Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/04/o-estrangeiro-de-albert-camus-mais.html antes
de ler esta postagem:
O
diretor conduziu Meursault pelo pátio... Havia grupos aqui e ali, e os idosos
conversavam ruidosamente, mas calavam-se assim que o desconhecido se aproximava.
O assunto voltava logo que os dois seguiam em frente, e tinha-se a impressão de
que se ouvia “um papaguear de periquitos”.
Era a conversa dos envelhecidos, mas Meursault não teve tempo de elucubrar
sobre os prováveis assuntos porque, ao chegarem “à porta de uma pequena
construção”, o diretor o deixou e se despediu dizendo que estava à sua disposição
no escritório... Explicou que o enterro estava marcado para as dez da manhã do
dia seguinte, pois desse modo se permitiria que ele velasse a mãe durante a
noite. Acrescentou ainda que soubera através dos internos que ela desejava um “enterro
religioso” e, assim sendo, ele mesmo havia tomado as providências a respeito.
(...)
Meursault agradeceu... E na
sequência pôs-se a pensar na religiosidade da mãe.
Ela não era ateia, mas
também não podia se dizer que fosse devotada à religião. O momento não era
propício a mais essas divagações, então entrou e voltou sua atenção à sala, que
era muito clara, com suas paredes caiadas e uma grande vidraça que permitia a
entrada da luz natural em abundância. Havia “algumas cadeiras e cavaletes em
forma de X”... Dois desses suportes sustentavam o caixão no meio da sala.
A respeito do féretro “de madeira pintada de casca de
noz”, notou o brilho dos parafusos atarraxados. Junto ao caixão estava uma
enfermeira de origem árabe. Ela tinha “um lenço colorido na cabeça” e trajava
uma bata branca.
Antes que pudesse captar algo mais do recinto, foi interrompido pelo
porteiro chegou esbaforido e a gaguejando... Queria dizer que não deviam ter
fechado o caixão, e que estava ali para abri-lo para permitir que o rapaz
contemplasse a mãe morta. No momento mesmo em que o tipo se aproximou do caixão,
Meursault o deteve.
O porteiro perguntou se ele não desejava ver a mãe
morta e a resposta foi “não”. O tipo se calou enquanto ele se embaraçava em
seus pensamentos ao imaginar que não devia ter agido daquele modo.
O porteiro quis saber o motivo de ele não querer ver a mãe... Meursault
respondeu que não sabia. Neste ponto o rapaz não entendeu que o funcionário o
estivesse censurando, mas sim que estava curioso...
Aconteceu que o tipo retorceu os bigodes e, sem encará-lo, afirmou que
compreendia.
(...)
Ele notou que os olhos do funcionário
eram azuis claros e que sua pele era de pouca vermelhidão. O homem ofereceu-lhe
uma cadeira e sentou-se mais atrás... A enfermeira de traços árabes se retirou
de perto do caixão. Conforme ela se encaminhava para a saída, o porteiro disse
a Meursault em tom de confidência que a mulher tinha um cancro.
De fato, pôde notar que ela
tinha uma atadura debaixo dos olhos... A tira envolvia a cabeça e na região do
nariz não se notava nenhuma saliência. Logo que a mulher se retirou, o porteiro
disse que o deixaria sozinho. Meursault fez um gesto qualquer, talvez o
dispensando...
Mas
o fato é que, em vez de se retirar, o tipo resolveu permanecer de pé atrás do
filho da defunta... Sentado na cadeira, e de costas para o homem, Meursault
sentiu-se incomodado... A luz do entardecer enchia a sala, e desde a vidraça
ouvia-se o zunir de besouros...
O zunir dos insetos e a claridade eram monótonos e provocaram sonolência
no rapaz... Talvez para não vacilar diante da preguiça que o dominava,
perguntou ao porteiro se já trabalhava há muito tempo no asilo. Falou sem se
virar para o acompanhante, que imediatamente respondeu “cinco anos”. Meursault chegou
a pensar que, tão rápida havia sido a resposta, o tipo sempre estivera
preparado para aquela pergunta.
Depois o homem pôs-se a
tagarelar como já o fizera à sua chegada. Disse que ninguém imaginava que um
dia ele “acabaria como porteiro de asilo”. E em Marengo! Era de Paris e contava
sessenta e quatro anos... Meursault mostrou-se admirado. Então o funcionário
não era de Marengo? Mas então lembrou que ele estivera a falar-lhe antes de o
levar o diretor... Talvez já tivesse falado a este respeito, e era certo que
lhe falara sobre o sepultamento de sua mãe.
O porteiro era da opinião de que deviam enterrá-la o
quanto antes porque o calor era dos mais intensos na planície, e mais ainda onde
estavam. Quando dissera essas coisas, falara também que era de Paris, onde “fica-se
com o morto, às vezes três ou quatro dias”. Em Marengo e nas paragens vizinhas
não era assim, e os parentes do defunto nem tinham tempo para “digerir a fatalidade”
e já tinham de “correr atrás do carro funerário”.
Meursault lembrou que o tipo lhe dissera essas
coisas e que havia sido interpelado pela esposa, que o advertiu dizendo que “não
são coisas que se digam ao senhor”... Só agora ele se lembrava, inclusive que o
velho tinha corado e pedido desculpa. E mais... Ele mesmo teria dito ao homem
que não precisava se desculpar, pois considerava aquela uma verdade
interessante.
Leia: “O
Estrangeiro”. Editora Abril.
Um
abraço,
Prof.Gilberto