quinta-feira, 29 de julho de 2021

“1984”, de George Orwell – Winston quis conferir se os que estavam reunidos no refeitório aceitavam passivamente as informações mentirosas sobre a “nova vida feliz” anunciada pela teletela; longas listas de insatisfações; permanecia a dúvida acerca de onde e quando poderia ter tido referências diferentes; de olho num tipinho parecido com um besouro; todos os funcionários eram bem feios e mirrados, a maioria nada tinha a ver com o “tipo físico ideal” defendido pelo Partido

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-parsons-admirado.html antes de ler esta postagem:

No restaurante, a teletela informou a respeito dos grandes avanços da produção e sobre as “manifestações espontâneas” de trabalhadores em agradecimento ao Grande Irmão por proporcionar uma “nova vida feliz” para todos.
Winston acendeu um de seus últimos cigarros e observou a reação do pessoal durante os informes das cifras espetaculares... Naturalmente espantou-se ao ouvir que ocorreram manifestações de júbilo também por conta do “aumento da ração de chocolate para vinte gramas”. Todos ali certamente sabiam que no dia anterior havia sido anunciada a “redução para vinte gramas”!
(...)
O rapaz pôs-se a pensar se seria possível que aceitassem com naturalidade aquele disparate anunciado há apenas vinte e quatro horas depois do comunicado a respeito da redução. Um rápido “passar d’olhos” pela sala foi suficiente para certificar-se de que sim, as pessoas ali vibraram com a fraude... Parsons parecia maravilhado com sua “estupidez de animal”, já o tipo que não parava de falar na outra mesa demonstrava paixão fanática... Winston imaginou que provavelmente ele desejasse “descobrir, denunciar e vaporizar quem quer que ousasse sugerir que na semana anterior (a ração de chocolate) fora trinta gramas”.
Olhou para Syme e notou que ele também estava satisfeito com as fábulas que ouvia... Talvez interpretasse os dados a partir da metodologia do “duplipensar”, mas evidentemente aceitava cegamente as estatísticas anunciadas pela teletela.
(...)
De fato, algo surreal... Em sua consciência pesava a certeza de que se lembrava da redução anunciada no dia anterior. Será que era o único? Os demais sabiam como “engolir” as mentiras do regime, e ele não?
Os dados a respeito dos avanços eram espantosos se comparados com o ano anterior... Tudo melhorara! Desde a teletela, as informações davam conta de que passou a haver “mais comida, mais roupa, mais casas, mais móveis, mais panelas, mais combustível, mais navios, mais helicópteros, mais livros, mais recém-nascidos”. Por outro lado, “a doença, o crime e a loucura” só podiam ter diminuído! Winston não podia suportar o fato de ninguém questionar a discrepância entre o oficialmente informado (que “ano após ano, minuto após minuto, todo mundo, tudo, tudo o mais ganhava as alturas”) e o vivido na realidade em que faltava de tudo (lâminas de barbear, cadarços, cigarros e bebidas decentes).
Inconformado, pegou uma colher e a exemplo do que Syme fizera anteriormente passou a esfregá-la sobre o caldo gorduroso que estava sobre a mesa. Seria possível que a situação houvesse sido sempre aquela? Tipos acríticos e temerosos... O refeitório de paredes imundas e com o teto baixo, mesas e cadeiras estreitas, uma comida de péssimo gosto... E mais:

                   “Colheres arcadas, bandejas trincadas, rústicas xícaras brancas; gordurentas todas as superfícies, sujeira em cada frincha; e um cheiro azedo, composto de gin ordinário, café ruim, guisado metálico e roupa suja. Havia sempre, no estômago e na pele, uma espécie de protesto, a sensação de que se perdera, para um gatuno, algo a que se tinha direito”.

Ele mesmo não se lembrava de situação diferente... Qualquer tempo passado que conseguisse recordar trazia-lhe a precariedade, escassez de alimentos e de roupas básicas e decentes... O mesmo se aplicava aos móveis e cômodos dos apartamentos, capengas e “mal aquecidos”. Os trens para transporte do público jamais tiveram qualquer conforto e sempre se movimentaram abarrotados. Enfim, nada do que se dispunha era satisfatório: “casas caindo aos pedaços, pão escuro, chá raro, café nojento, cigarros insuficientes - nada barato e abundante”. A única exceção talvez fosse o “gin sintético”.
(...)
Havia muito desconforto. Podia pensar a respeito de muitas outras condições e todas elas eram insatisfatórias. Tudo muito sujo, invernos “intermináveis” e insuportáveis, a água fria, o sabão de péssima qualidade, os elevadores sempre defeituosos, os “cigarros que se desfaziam”.
Particularmente sentia-se aflito ao considerar que não podia tolerar o estado de coisas. Talvez isso fosse um sinal de que conhecera uma realidade diferente, talvez “tivesse uma lembrança ancestral” totalmente incompatível com a realidade controlada pelo Partido.
(...)
Ao olhar mais uma vez ao seu redor, Winston considerou que todos ali eram feios, e continuariam feios mesmo se deixassem o macacão do Partido e se vestissem com “roupas decentes”. Reparou um tipinho que estava do outro lado, solitário numa mesa... Achou que se parecia com um besouro “tomando uma xícara de café”. Aquilo contradizia o que o Partido pregava a respeito do “tipo físico ideal”: “rapazes altos e musculosos, donzelas de grandes seios, louras, viçosas, queimadas de sol, alegres”. Ao refletir mais apuradamente, pôde sentenciar que definitivamente esses não predominavam na “Pista Nº 1”, constituída basicamente de “gente miúda, morena e mal favorecida”.
E mais... O curioso era que os Ministérios estavam abarrotados de tipos como aquele “escaravelho”: “homenzinhos tronchos, ainda moços e já obesos, de perninhas curtas, movimentos rápidos, assustados, faces gordas e inescrutáveis, de olhos minúsculos. Era o tipo que parecia florescer melhor sob o domínio do Partido”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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