quarta-feira, 14 de abril de 2021

“Deus lhe pague”, peça de Joracy Camargo – retornando uma última vez à porta da igreja; sem saber da decisão de Nancy, o velho pôs-se a responder os questionamentos do Barata com a convicção de que a mulher andava à sua procura; pouco tempo havia se passado desde que se despedira dela e do jovem Péricles


Como vimos, Péricles foi obediente ao pedido de Nancy e se retirou. Antes, porém, parou por um instante junto à porta e assim pôde ouvir suas últimas palavras: “a felicidade mandou-me lembranças; vou procurá-la para agradecer”.
Depois o cenário tornou-se escuro...
A luz retornou aos poucos, mas na parte do tablado onde se encontra a igreja, onde estão o velho e seu companheiro mendigo.
(...)
Em sua narrativa ao Barata, o velho contou-lhe detalhes apenas até a parte em que havia se despedido dos dois após ter-lhes revelado a sua condição de “falso mendigo”, sua “existência paralela”. Obviamente não podia ter a menor ideia de como se desenrolou a conversa entre Nancy e Péricles logo que os deixou a sós.
É por isso que vemos o Barata perguntando ao amigo se ele pensava que a mulher fosse capaz de fugir com o aventureiro rapaz. O velho respondeu que não sabia, mas, de sua parte, tinha certeza de que cumprira o dever.
Como não podia deixar de ser, também essa afirmação provocou dúvidas ao Barata... Então o outro explicou-lhe que, em relação à mulher, o dever do homem “é torná-la feliz”... Mas será mesmo que ela se realizaria ao lado do jovem? Quanto a isso, tinha a dizer que, o que dependia dele, lhe foi proporcionado... Todo o resto era por conta dela mesma.
(...)
De fato, a história era das mais intrigantes... Barata, em sua simplicidade, não podia esconder a admiração e o espanto que sentia. Conforme as horas se passaram, tornou-se um admirador do velho misterioso, um “filósofo” e seus ensinamentos chocantes, um perdido entre os miseráveis.
Barata não sabia o que pensar a respeito do drama do outro com sua jovem esposa... Talvez até sentisse pena do velho. Sem saber o que mais dizer, perguntou-lhe quanto tempo havia se passado desde que se despedira de Nancy e de seu pretendente.
O velho respondeu que, como havia sido às oito horas daquela noite mesma em que haviam se conhecido na porta da igreja, poucas horas haviam se passado. Emendou que, depois de deixá-los na sala., resolveu “trocar o fardamento” e se retirar. Barata concluiu que quando Nancy havia passado por eles devia estar à sua procura.
Sim. O velho disse que o companheiro tinha razão. A mulher o estava procurando. Mas então, “por que não se deu a conhecer?” Simplesmente para que ela tivesse tempo suficiente para refletir sobre a felicidade que buscava.
Barata quis saber por que o amigo resolvera confessar-lhe “que vivia na mendicância”... O velho salientou que pretendia que ela conhecesse melhor o contraste entre ele e o jovem concorrente... Só por isso?
Havia essa ideia, mas ele admitiu que a revelação da “existência paralela” tinha também um caráter de vingança, pois, vaidosa como era, Nancy deve ter experimentado certa dor ao saber que “havia vivido com um mendigo”. Ele, que se esforçou para torná-la feliz, proporcionou-lhe “um verdadeiro horror à felicidade”...
O velho projetou que, doravante, a mulher teria problemas para passar pelas igrejas, transpor suas portas; certamente teria horror a doar esmolas e até sentiria nojo do dinheiro. Que situação! “Mendigos, igrejas e dinheiro há por toda parte”!
(...)
Barata ainda arriscou uma opinião e disse que a mulher esqueceria toda aquela situação desagradável... O velho não concordou, pois entendia que ela teria de se reconciliar com tudo o que havia se passado para poder viver minimamente tranquila. A reconciliação pela qual ela teria de passar, segundo ele, seria impossível sem a sua assistência.
(...)
Que horas seriam? Barata perguntou preocupado.
Mais ou menos meia-noite... Por onde andava a “coitadinha”?
O velho estava convicto de que Nancy perambulava pelas igrejas. Barata perguntou-lhe se acreditava que ela andasse à sua procura... Sim, tinha certeza! Não fosse assim, não a teria deixado a sós com o tipo.
Ele entendia que, estando longe, a influenciaria muito mais, pois sabia que a revelação que fizera a deixaria pensando e, por mais que o jovem argumentasse a favor de uma “nova vida”, a “sugestão da ausência do velho companheiro” lhe seria muito mais forte.
Ao explicar a sua estratégia, fez Barata pensar que ele se tratava de um velho terrível... Então adiantou-se a justificar dizendo que, no caso, era uma questão de “pontos de vista”.
Leia: “Deus lhe pague”. Ediouro.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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