Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-mais-respeito-do.html antes
de ler esta postagem:
No caso de Withers deve ter ocorrido o mesmo que
acontecia à maioria dos que passavam a ser considerados inimigos pelo Partido,
que de repente desapareciam e deixavam de falar delas... Como ninguém sabia o
que havia acontecido a elas, eventualmente surgiam boatos sobre mortes
horrendas, mas “era até possível que não tivessem morrido”.
(...)
Winston pensou na
quantidade de desaparecidos que conhecera pessoalmente, além de seus pais...
Talvez uns trinta...
Por acaso olhou novamente para a área de trabalho do Tillotson e notou
que ele continuava a desenvolver obstinadamente a sua tarefa junto ao
“falascreve”, mas interrompeu momentaneamente ao também voltar o olhar para os
lados de Winston e não escondeu sua aversão.
A
troca de olhares levou Winston a se perguntar se o outro não estava trabalhando
com os mesmos papéis que ele. Isso podia ocorrer... Tarefas como aquela
normalmente eram encaminhadas a mais de um camarada do departamento. Isso era
feito sem que soubessem, caso contrário se cogitaria a respeito de falsificação.
Como não criavam
comissões para trabalhar casos como aquele, Winston imaginava que talvez o
departamento encarregasse a tarefa de corrigir os dizeres do Grande Irmão a uns
doze “retificadores”. Depois alguma importante personalidade do Partido
definiria a melhor correção, acrescentaria ou retiraria o que achasse
necessário, daria por encerrado o caso, então “a mentira selecionada passaria
aos anais permanentes, tornando-se verdade”.
Voltando
a focar sua atenção no personagem do documento mais complexo daquele dia,
Winston começou a pensar nos motivos que levaram o Withers a cair em
desgraça... Poderia ter se envolvido em algum caso de corrupção ou cometido
falha “imperdoável”. Também podia ter ocorrido de o Grande Irmão se livrar do
tipo simplesmente por se tornar demasiadamente popular.
Os motivos podiam ser
vários... Falava-se muito de casos em que o sujeito deixava de crer na
importância e eficácia do grande líder; isso podia ter ocorrido ao Withers ou a
alguém próximo a ele. Mas para Winston, o regime tinha necessidade de manter em
pleno funcionamento a engrenagem da punição, “dos expurgos e vaporizações”.
(...)
As análises de
documentos que faziam referências a detidos ou afastados dos círculos sociais
eram cuidadosas. O que fazia verificação e correção dos documentos não podia
tirar conclusões precipitadas, já que durante os processos podia haver certo
relaxamento e o processado era libertado por “um ou dois anos antes de ser
encaminhado para a execução”. Era raro, mas acontecia de alguns sujeitos tidos
como mortos reaparecerem em julgamentos públicos testemunhando contra diversos
outros “agentes inimigos do IngSoc e do Grande Irmão”. Depois “tornavam a
desaparecer” e, dessa vez, para sempre.
(...)
O trecho "refs impessoas" que constava do requerimento não
deixou dúvidas ao Winston, que concluiu que Withers já estava morto. Por isso
tornara-se uma “impessoa” e, desse modo, jamais existira.
Winston considerou que, mais do que alterar o discurso do Grande Irmão,
devia elaborar uma trama que envolvesse contexto desvinculado do Withers... De
pronto decidiu não inverter o que eram homenagens e transformá-las em denúncia.
Também achou que criar situações que envolvessem a campanha militar ou dados
espetaculares de superprodução trariam implicações a registros já consolidados no
“Nono Plano Trienal”.
Então dedicou-se a elaborar “uma peça de pura
fantasia” que justificasse a homenagem prestada pelo Grande Irmão por ocasião
da apresentação da Ordem do Dia. Bastava encontrar um “novo personagem” que não
pudesse cair em imprudências de ordem política e assim comprometer a iniciativa
do grande líder.
Winston lembrou-se da
notícia de morte de certo Camarada Ogilvy em ação de guerra... Falou-se de “circunstâncias
heroicas”. Para o rapaz, ficou claro que podia elaborar uma biografia exemplar “de
um soldado raso, humilde membro do Partido, cuja vida e morte podiam ser
apontadas como exemplos dignos de ser seguidos”. Uma biografia merecedora de
homenagem do Grande Irmão.
(...)
O Ogilvy “ideal” não existia... Todavia Winston sabia trabalhar um bom
texto ilustrado por fotografias falsificadas, e isso bastava para “dar vida” ao
herói. Assim acionou o “falascreve” e ditou o discurso do Grande Irmão.
Essa
parte do discurso não era difícil. Bastava carregá-lo de pedantismo e referências
militares. Além disso, era bastante conhecido o modo como fazia uso do recurso
de lançar perguntas retóricas respondidas por ele mesmo.
Aos
poucos a matéria ganhou forma... O Camarada Ogilvy ganhou contornos exemplares,
e isso desde a mais tenra infância, quando se mantinha afastado de brinquedos e
brincadeiras triviais, preferindo aqueles relacionados ao belicismo. Depois, quando
completou seis anos, obteve autorização especial para inscrever-se no
grupamento dos “Espiões”, onde, sempre adiantado em relação aos demais,
tornou-se chefe aos nove. Dois anos depois, denunciou um de seus tios à Polícia
do Pensamento culpando-o por debater ideias com “tendências criminosas”; aos
dezesseis, destacou-se ao organizar a “Liga Juvenil Anti-Sexo” em seu distrito.
Três anos mais tarde, o vemos dedicando-se a um projeto de “granada de mão” que
acabou sendo aprovada e produzida em larga escala pelo Ministério da Paz depois
de se mostrar plenamente eficaz logo no primeiro exame, ao exterminar trinta e
um prisioneiros eurasianos de uma só vez.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto