quarta-feira, 7 de abril de 2021

“Deus lhe pague”, peça de Joracy Camargo – Nancy quer saber dos mistérios do homem com quem vive; há uma outra existência “lá fora”; lacunas e mais dúvidas do que respostas; e qual o sentimento a leva à convivência com ele?; Péricles chega à casa e se apavora diante do velho que o acolhe com boa vontade

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/04/deus-lhe-pague-peca-de-joracy-camargo-o.html antes de ler esta postagem:

A conversa atingiu este ponto em que, para Nancy, não dava para ter certeza se ele, de fato, não sabia do que se tinha passado entre ela e o Péricles...
De repente, passou a perguntar ao velho sobre quem ele era de fato e de onde vinha... As respostas surgiram entre lacunas, já que afirmou que “ele era ele mesmo, igual aos outros e diferente de todos”; alguém que vinha “de onde os outros vieram”.
A mulher o provocou... Como ele podia ter certeza do que dizia? Em resposta, o outro disse que jamais tivera a curiosidade semelhante à de Nero. Sendo assim, aceitava com naturalidade o que se dizia acerca de suas origens e, dessa forma, conseguia tempo para pensar sobre os dias que viriam. Esses certamente só dependeriam dele mesmo...
Nancy insistiu que tinha de saber quem ele era de fato... Considerava legítima a sua veemência, já que havia decidido viver com ele. O velho respondeu que ele era o que ela podia ver ali na sua frente, na rica casa. Completou afirmando que “aquele que está lá fora é outro”. Com isso insinuava que levava uma existência diferente fora de casa, mas é claro que a afirmação teve efeito de gerar ainda mais dúvidas.
Evidentemente ela quis entender o que ele queria dizer com “aquele que está lá fora”. Então o velho confirmou que ele, que estava diante dela, tinha “outra vida” lá fora. Mas quem ele era exatamente “quando estava lá fora”? Foi a pergunta de Nancy...
Ele respondeu que “lá fora” era simplesmente um “elemento da multidão” e isso pouco importava a ela. Nancy quis saber onde e em quê ele trabalhava... “Na rua”, foi essa a resposta... Mas “o que fazia na rua”? Caridade... Acaso vivia a dar esmolas?
Neste ponto, o velho parecia começar a revelar seu segredo, mas suas respostas continuaram enigmáticas e Nancy as entendia como piadas ou escárnio. Ele sugeriu que talvez as recebesse (esmolas), e mais uma vez ela observou que não o entendia.
Novamente ele falou como quem não estava preocupado em dirimir dúvidas:

                   “Eu sou uma espécie de pia de água benta, onde toda gente vai benzer-se para se livrar dos males. Junto de cada pia de água benta, há uma caixinha onde se deposita o preço das graças divinas”...

Nancy ouviu com atenção, mas, ainda sem entender, manifestou que começava a ter medo do que ouvia. Explicou que gostaria que ele fosse como os demais, que “falam sem mistérios”.
A respeito da “sugestão” que acabava de ouvir, o velho respondeu que, se assim fizesse, “seria um banal” e dessa forma nem ele se interessaria pela própria pessoa... De qualquer modo, conservaria a felicidade enquanto continuasse a gostar dela... Ora, se lhe perguntasse sobre o seu sentimento em relação a ele, certamente ela não responderia...
Ele prosseguiu arriscando o que ela poderia responder... Amor? Medo? Não era nada disso... Talvez ela nutrisse por ele uma “curiosidade inexplicável” que, para muitos, seria algo como “sugestão”... Ignorantes diriam que se trata de “força magnética”... Uma estalajadeira talvez dissesse que ele “tem parte com o diabo”.
Nancy pensou sobre o que acabara de ouvir. Disse que não sabia exatamente o que a mantinha presa a ele... Eventualmente pensava que nutria “uma grande amizade”... O velho discordou dizendo que “a amizade é inimiga dos instintos” e que ela não estava “presa” a ele. O que a prendia eram a incerteza e a dúvida. Na sequência disse que a dúvida era ele mesmo e que, se se revelasse, provocaria nela uma grande raiva... Então seria o caso de perguntar se isso interessava realmente, pois a convivência com ele proporcionava-lhe uma boa condição.
Ela se levantou reclamando que “não há nada pior do que a dúvida” e se retirou.
Ele sorriu demonstrando satisfação.
(...)
Péricles entrou sussurrando o nome de Nancy, mas deparou-se com seu desafeto e exclamou um espanto. O outro o cumprimentou e o rapaz ficou confuso, então improvisou que viera à casa para agradecer-lhe pelo favor da noite anterior.
O velho assentiu, mas destacou que se zangara porque ficara sabendo que lhe devolvera o dinheiro. Como pudera fazer isso se lhe dissera que não tinha necessidade? Péricles ainda mais se apavorou ao notar os dois pacotes sobre o divã enquanto ouvia o dono da mansão dizer-lhe que “o dinheiro é seu” e, assim sendo, devia levá-lo ao Banco para que se reabilitasse de vez. Emendou que estava tudo certo, pois Nancy já “sabia de tudo”.
O velho despediu-se com um “até amanhã” e o deixou só na grande sala.
Leia: “Deus lhe pague”. Ediouro.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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