sábado, 17 de abril de 2021

“Rei do Congo – A mentira que virou folclore”, de José Ramos Tinhorão – outros fragmentos de “A corte da rainha D. Maria I: correspondência de W. Beckford”; registros a respeito da participação de negros na coleta de donativos para a festa da Coroação de Jesus; sobre o francês J.-B.-F. Carrère e suas anotações referentes ao costume das portuguesas de se fazerem acompanhar por “criadas negras” e à popular festa, romaria e procissão em honra à Nossa Senhora da Atalaia; A.P.D.G, um inglês anônimo, suas considerações sabre a atuação dos negros na arrecadação de donativos para a Senhora da Atalaia e a respeito da apresentação de Menino Jesus negro


Outro importante registro de Willian Beckford, também encontrado em “A Corte da rainha D. Maria I: correspondência de W. Beckford”, com data já de fins de 1787 nos dá conta de um evento bem barulhento e agitado que ocorreu na rica casa onde estava instalado.
O evento foi a visitação de “um grupo de foliões devotos da Irmandade do Sacramento”... A casa onde o inglês havia se instalado pertencia a “um visconde camerista da casa Real”, no bairro de Cova da Moura (onde também se localizava o Palácio das Necessidades, próximo da residência do “príncipe de Sussex, filho do rei Jorge III da Inglaterra”).
Os foliões, que arrecadavam donativos para a festa da Coroação de Jesus, chegaram no momento mesmo em que Beckford e a gente do visconde português tomavam o tradicional chá da tarde. A respeito da visita dos foliões, algo inesperado pelo inglês, há o relato:

                   “(...) fomos interrompidos por uma grande algazarra na rua, e correndo à varanda demos com um grosseiro magote de velhas bruxas, rapazes e mendigos andrajosos, trazendo à sua frente meia dúzia de tambores e outros tantos pretos de véstias encarnadas, tocando trombetas com uma veemência insólita, voltadas diretamente para a minha casa.”
                   “(...) eu recuava um pouco para evitar ser queimado por um foguete, que zuniu a uma polegada do meu nariz, quando um dos meus criados entrou com um crucifixo de prata e uma amabilíssima mensagem das freiras do Convento do Sacramento, que enviavam os seus músicos com tambores e foguetes, a convidar-nos para uma grande festa no seu convento, em honra do Coração de Jesus”.

(...)
Outro estrangeiro em Lisboa, um francês anônimo, J.-B.-F. Carrère, provavelmente fugitivo das agitações revolucionárias na França do final do século XVIII, também nos deixou relatos a respeito “dos usos e costumes da Lisboa dos setecentos”:

                   “Uma portuguesa que sai à rua a pé jamais vai só: faz-se acompanhar de criadas cobertas por largos mantos de baeta, que caminham atrás delas como lacaios; as que não tem criadas contratam-nas quando querem sair, principalmente nos dias santos, para irem à missa; são geralmente negras e mulatas as que se prestam a esse serviço; o preço normal é de meio tostão ou seis ‘sous’ três ‘deniers’ por saída”.

O referido francês, possivelmente Joseph-Barthélemy-François Carrère, chegou a Portugal em 1796... Suas cartas foram compiladas em “Tableau de Lisbonne em 1796, suivi de letres écrites de Portugal sur l’etat ancien et actuel de ce royaume”.
A encadernação esclarece que Carrère considerou o carnaval de Lisboa (entrudo) bem desanimado... Por outro lado, cravou que os portugueses se empolgavam muito mais com as procissões religiosas e, especificamente em relação a uma “do Senhor dos Passos” durante a Quaresma, afiançou que:

                   “Tomam parte nela cerca de 4 ou 5 mil pessoas, a maior parte negros e mulatos, negras e mulatas. É crença geral que acompanhar esta procissão sete anos seguidos absolve o participante do pecado mortal”.

A respeito da romaria em honra à Nossa Senhora da Atalaia, “na outra margem do Tejo”, uma das mais populares entre os lisboetas e que ocorre desde o começo do século XVI, o francês destacou que:

                   “Esta (a procissão de romaria a Atalaia) é interessante por apresentar o espetáculo singular de incluir grupos de negros, negras, mulatos e mulatas, que fantasiados das formas mais extravagantes precedem a procissão cantando e dançando”.

(...)
Também do final do século XVIII são os registros de um viajante inglês que, para manter-se no anonimato, assinava apenas A.P.D.G. Suas anotações a respeito da mesma procissão/romaria em honra à Nossa Senhora da Atalaia foram ilustradas por desenho que continha explicações:

                   “O desenho que se vê ao lado mostra um grupo de componentes da irmandade de N.S. da Atalaia no ato de tirar esmolas para a festa da santa. Um deles leva a imagem do Menino Jesus sentado numa cadeira, adornado com lantejoulas e fitas. Estas são apresentadas aos passantes que as beijam, sempre tirando o chapéu e deixando cair uma moeda na sacola”.
                   “O leitor deve observar que o Menino Jesus é da mesma cor que o que o leva para a festa da Virgem, o que se explica. Assim como os europeus atribuem superioridade aos de sua cor, assim fazem também os negros em relação à sua; e, por isso, não apenas acham que a divindade pode assumir a forma humana, mas inclusive que o diabo é da nossa cor (o branco do europeu), e assim o representam”.

Leia: Rei do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas