sábado, 3 de abril de 2021

“Rei do Congo – A mentira que virou folclore”, de José Ramos Tinhorão – relatos dramáticos do florentino Filippo de Sassetti acerca da chegada de negros cativos a Lisboa; relato de anônimo italiano de opinião contrária à condição de desafortunados dos negros a partir de pesquisa de A.H. de Oliveira Marques; raro apontamento de Cosme de Médici sobre manifestações de representantes de “nações bárbaras” dominadas por Portugal em procissão de Corpus Christi de 1669


Filippo Sassetti, um “comissário de negócios” de Florença, permaneceu em Portugal de 1578 a 1583... Também ele nos deixou registros sobre a entrada de negros no país ibérico.
No fragmento que segue, temos informações de Sassetti sobre a procedência dos negros que chegavam a Portugal e a que se destinavam... O italiano emite ainda impressões sobre a constituição física (e intelectual) do contingente escravo:

                   “Os negros gentílicos são mais escuros do que a tinta de escrever (non è tanto tinto l’inchiostro), de baixa estatura, fortes, e próprios para o trabalho bruto (cose de fatica). São trazidos parte da Índia, parte de Moçambique, e parte de lugares vizinhos da Índia mais para o Equinócio. De São Tomé vêm grandes levas de negros arrebanhados por toda a costa da África, de Cabo Verde até aquele paralelo do Equinócio, ao norte do Equador. Constituem estes também gente mais de trabalho que de inteligência, sendo os que vêm de Cabo Verde os negros mais afáveis, e que com mais facilidade aprendem o que têm que fazer, inclusive tocar alaúde”.

Há um trecho destacado pelo autor em que, graças aos registros de Sassetti, podemos conhecer a precariedade no desembarque dos negros, que chegavam exaustos a Portugal.
No referido trecho, percebemos que o florentino se espantou com o tumulto que mais se assemelharia a um “bloco de negros” atropelando-se na disputa por um lugar onde pudessem saciar a sede. De acordo com suas palavras, ele viu:

                   “um enorme bebedouro de madeira no chão, sobre o qual se debruçavam aqueles pobres coitados tentando sugar algo lambendo-lhe as bordas, de uma forma que, quer pela maneira com que o faziam, quer pela impressão causada, em nada se diferençavam de um bando de porcos lutando por enfiar o focinho na sopa de um cocho”.

(...)
Sem dúvida, o quadro descrito anteriormente é dos mais dramáticos e nos transmite a impressão de que a chegada, ou passagem dos negros por Lisboa, antecipava sua infelicidade em Portugal. Todavia, Tinhorão nos traz informações que se contrapõem às notas de Sassetti.
Há outro relato de um italiano anônimo e contemporâneo* do “comissário de negócios” florentino que, além de não descrever infortúnios, dá a entender que os que chegavam para uma condição de cativos acabavam se integrando “à vida da cidade de maneira muito menos sofrida”...
                   *já que sua permanência em terras lusitanas ocorreu entre 1578 e 1580.
Os negros do final do século XVI em Portugal são descritos pelo anônimo italiano como “descontraídos e alegres”, e nisso se constituía a principal diferença entre eles e os portugueses. De acordo com fragmento do relato:

                   “ao passo que os portugueses, por gravidade, andam sempre tristes e melancólicos, os escravos mostram-se sempre alegres, não fazem senão rir, cantar, dançar e embriagar-se publicamente em todas as praças”.

O autor de “Rei do Congo” esclarece que o testemunho do italiano anônimo foi descoberto pelo professor A.H. de Oliveira Marques. A segunda parte do manuscrito traz o título de “Ritratto et riverso del Regno di Portogallo” e, de acordo com nota, “servia como contraponto crítico às informações históricas da primeira parte.
O professor Marques Oliveira fez a tradução e publicou o documento (com o título “Uma descrição de Portugal em 1578-1580) na revista “Nova História” de Lisboa, nº 1, de maio de 1984.
(...)
A partir do século XVII, e sobretudo ao tempo da União Ibérica, praticamente não se verificaram registros estrangeiros acerca da “vida social portuguesa”...
O livro dá destaque a um apontamento de Cosme de Médici, herdeiro da famosa família que comandava a Toscana e que realizou uma série de viagens pela Europa. Sobre a procissão de corpus Christi de 1669 que teve a oportunidade de acompanhar, notou a “representação de diversas nações de bárbaros sobre o domínio do rei de Portugal”. De acordo com o autor, certamente as manifestações observadas pelo herdeiro dos Médicis se referem a “negros de Lisboa”.
Leia: Rei do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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