a liberdade e terra. Depreende-se que a tarefa desses comissários não tenha obtido o êxito esperado, tanto é que no final do mesmo mês encontravam-se prometendo “liberdade a províncias inteiras”.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – expectativas de ricos cultivadores brancos, de artesãos e comerciantes brancos, e de negros e mulatos livres de Saint Domingue em relação aos acontecimentos revolucionários na metrópole; um pouco da condição dos negros e mulatos livres da colônia, sua defesa do escravismo e pretensões de serem tratados como os cultivadores brancos; Vincent Ogê e sua plataforma política na Assembleia; Ogê e a fracassada rebelião dos negros e mulatos livres; a agitada rebelião dos escravos de 1791

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Vimos que na França, ainda no começo da Revolução, ocorreu o debate em torno da condição dos negros e da necessidade de estender-se a eles os direitos de cidadania. Grupos como o da “Sociedade dos Amigos dos Negros” postulavam a abolição da escravatura, mas eram minoria na Assembleia Nacional, sofreram forte oposição e declinaram de suas intenções mais radicais diante dos ataques do comitê colonial representado por seu porta-voz, Antoine Barnave.
(...)
Apesar disso, os ricos empreendedores brancos que haviam se instalado em Saint Domingue (Haiti) perceberam a importância dos acontecimentos na metrópole e, ainda em 1788, passaram a reclamar “reformas no comércio” e por representação “nos vindouros Estados Gerais”. O exemplo norte-americano os aninava e, caso houvesse interferências da metrópole no sistema baseado no escravismo, ameaçavam dar início ao movimento de emancipação.
Também os brancos das classes menos favorecidas (artesãos e comerciantes) esperavam que o processo revolucionário na metrópole resultasse em melhorias e possibilidades de participação política na colônia. Em relação a essas aspirações, enfrentavam a resistência dos mais ricos.
Em Saint Domingue havia ainda o segmento dos “negros e mulatos livres” que, sem dúvida, concentrava as maiores demandas e ameaças à estrutura dominada pelos mais ricos. O Antigo Regime, através dos decretos da monarquia, impedia o acesso de negros e mulatos livres à maioria dos ofícios e, além disso, os proibia de “adotar o nome de parentes brancos”.
Lynn Hunt ressalta que apesar das restrições, “as pessoas de cor livres (...) possuíam consideráveis propriedades: um terço das plantações e um quarto dos escravos em Saint Domingue”. E era por isso mesmo que reivindicavam o mesmo tratamento que era dispensado aos brancos, além de se mostrarem favoráveis à manutenção do escravismo.
O mestiço Vincent Ogê foi eleito delegado e partiu para a agitada Paris em 1789... Colocou-se como representante deste segmento social. Fez contato com cultivadores brancos e procurou mostrar-lhes que possuíam interesses em comum e, para destacar a necessidade de aprovarem os “direitos iguais aos homens de cor livres”, dizia que:

                   “Veremos derramamento de sangue, nossas terras invadidas, os objetos de nosso trabalho destruídos, nossas casas queimadas (...) o escravo levará a revolta mais longe”.

Vincent Ogê insistia que a aliança dos cultivadores brancos com os negros e mulatos livres (e proprietários, como era o seu caso) seria vital para conter possíveis levantes de escravos. Todavia ocorreu que os que representavam os proprietários brancos de Saint Domingue na Assembleia não se mostraram favoráveis à aliança com negros e mulatos livres... A “Sociedade dos Amigos dos Negros” tampouco se sensibilizou pela causa e não apoiou Vincent Ogê. Este retornou a Saint Domingue e na segunda metade de 1790 liderou uma fracassada agitação dos “homens de cor livres”. Como resultado, Ogê acabou preso e “supliciado na roda”.
(...)
A “Sociedade dos Amigos dos Negros” prosseguiu em sua campanha pelos direitos dos negros livres... Em maio de 1791 obtiveram importante conquista com a aprovação do decreto que garantia direitos políticos aos “homens de cor livres nascidos de mães e pais livres”.
Assim que as notícias da rebelião dos escravos de Saint Domingue (agosto de 1791) se espalharam, os deputados anularam o decreto... Oito meses depois aprovaram outro “mais generoso”. As “idas e vindas” no processo revelavam a confusão que se estabelecera entre os deputados. O motivo não era outro senão o panorama de convulsão nas colônias. A rebelião de agosto desnorteava as autoridades, pois cerca de 10 mil escravos participaram desde o início e rapidamente outros mais se juntavam a eles nos ataques aos brancos e aos incêndios aos canaviais e às casas dos cultivadores.
Acuados, os ricos proprietários brancos passaram a acusar a “Sociedade dos Amigos dos Negros” e a difusão dos “Direitos do Homem”.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – início das discussões sobre a condição dos negros no contexto dos direitos e das Declarações; atuação da “Sociedade para a Abolição do Tráfico de Escravos” na Inglaterra; o caso do afro-americano Dred Scott e as Emendas 13ª, 14ª e 15ª à Constituição dos EUA; atuação da “Sociedade dos Amigos dos Negros” na França; críticas de Baptiste-Henri Gregóire ao racismo dos colonos brancos; Antoine Barnave, o comitê colonial e a perseguição aos ideais da “Sociedade dos Amigos dos Negros”

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Como não poderia deixar de ser, a condição dos negros tornou-se tema de discussões dos que se envolviam nas questões da cidadania e dos direitos... Falava-se de escravos e de negros livres na França, Inglaterra e Estados Unidos. Entre os franceses, o processo desencadeado pela Revolução resultou na definição (em 1792) dos direitos políticos dos negros, e dois anos depois aboliu-se a escravidão.

