Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-parsons-admirado.html antes
de ler esta postagem:
No restaurante, a teletela informou a respeito
dos grandes avanços da produção e sobre as “manifestações espontâneas” de
trabalhadores em agradecimento ao Grande Irmão por proporcionar uma “nova vida
feliz” para todos.
Winston acendeu um de
seus últimos cigarros e observou a reação do pessoal durante os informes das
cifras espetaculares... Naturalmente espantou-se ao ouvir que ocorreram
manifestações de júbilo também por conta do “aumento da ração de chocolate para
vinte gramas”. Todos ali certamente sabiam que no dia anterior havia sido
anunciada a “redução para vinte gramas”!
(...)
O rapaz pôs-se a pensar se seria possível que aceitassem com
naturalidade aquele disparate anunciado há apenas vinte e quatro horas depois do
comunicado a respeito da redução. Um rápido “passar d’olhos” pela sala foi
suficiente para certificar-se de que sim, as pessoas ali vibraram com a
fraude... Parsons parecia maravilhado com sua “estupidez de animal”, já o tipo
que não parava de falar na outra mesa demonstrava paixão fanática... Winston
imaginou que provavelmente ele desejasse “descobrir, denunciar e vaporizar quem
quer que ousasse sugerir que na semana anterior (a ração de chocolate) fora
trinta gramas”.
Olhou
para Syme e notou que ele também estava satisfeito com as fábulas que ouvia...
Talvez interpretasse os dados a partir da metodologia do “duplipensar”, mas
evidentemente aceitava cegamente as estatísticas anunciadas pela teletela.
(...)
De fato, algo
surreal... Em sua consciência pesava a certeza de que se lembrava da redução
anunciada no dia anterior. Será que era o único? Os demais sabiam como
“engolir” as mentiras do regime, e ele não?
Os
dados a respeito dos avanços eram espantosos se comparados com o ano
anterior... Tudo melhorara! Desde a teletela, as informações davam conta de que
passou a haver “mais comida, mais roupa, mais casas, mais móveis, mais panelas,
mais combustível, mais navios, mais helicópteros, mais livros, mais recém-nascidos”.
Por outro lado, “a doença, o crime e a loucura” só podiam ter diminuído!
Winston não podia suportar o fato de ninguém questionar a discrepância entre o
oficialmente informado (que “ano após ano, minuto após minuto, todo mundo,
tudo, tudo o mais ganhava as alturas”) e o vivido na realidade em que faltava
de tudo (lâminas de barbear, cadarços, cigarros e bebidas decentes).
Inconformado, pegou
uma colher e a exemplo do que Syme fizera anteriormente passou a esfregá-la
sobre o caldo gorduroso que estava sobre a mesa. Seria possível que a situação
houvesse sido sempre aquela? Tipos acríticos e temerosos... O refeitório de
paredes imundas e com o teto baixo, mesas e cadeiras estreitas, uma comida de
péssimo gosto... E mais:
“Colheres arcadas, bandejas
trincadas, rústicas xícaras brancas; gordurentas todas as superfícies, sujeira em
cada frincha; e um cheiro azedo, composto de gin ordinário, café ruim, guisado
metálico e roupa suja. Havia sempre, no estômago e na pele, uma espécie de
protesto, a sensação de que se perdera, para um gatuno, algo a que se tinha direito”.
Ele mesmo não se lembrava de situação diferente... Qualquer tempo
passado que conseguisse recordar trazia-lhe a precariedade, escassez de
alimentos e de roupas básicas e decentes... O mesmo se aplicava aos móveis e
cômodos dos apartamentos, capengas e “mal aquecidos”. Os trens para transporte
do público jamais tiveram qualquer conforto e sempre se movimentaram
abarrotados. Enfim, nada do que se dispunha era satisfatório: “casas caindo aos
pedaços, pão escuro, chá raro, café nojento, cigarros insuficientes - nada
barato e abundante”. A única exceção talvez fosse o “gin sintético”.
(...)
Havia muito desconforto. Podia pensar a respeito de muitas outras
condições e todas elas eram insatisfatórias. Tudo muito sujo, invernos
“intermináveis” e insuportáveis, a água fria, o sabão de péssima qualidade, os
elevadores sempre defeituosos, os “cigarros que se desfaziam”.
Particularmente sentia-se aflito ao considerar
que não podia tolerar o estado de coisas. Talvez isso fosse um sinal de que
conhecera uma realidade diferente, talvez “tivesse uma lembrança ancestral”
totalmente incompatível com a realidade controlada pelo Partido.
(...)
Ao
olhar mais uma vez ao seu redor, Winston considerou que todos ali eram feios, e
continuariam feios mesmo se deixassem o macacão do Partido e se vestissem com
“roupas decentes”. Reparou um tipinho que estava do outro lado, solitário numa
mesa... Achou que se parecia com um besouro “tomando uma xícara de café”.
Aquilo contradizia o que o Partido pregava a respeito do “tipo físico ideal”: “rapazes
altos e musculosos, donzelas de grandes seios, louras, viçosas, queimadas de
sol, alegres”. Ao refletir mais apuradamente, pôde sentenciar que
definitivamente esses não predominavam na “Pista Nº 1”, constituída basicamente
de “gente miúda, morena e mal favorecida”.
E
mais... O curioso era que os Ministérios estavam abarrotados de tipos como
aquele “escaravelho”: “homenzinhos tronchos, ainda moços e já obesos, de
perninhas curtas, movimentos rápidos, assustados, faces gordas e inescrutáveis,
de olhos minúsculos. Era o tipo que parecia florescer melhor sob o domínio do
Partido”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto