quarta-feira, 17 de março de 2021

“Rei do Congo – A mentira que virou folclore”, de José Ramos Tinhorão – relato do padre alemão Langmann de Falkenstein por ocasião da participação de negros e outros estrangeiros durante o casamento de D. Leonor com Frederico III; pedido de “presente exótico” de Leon de Rosmital para a curiosidade do rei Jorge de Poliebrad, da Boêmia; lucros auferidos com o comércio de escravos africanos, inclusive pela casa real portuguesa; pequeno fragmento de Lunardo da Chá Masser; João Batista Venturino e uma comparação da condição dos negros em Portugal com a dos cavalos em Roma


A intensa atividade de escravos no porto e ruas de Lisboa conferia à urbe a ideia de “cidade de negros”... De acordo com o livro, os primeiros registros a retratarem a movimentação de africanos “já ambientados em Portugal datam de 1451” e constam do relato feito pelo padre Langmann de Falkenstein sobre as festas que ocorreram durante o casamento “da princesa D. Leonor (irmã de D. Afonso V)” com Frederico III, imperador do Sacro Império Romano-Germânico. O casamento ocorreu por procuração e mesmo assim foi marcado por exibições públicas diversas.
O fragmento abaixo, de “Memórias de forasteiros, aquém e além-mar: Portugal, África e Índia, séculos XII-XVI”, foi recolhido por Rodrigues Cavalheiro e Eduardo Dias a partir da compilação de Antonio Caetano de Sousa para o Tomo I de “Provas da história genealógica da Casa Real Portuguesa” (1739):

                   “Judeus e mouros, etíopes e canários, escravos da África e selvagens das ilhas atlânticas, exibiam suas danças e combates (coreografia africana) trajados à sua maneira e ostentando suas armas próprias, os instrumentos musicais que costumam usar”.

(...)
Em 1465, o barão Leon de Rosmital, realizou viagem diplomática a Portugal e a mais outros oito países. Ele havia sido incumbido pelo rei Jorge de Poliebrad, da Boêmia, de chefiar comitiva composta por quarenta cavaleiros.
Depois de passar por Inglaterra, França e Espanha, a embaixada chegou a Braga, sendo recepcionada por Afonso V. Consta que, por ocasião da tradicional troca de presentes, Rosmital revelou aos portugueses sua intenção de levar dois negros à Boêmia para mostrá-los ao rei... Alexandre Sasek, cronista da missão diplomática alemã, explica em seus registros que nas diversas regiões de Portugal podiam encontrar africanos, salientando tratar-se de situação comum entre os lusitanos daquela época:

                   “O irmão do rei (D. Fernando, duque de Viseu, que morreu em 1470 aos 37 anos), que presenciara este pedido, entrou a rir, dizendo: ‘Isto que pedes, amigo, não vale nada, pede coisa mais importante e decente que dois negros. Mas, já que tanto queres, aceita uma dádiva minha, que é um macaco, e assim irás para a tua terra egregiamente presenteado. É de crer que nas tuas regiões não haja negros nem macacos. Visto a instância com que pedes estas coisas” (...) “E como quer que o senhor dissesse que raros tinha visto, o duque respondeu: ‘Nós temos disto muito. O rei, meu irmão, possui três cidades na África, para onde costuma enviar todos os anos um exército, e por mais pequeno que seja a expedição, nunca vem tão mal servida que não traga 100 mil ou mais negros de ambos os sexos”.

(...)
Durante os séculos XVI e XVII, por motivos diversos e em circunstâncias específicas, italianos registraram a presença de negros em Portugal.
O livro destaca que ao tempo do reinado de D. Manuel I, o veneziano Lunardo da Chá Masser, teve de comparecer perante o monarca português no ano de 1504 para se defender de uma acusação feita por um seu conterrâneo. Em “Rei do Congo” não temos detalhes a respeito da intriga ou da “falsa acusação” contra ele, apenas que, a certa altura de sua defesa, Masser afirmou “que a importação oficial de dois mil africanos por ano rendia nada menos de 150 mil ducados ao soberano português”.
O lucro auferido com a compra e venda de escravos, inclusive por agentes do rei, esclarece em boa medida o motivo de se encontrarem tantos africanos em Portugal...
Em 1571, João Batista Venturino, outro italiano e “secretário do legado papal cardeal Alexandrino”, por ocasião de viagem à França e à Península Ibérica, esteve entre os portugueses. A comitiva foi recepcionada em Elvas por D. João, jovem duque de Bragança que, de acordo com informações de “Portugal e os estrangeiros”, de Manuel Gonçalves Branco, foi caracterizado por Venturino como “mancebo de 25 anos, de medíocre estatura, trigueiro, de boa cor, vista curta e de pouca robusta compleição”*.
O italiano redigiu narrativa acerca das homenagens que receberam no Alentejo e, dessa maneira, fez revelações acerca do grande contingente de negros e da (des)consideração que portugueses dispensavam a eles... Em Viçosa, Venturino destacou o som dos “atabaques tocados por pretos” e salientou sua contrariedade em relação ao “luxo da recepção” que tiveram: “Os escravos são considerados e tratados como as raças de cavalos na Itália pelo mesmo método, o que se busca é ter muitas crias para as vender a 30 e a 40 escudos”.

                   * Uma nota esclarece que a mesma documentação, no caso a narrativa de Venturini, foi utilizada por Alexandre Herculano em “Relato do membro da delegação enviada a Portugal pelo papa Pio V em 1571 sob a chefia de seu sobrinho Miguel Benello, o cardeal Alexandrino”, publicado em “O Panorama, Vol. I, 2ª série, 1842”. Todavia, Herculano omitiu certos trechos por considerar que Venturino, de “linguagem ‘bastante solta’”, “mostrava o poderoso duque de Bragança como senhor de escravos destinados ao comércio”.

Leia: Rei do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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