Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-um-pouco-sobre_14.html antes
de ler esta postagem:
Ao retornar para o apartamento, Winston passou
rapidamente diante da teletela, que já não tocava a música militar, e acessou
novamente a pequena mesa. Enquanto recuperava-se do susto e do assédio do filho
dos Parsons, ouviu a mensagem que a placa metálica estava transmitindo... Uma
voz belicosa estava anunciando as “novidades” a respeito de uma “nova Fortaleza
Flutuante”, dotada de armamentos espetaculares, que os militares haviam
posicionado “entre a Islândia e as Ilhas Faroe”.
O rapaz ainda pensava
a respeito da visita que fizera ao apartamento vizinho... Calculou que a esposa
de Tom Parsons só podia levar uma vida muito difícil e assustadora por ter de
lidar cotidianamente com os filhos fanatizados. Em sua opinião, era bem
provável que em poucos anos eles se tornassem agentes do Partido e a
investigariam por suspeitas de heterodoxia.
(...)
Era com certa aversão que Winston pensava nas crianças de um modo geral...
Assim
como a maioria delas, os filhos dos Parsons eram “horríveis”. E o caso é que as
várias associações, como a dos Espiões, tinham plenas condições de as
doutrinar, transformando-as em “pequenos selvagens incontroláveis” que
abominavam e reprimiam qualquer tendência sediciosa contrária à disciplina que
recebiam.
De modo algum
estranhara o comportamento do garoto... Winston sabia que as crianças “adoravam
o Partido, e tudo quanto tinha ligação com ele”. As muitas atividades
proporcionadas as levavam à obediência cega ao Grande Irmão... Desde cedo
participavam de encontros e expedições específicos, aprendiam canções e
palavras de ordem de conteúdo fanático. Além disso, meninos e meninas eram
levados a manipular simulacros de armas de madeira. Desse modo, não era de se
estranhar que vivessem “caçando inimigos do Estado”. Alguns tipos se tornavam
alvos suspeitíssimos da garotada do partido: “forasteiros, traidores,
sabotadores, ideocriminosos”.
Os
adultos conheciam a fama dos pequenos... Os pais sentiam-se acuados pelos
próprios filhos. Publicações semanais “do Times” traziam matérias enaltecendo “heróis
infantis” que haviam coletado informações que comprometiam os pais e, por isso
mesmo, apresentavam denúncia contra eles à Polícia do Pensamento.
(...)
Winston percebeu que
já não sentia a dor que a estilingada do menino provocara... Voltou-se ao “belo
livro de folhas em branco” e refletiu se ainda tinha algo a registrar... Nada
de específico lhe veio à mente até que pensou em O’Brien novamente.
Lembrou-se de que há uns
sete anos sonhara que estava caminhando em um quarto muito escuro, e que alguém
que estava sentado no mesmo cômodo lhe disse que havia percebido os seus
passos... O mistério ficou por conta de uma frase que pronunciou na sequência: "Tornaremos
a nos encontrar onde não há treva".
Winston entendia que a mensagem estava mais para uma declaração do que
para “uma ordem”. Pelo menos no sonho, aquilo não provocou qualquer reação de
estranheza de sua parte. Algum tempo depois é que começou a atribuir algum
sentido ao sonho. Diante das folhas em branco, tentou calcular se o sonho
datava de antes ou depois de ter visto o O’Brien pela primeira vez. Não podia
ter certeza, mas de qualquer modo avaliava que devia haver uma relação entre o
sonho e aquele tipo do Partido Interno e, se era assim, “O'Brien lhe falara na
escuridão”.
Essa sugestão o levou a pensar mais a respeito dos olhares trocados
durante os “dois Minutos de Ódio” daquela manhã... Por mais que matutasse, não
conseguia concluir se o outro podia devotar-lhe amizade ou o contrário. De qualquer
modo, isso parecia pouco importar, já que entre eles parecia existir “um laço
de compreensão mais importante do que o afeto ou a ideologia” e, se de fato o
sonho tinha alguma relação com O’brien, eles ainda se encontrariam “onde não há
treva”. Mesmo sem saber o significado, Winston passou a achar que aquilo
ocorreria de um ou outro modo.
(...)
Por um instante a teletela silenciou... Na sequência
transmitiu “um toque de clarim, belo e límpido”. A mesma voz beligerante voltou
a chamar a atenção anunciando uma edição extraordinária a respeito de novidades
da “frente de Malabar”, onde as tropas mobilizadas no sul da Índia haviam
obtido “gloriosa vitória” que certamente selaria o fim da guerra...
Winston ouviu o
noticiário e, em contradição à animação do locutor, considerou que a matéria
trazia “más notícias”. Em síntese, muito derramamento de sangue por ocasião do
massacre de tropas eurasianas. Depois dessas “animadoras revelações”,
anunciou-se a redução da “ração de chocolate”, “de trinta para vinte gramas”.
(...)
O
equipamento de espionagem passou a tocar “Oceania, nossa terra”, o hino que
todos deviam acompanhar de pé... Winston soltou um leve arroto, talvez ainda em
consequência do gin, e decidiu continuar sentado, pois a posição da mesinha lhe
era favorável. Calculou que a execução do hino tanto podia ser uma celebração
da vitória militar no sul da Índia quanto uma tentativa de “afogar a lembrança
do chocolate perdido”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto