quarta-feira, 28 de abril de 2021

“O Estrangeiro”, de Albert Camus – um estranho no meio do pátio dos velhos; tomando conhecimento do horário sepultamento com o ritual da religião; a morgue, sua claridade e o caixão no centro da sala; a enfermeira de traços árabes com o lenço colorido à cabeça e a atadura no rosto; o porteiro aparece para reabrir o caixão, é interrompido por Meursault e decide permanecer de pé atrás de sua cadeira; sonolência, tentativa de estabelecer diálogo e mais uma vez o rapaz se atrapalha ao não se lembrar da conversa que haviam tido antes

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/04/o-estrangeiro-de-albert-camus-mais.html antes de ler esta postagem:

O diretor conduziu Meursault pelo pátio... Havia grupos aqui e ali, e os idosos conversavam ruidosamente, mas calavam-se assim que o desconhecido se aproximava. O assunto voltava logo que os dois seguiam em frente, e tinha-se a impressão de que se ouvia “um papaguear de periquitos”.
Era a conversa dos envelhecidos, mas Meursault não teve tempo de elucubrar sobre os prováveis assuntos porque, ao chegarem “à porta de uma pequena construção”, o diretor o deixou e se despediu dizendo que estava à sua disposição no escritório... Explicou que o enterro estava marcado para as dez da manhã do dia seguinte, pois desse modo se permitiria que ele velasse a mãe durante a noite. Acrescentou ainda que soubera através dos internos que ela desejava um “enterro religioso” e, assim sendo, ele mesmo havia tomado as providências a respeito.
(...)
Meursault agradeceu... E na sequência pôs-se a pensar na religiosidade da mãe.
Ela não era ateia, mas também não podia se dizer que fosse devotada à religião. O momento não era propício a mais essas divagações, então entrou e voltou sua atenção à sala, que era muito clara, com suas paredes caiadas e uma grande vidraça que permitia a entrada da luz natural em abundância. Havia “algumas cadeiras e cavaletes em forma de X”... Dois desses suportes sustentavam o caixão no meio da sala.
A respeito do féretro “de madeira pintada de casca de noz”, notou o brilho dos parafusos atarraxados. Junto ao caixão estava uma enfermeira de origem árabe. Ela tinha “um lenço colorido na cabeça” e trajava uma bata branca.
Antes que pudesse captar algo mais do recinto, foi interrompido pelo porteiro chegou esbaforido e a gaguejando... Queria dizer que não deviam ter fechado o caixão, e que estava ali para abri-lo para permitir que o rapaz contemplasse a mãe morta. No momento mesmo em que o tipo se aproximou do caixão, Meursault o deteve.
O porteiro perguntou se ele não desejava ver a mãe morta e a resposta foi “não”. O tipo se calou enquanto ele se embaraçava em seus pensamentos ao imaginar que não devia ter agido daquele modo.
O porteiro quis saber o motivo de ele não querer ver a mãe... Meursault respondeu que não sabia. Neste ponto o rapaz não entendeu que o funcionário o estivesse censurando, mas sim que estava curioso...
Aconteceu que o tipo retorceu os bigodes e, sem encará-lo, afirmou que compreendia.
(...)
Ele notou que os olhos do funcionário eram azuis claros e que sua pele era de pouca vermelhidão. O homem ofereceu-lhe uma cadeira e sentou-se mais atrás... A enfermeira de traços árabes se retirou de perto do caixão. Conforme ela se encaminhava para a saída, o porteiro disse a Meursault em tom de confidência que a mulher tinha um cancro.
De fato, pôde notar que ela tinha uma atadura debaixo dos olhos... A tira envolvia a cabeça e na região do nariz não se notava nenhuma saliência. Logo que a mulher se retirou, o porteiro disse que o deixaria sozinho. Meursault fez um gesto qualquer, talvez o dispensando...
Mas o fato é que, em vez de se retirar, o tipo resolveu permanecer de pé atrás do filho da defunta... Sentado na cadeira, e de costas para o homem, Meursault sentiu-se incomodado... A luz do entardecer enchia a sala, e desde a vidraça ouvia-se o zunir de besouros...
O zunir dos insetos e a claridade eram monótonos e provocaram sonolência no rapaz... Talvez para não vacilar diante da preguiça que o dominava, perguntou ao porteiro se já trabalhava há muito tempo no asilo. Falou sem se virar para o acompanhante, que imediatamente respondeu “cinco anos”. Meursault chegou a pensar que, tão rápida havia sido a resposta, o tipo sempre estivera preparado para aquela pergunta.
Depois o homem pôs-se a tagarelar como já o fizera à sua chegada. Disse que ninguém imaginava que um dia ele “acabaria como porteiro de asilo”. E em Marengo! Era de Paris e contava sessenta e quatro anos... Meursault mostrou-se admirado. Então o funcionário não era de Marengo? Mas então lembrou que ele estivera a falar-lhe antes de o levar o diretor... Talvez já tivesse falado a este respeito, e era certo que lhe falara sobre o sepultamento de sua mãe.
O porteiro era da opinião de que deviam enterrá-la o quanto antes porque o calor era dos mais intensos na planície, e mais ainda onde estavam. Quando dissera essas coisas, falara também que era de Paris, onde “fica-se com o morto, às vezes três ou quatro dias”. Em Marengo e nas paragens vizinhas não era assim, e os parentes do defunto nem tinham tempo para “digerir a fatalidade” e já tinham de “correr atrás do carro funerário”.
Meursault lembrou que o tipo lhe dissera essas coisas e que havia sido interpelado pela esposa, que o advertiu dizendo que “não são coisas que se digam ao senhor”... Só agora ele se lembrava, inclusive que o velho tinha corado e pedido desculpa. E mais... Ele mesmo teria dito ao homem que não precisava se desculpar, pois considerava aquela uma verdade interessante.
Leia: “O Estrangeiro”. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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