quarta-feira, 14 de abril de 2021

“Deus lhe pague”, peça de Joracy Camargo – o fim; considerações finais a respeito do texto da peça e do filme

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/04/deus-lhe-pague-peca-de-joracy-camargo_5.html antes de ler esta postagem:

Barata esforçou-se para enxergar melhor uma mulher que estava se aproximando. De repente cutucou o colega e perguntou se não era Nancy que, pelo visto, já vinha bem cansada. O velho confirmou e sentenciou que em pouco o companheiro poderia mesmo dizer-lhe que era terrível.
Os dois adotaram a tradicional postura de pedintes... Nancy colocou-se a certa distância... Ela vinha com os dois pacotes de dinheiro e estava mesmo à procura do velho, mas não tinha como reconhecê-lo porque o chapéu encobria-lhe o rosto. Porém aconteceu que um transeunte resolveu dar-lhe umas moedas e, assim que levantou a cabeça e movimentou o chapéu para agradecer e desejar que “Nossa Senhora o proteja”, acabou se revelando.
Nancy logo se aproximou dele e perguntou-lhe se estava com fome. Ele respondeu que não e acrescentou que seu colega devia estar faminto. Ela depositou uma moeda no chapéu de Barata, que agradeceu com um “Que Deus lhe dê a felicidade que deseja”.
(...)
Mais adiante vinha outro transeunte... O velho implorou “por uma esmola a um desgraçado que não come há três dias”... O tipo deu-lhe a esmola e seguiu seu caminho.
Nancy chegou bem perto e o velho estendeu-lhe o chapéu pedindo “uma esmola pelo amor de Deus”. Então ela entregou-lhe os dois pacotes e na sequência se retirou. Mas parou depois de alguns passos... Mudando sua “fórmula”, o velho implorou: “favoreça a um desgraçado com um pouquinho de felicidade”...
Barata resolveu levantar-se, caminhou até ela e a levou pela mão para junto do velho. Este se levantou e a abraçou.
Emocionada, Nancy correspondeu ao abraço...
O velho dirigiu-se ao Barata com um “Deus lhe pague!”
Barata sorriu e respondeu: “Deus lhe pague!”

(...)

E assim termina a peça “Deus lhe pague”.
Como podemos notar, um texto simples...
Ao mesmo tempo podemos dizer que o roteiro está carregado de polêmicas. Sem dúvida, uma delas diz respeito ao modo como o “velho filósofo” concebe a condição existencial das mulheres, e mais especificamente a de Nancy, dando-nos a impressão de que, para ele, basta possibilitar-lhe boas condições materiais, conforto, joias e roupas, para que ela viva realizada e feliz. Dessa forma, nos dá a entender que pode mantê-la fiel à segurança que somente ele é capaz de garantir.
O curioso é que em certos trechos temos a impressão de que ele pretende fornecer a “fórmula do verdadeiro sucesso” em relação às mulheres. Não há como não notar que seu ponto de vista em relação a elas se contradiz às suas concepções a respeito das injustiças que ocorrem na sociedade. Ele se mostra radicalmente contra o “modo de ser burguês” e o capitalismo, no entanto não se incomoda de, ao viver a “existência paralela”, trapacear os supersticiosos, as vítimas e os “acomodados ao sistema”, dos quais obtém as migalhas que lhe proporcionam a fortuna.
De modo algum o descrito anteriormente tem intenção de crítica. Já faz tempo que a peça de Joracy Camargo é um dos patrimônios do teatro nacional e merece nossa atenção, leitura e os nossos aplausos.
(...)
Vimos que “Dios se lo pague” nos apresenta uma leitura bem mais rebuscada com a inserção de muitos outros personagens, cenários e situações que seguem paralelas à história principal... Já afirmamos isso por aqui.
Enfim, o filme proporciona isso mesmo, e se por um lado a adaptação para o cinema não aprofundou tanto as questões mais relacionadas às ideias socialistas alimentadas pelo velho, por outro construiu um enredo digno dos dramas clássicos ao fazer de Péricles, além de seu adversário “na corrida pelo amor de Nancy”, o filho herdeiro do empresário que lhe roubou na juventude o projeto da revolucionária máquina de tecidos e que o levou à prisão.
(...)
Muito mais teríamos a registrar aqui... Sobre o final, por exemplo... Na peça, o casal protagonista retoma a sua convivência. O velho saiu-se “vencedor”. Despediu-se do Barata, “Deus lhe pague”. No filme, o casal acaba entrando na igreja. Quem pode dizer que não se trata de uma “entrada solene”? Ajoelham-se diante do altar, o velho deposita a dinheirama no local das ofertas... E é tudo como se estivessem selando religiosamente sua união.
Leia: “Deus lhe pague”. Ediouro.
Indicação do filme (não informada)
Um abraço,
Prof.Gilberto

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