(...)

O escravismo era um dos pilares do antigo sistema colonial do império britânico e os ingleses eram antigos protagonistas no tráfico de escravos... Durante os tempos de mobilização pelos direitos, grupos religiosos se mobilizaram em torno dessas questões e da condição dos negros. A “Sociedade para a Abolição do Tráfico de Escravos”, formada a partir de princípios quakers, foi de grande importância para as pressões que levaram o Parlamento a proibir o tráfico em 1807... No início da década de 1830 a escravidão foi abolida nas colônias do império britânico.

(...)

A questão da escravidão foi das mais polêmicas nos Estados Unidos e Lynn Hunt ressalta que a condição dos negros livres piorou muito após 1776.
As orientações acerca da escravidão escaparam da competência do governo federal desde que a Convenção Constitucional de 1787 definiu que cada estado elaborasse sua legislação a respeito.
O caso do afro-americano Dred Scott (1857) foi emblemático, já que foi marcado por sua tentativa de obter a liberdade, sua e de sua esposa, junto à Suprema Corte, com a alegação de que, por iniciativa de seu senhorio (John Scott Emerson), vivera em territórios onde o escravismo não era admitido. O argumento de que nenhum escravo ou seus descendentes tinham direitos de cidadania nos Estados Unidos justificou a negação da Corte.
Um ano depois Dred Scott morreu.
(...)
Como se sabe, a abolição da escravatura nos Estados Unidos ocorreu em 1865 com a aprovação da 13ª Emenda pela Câmara dos Representantes. Três anos depois, as argumentações que sustentaram a sentença no caso Dred Scott seriam derrubadas com a ratificação da 14ª Emenda da Constituição (de 1866) que garantia: “Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos e sujeitas à sua jurisdição são cidadãos dos Estados Unidos e do estado em que residem”.
Cabe ressaltar que, em relação ao direito de voto, foi a 15ª Emenda (1870) que garantiu que “o direito de voto dos cidadãos dos Estados Unidos” não pode ser “negado ou cerceado” pela federação ou por qualquer um de seus estados, “seja por motivo de raça, cor ou de prévio estado de servidão”.
Como se sabe, as mulheres continuaram sem poder exercer o mesmo direito por muitas décadas.

(...)

Assim como na Inglaterra, a França conheceu uma agremiação defensora da abolição do tráfico de escravos, a “Sociedade dos Amigos dos Negros”... O livro dá conta de que os acontecimentos revolucionários de 1789 a tornaram mais evidente. Defensores dos direitos humanos como “Brissot, Condorcet, Lafayette e o abade Baptiste-Henri Gregóire” participavam da “Sociedade dos Amigos dos Negros”.
Baptiste-Henri Gregóire foi árduo defensor da liberdade religiosa e atuou contra as restrições que os judeus do leste do país sofriam, e ainda em 1789 redigiu um panfleto em que defendia que “os homens de cor livres” deviam ter direitos como os demais cidadãos. Suas críticas eram direcionadas também ao racismo praticado pelos colonos brancos. Segundo ele, esses se arvoravam no poder e “decidiram injustamente que a pele escura exclui o indivíduo das vantagens da sociedade”.
Mas ao tempo da Assembleia Constituinte, os que defendiam “direitos aos negros e mulatos livres” e a abolição da escravidão eram minoria. Muitos dos representantes evitavam debates em torno da questão também porque temiam provocar um abalo num sistema que trazia “imensas riquezas para a França”. Além disso, entre colonos e mercadores que atuavam no Atlântico, havia muita difamação contra os “Amigos dos Negros” e a respeito deles dizia-se que acabariam provocando insubordinações e levantes de escravos.
Os deputados resolveram deixar as colônias de fora das discussões... Isso as excluía dos “Direitos do Homem e do Cidadão” e da Constituição, além de postergar a questão da extensão dos direitos aos negros das colônias. Prevaleceu os interesses do comitê colonial, cujo porta-voz, o deputado Antoine Barnave sentenciava que:

                   “a aplicação rigorosa e universal dos princípios gerais não é conveniente para [as colônias... A] diferença em termos de lugares, clima e produtos nos parecia requerer uma diferença nas leis”.

