segunda-feira, 12 de julho de 2021

“1984”, de George Orwell – o fim dos “dois minutos de ódio”; muitos motivos para desconfiar, mas a crítica era uma ousadia arriscada demais; o encontro dos olhares com O’Brien ainda incomodava a consciência e melhor seria considerá-lo “história terminada”; de volta à mesinha da sala e aos registros nas folhas da bonita encadernação; “Abaixo o Grande Irmão” repetidas vezes; o “crimideia” e a certeza de que já havia cometido uma ilegalidade; sobre a metodologia da captura da Polícia do Pensamento; apagando oficialmente a existência dos criminosos capturados; outra paranoia e a tensão por ter de atender alguém à porta

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-ainda.html antes de ler esta postagem:

Os “Dois Minutos de Ódio” terminaram e Winston ainda se sentia um pouco abalado pelas confusões mentais e pela exacerbação dos demais. A eles, importava a crença de que o inimigo do sistema era real e que devia mesmo haver uma organização bem estruturada e apta a promover ataques ao Grande Irmão e ao Partido... De tanta doutrinação e dinâmicas para o extravasamento do ódio, passavam a esperar com convicção que a Fraternidade existisse e que as propagadas conspirações fossem reais.
Winston destoava em relação à maioria. É certo que havia dias em que pensava como os demais, mas em muitas ocasiões desconfiava que tudo não passasse de invenção, já que o Partido não apresentava provas. A paranoia geral se baseava em “visões fugidias que podiam significar algo ou nada: trechos de conversa entreouvida, rabiscos apagados nas paredes das privadas”.
Tudo isso gerava desconfiança... O próprio Winston se impressionou ao notar certa vez a troca de movimento de mãos entre dois tipos provavelmente desconhecidos. Aquilo bem podia ser um código secreto dos conspiradores. Contudo isso era apenas um palpite que ainda mais abalava a imaginação.
(...)
O rapaz voltou ao seu compartimento evitando olhar para o tipo do Partido Interno... Apesar disso, pensava vagamente sobre um aprofundamento do contato com O’Brien ainda que soubesse que isso era muito arriscado. Para ele, terem trocado o olhar durante o evento do extravasamento de ódio ao inimigo do sistema havia sido “memorável”, principalmente porque sabia que vivia angustiado em sua busca por convicções.
No final das contas tinha de aceitar que o melhor era aceitar que encontro de olhares havia sido furtivo e que era “história terminada”.
(...)

Não podemos esquecer que Winston estava acomodado na mesinha da sala de seu apartamento, devidamente “escondido da teletela” e disposto a escrever o diário... Como vimos, havia feito registros sobre a sessão de cinema da noite anterior. Depois rememorou os eventos dos “Dois Minutos de Ódio” que conhecemos nos registros anteriores.
(...)
A bebida de péssima qualidade ainda provocava certo mal-estar. Sentiu necessidade de se levantar para arrotar. Só quando voltou a se sentar é que notou que estivera escrevendo... Talvez sobre os episódios da manhã, sua insegurança e divagações em torno do sufoco que era a vida sob o regime do IngSoc... Sua escrita deixara de ser aquela do início, marcada por traços infantis, de letras pequenas e linhas tortas. Em vez disso, havia manipulado a pena com destreza, pois as letras surgiram grandes e similares às que saíam na imprensa.
Escreveu “Abaixo o Grande Irmão” diversas vezes e em letras maiúsculas. Ainda que isso provocasse o “pavor natural”, preencheu metade de uma página com a mesma frase. Sabia que escrever o diário era mais perigoso do que aquela iniciativa, mas foi por causa dela que quis rasgar todas as folhas e desistir do diário. Só não abandonou a ideia porque sabia que “tanto fazia” escrever ou deixar de escrever. Registrar “Abaixo o Grande irmão” diversas vezes numa folha e redigir o diário não fazia a menor diferença... E isso porque a Polícia do Pensamento chegaria a ele mais cedo ou mais tarde.
Somos tentados a querer saber em que se baseava essa convicção... O próprio Winston explica que mesmo que não tivesse tomado a iniciativa de escrever, já havia cometido o “crimideia”, um crime gravíssimo e impossível de ser ocultado... Como podemos depreender, tratava-se do “crime de ideia” cometido pelo sujeito que se dedicasse a refletir criticamente. Todos sabiam que o criminoso até podia manter-se incógnito por algum tempo, mas logo era descoberto e capturado.
Ao pensar a este respeito, Winston observou que as buscas policiais se encerravam sempre durante às noites, quando o prendiam o criminoso. Refletiu no quanto isso era terrível... O sujeito era arrancado do sono por pesadas mãos a sacudi-lo e luzes fortíssimas a lhe agredir os olhos...
Essas ocorrências não tinham grande repercussão. Não adiantava querer saber detalhes da captura, pois a prisão não era noticiada... O fato é que de repente as pessoas desapareciam e aqui e ali surgiam tímidos boatos. Sequer havia julgamento. Por fim:

                   “O nome do cidadão era removido dos registros, suprimida toda menção dele, negada sua existência anterior, e depois esquecido. Era-se abolido, aniquilado; vaporizado era o termo corriqueiro”.

(...)
Essas suposições ainda mais enervaram o Winston que, apavorado, viu-se acometido por histeria momentânea. Por isso voltou a escrever apressadamente que terminaria capturado e com um tiro na nuca sem a menor chance de manifestar uma defesa:

                   “me darão um tiro que mimporta me darão um tiro na nuca não mimporta abaixo o grande irmão eles sempre dão tiro na nuca que mimporta abaixo o grande irmão”.

De repente sentiu-se envergonhado do que acabara de registrar e levantou-se mais uma vez. Nem teve tempo de decidir a respeito do que fazer na sequência porque foi surpreendido por fortes batidas na porta. Isso o assustou... Será que já eram os policiais? Essa incerteza o levou a aquietar-se o mais que pôde esperando que desistissem.
Bateram novamente... Winston avaliou que devia atender e que teria problemas se atrasasse.
Seu coração estava acelerado, mesmo assim esforçou-se para manter uma aparência insuspeita e, a passos lentos, encaminhar-se para a porta.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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