Barnave conseguiu aprovar um decreto que levava em conta as considerações expostas anteriormente e “tornava crime a incitação de tumulto nas colônias”.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

“Rei do Congo – A mentira que virou folclore”, de José Ramos Tinhorão – carta do manicongo D. Afonso ao rei D. Manuel; ataques aos costumes religiosos do povo para melhor se alinhar ao reino português e à fé católica; ilha de São Tomé e o entendimento do manicongo a respeito de um auxílio abnegado e cristão; nau carregada de preciosidades e o ambicioso donatário Fernão de Melo pretende tirar proveito das carências do reino do Congo; registros de D. Afonso do Congo a respeito do decepcionante “retorno” dado pelo donatário de São Tomé

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Vimos que a sucessão de D. João Nzinga a Nkuwu foi marcada pela disputa entre dois irmãos, o cristianizado Mbemba a Nzinga e o “tradicionalista” Mpangu a Kitina... Como sabemos, Mbemba a Nzinga, batizado pelos portugueses, saiu-se vencedor e tornou-se o novo manicongo.
A última postagem sinalizou que D. Afonso (nome cristão de Mbemba a Nzinga) iniciou sua condição de chefe dos congoleses amargando a contradição... Para demonstrar que estava alinhado com as propostas civilizatórias dos portugueses, enviou o filho Henrique e o sobrinho Rodrigo de Santa Maria a Portugal com uma carta ao rei D. Manuel... A missiva tratava de sua vitória no conflito com os tradicionalistas e solicitava “alguns clérigos ou frades” para que sua gente pudesse aprender mais sobre a fé.
D. Afonso do Congo quis resolver de uma vez por todas a questão religiosa em torno da tradição de seu povo e ordenou o recolhimento de “estatuetas-imagens dos antepassados”. Elas eram cultuadas com devoção pelos congoleses, mas os missionários portugueses insistiam que não passavam de “ídolos” que nada tinham de sagrados.
Como era de se esperar, houve reação à medida imposta pelo manicongo... Ele tinha a intenção de destruir todos os objetos assim que fossem confiscados, mas percebendo que não teria como dar prosseguimento à sua iniciativa, recorreu ao auxílio dos portugueses que dominavam a ilha de São Tomé.
(...)
Essa ilha havia sido “descoberta” por João de Santana e Pero de Escobar em 1470, exatamente no dia do santo, e foi por isso que lhe deram o nome de “São Tomé”... Em 1485, D. João II a cedera como capitania a João de Paiva. Em 1493 a ilha foi repassada a Álvaro de Caminha. Este deu início ao povoamento, mas logo veio a falecer. Em 1499, D. Manuel cedeu ao fidalgo Fernão de Melo o cargo de governador de São Tomé na condição de donatário.
A ilha era povoada basicamente por degredados. Desde 1487 o governo de Portugal ordenava o envio de judeus forçados ao batismo cristão. Na distante localidade deveriam assimilar os ensinamentos cristãos/católicos.
(...)
Foi em 1508 que o manicongo cristão D. Afonso, receando as consequências de suas imposições sobre os objetos religiosos, pediu auxílio ao nobre governador Fernão de Melo. Naturalmente ele esperava contar com um gesto abnegado e cristão da parte do aliado português. D. Afonso Mbemba a Nzinga se via em grave situação, já que os cristãos no Sundi eram bem poucos (ele, o primo Pedro e suas famílias). A esmagadora maioria se inclinava à veneração dos ídolos.
A nau que partiria da Mina com os padres Rodrigues Eanes e Antonio Fernandes com destino a Portugal pareceu-lhe providencial, já que a embarcação deveria permanecer ancorada por algum tempo em São Tomé. Aos dois padres solicitou que acompanhassem os jovens Henrique e Rodrigo e que levassem a carta ao rei D. Manuel, além de entregarem uma específica ao governador Fernão de Melo. Ao governador donatário da ilha o manicongo solicitava a visita de “alguns clérigos que ensinassem as coisas de Deus”.
(...)
Mas aconteceu que o fidalgo Fernão de Melo se encheu de cobiça ao ver o filho e o sobrinho de D. Afonso do Congo num navio carregado de preciosidades... Os jovens partiam para Portugal, onde receberiam formação religiosa, e eram acompanhados por “dois padres que, apenas por terem servido à Igreja entre os negros, voltavam com ‘mil e quinhentas manilhas e cinquenta escravos’”!
E foi assim que logo o manicongo percebeu que uma aliança com base nos ideais de solidariedade cristã seria algo impossível com o ambicioso donatário.
Fernão de Melo ouviu de alguns compatriotas que poderia obter muitas vantagens se estabelecesse “um esperto sistema de trocas com o Congo”. O navio que acabara de chegar apenas aguçou sua cobiça.
Registros do próprio D. Afonso Mbemba a Nzinga nos dão conta da resposta do fidalgo ao seu “pedido de apoio religioso”:

                   “um navio sem nenhuma coisa, somente um cobertor da cama e uma guarda porta e uma alcatifa e um céu de esparanel e uma garrafa de vidro, e assim nos mandou no dito navio um clérigo e vinha por capitão Gonçalo Peres e por escrivão João Godinho, o qual navio nós recebemos muito prazer porque cuidávamos que vinha em serviço de Deus, e ele vinha por grande cobiça”.

Leia: Rei do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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