sexta-feira, 9 de julho de 2021

“1984”, de George Orwell – mesmo vacilante, Winston fez registros sobre a sessão de cinema da noite anterior; uma fita repleta de violências e cruéis assassinatos; aplausos dos membros do partido e protestos de uma mulher saída de entre os proles; uma situação ocorrida pela manhã no Ministério da Verdade, algo nebuloso, lhe viera à mente

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-winston-pensou.html antes de ler esta postagem:

Winston começou a redigir...
A escrita percorria e preenchia mal traçadas linhas. Sua letra surgia diminuta e com traços infantis. Sem maiores cuidados, e evidentemente incomodado, produziu o que segue:

                   “4 de abril de 1984. Ontem à noite ao cinema. Tudo fitas de guerra. Uma muito boa dum navio cheio de refugiados bombardeado no Mediterrâneo. Público muito divertido com cenas de um homenzarrão gordo tentando fugir nadando dum helicóptero. primeiro se via ele subindo descendo n’água que nem golfinho, depois pelas miras do helicóptero, e daí ficava cheio de buracos o mar perto ficava rosa e de repente afundava como se os furos tivessem deixado entrar água. público dando gargalhadas quando afundou. então viu-se um escaler cheio de crianças com um helicóptero por cima. havia uma mulher de meia idade talvez judia sentada na proa com um menininho duns três anos nos braços. garotinho gritando de medo e escondendo a cabeça nos seios dela como querendo se refugiar e mulher pondo os braços em torno dele e consolando apesar de também estar roxa de medo. todo tempo cobrindo ele o mais possível como se os braços pudessem protegê-lo das balas. então o helicóptero soltou uma bomba de 20 quilos em cima deles clarão espantoso e o bote virou cisco. daí uma ótima fotografia dum braço de criança subindo subindo subindo um helicóptero com a câmara no nariz deve ter acompanhado e houve muito aplauso no lugar do partido mas uma mulher da parte dos proles de repente armou barulho e começou gritar que não deviam exibir fita assim pras crianças não é direito na frente de crianças não e daí e tal até que a polícia a botou na rua não acho que aconteceu nada para ela ninguém se importa com o que os proles dizem reação prole típica eles nunca”...

(...)
Como se vê, a redação foi concluída sem os cuidados gramaticais... Na postagem anterior ficou evidente que sua condição emocional não era das mais satisfatórias, além disso, o forte gin lhe alterara a sobriedade.
Em relação ao conteúdo de seus registros, podemos notar que Winston escreveu a respeito da noite anterior, quando esteve no cinema... Entende-se que o entretenimento proporcionado à população estava de acordo com a filosofia do IngSoc.
A fita exibida trazia cenas de horror explícito, no entanto o público se maravilhou com a violência... No entanto se divertiu a valer ao assistir a impotência do “homem gordo” (e aqui se infere a intenção de ridicularizar o tipo físico do personagem) diante do helicóptero (uma máquina de guerra, conhecida de todos por sua utilização no policiamento cotidiano).
O ápice parece ter sido a cena em que a mulher (“de meia idade, talvez judia”) e seu pequeno filho foram atacados impiedosamente pelo helicóptero... Os dois estavam numa pequena embarcação com muitas crianças e provavelmente tentavam fugir do ódio que certamente o partido propagava contra eles.
Desde o lugar onde se concentravam os membros do partido ouviu-se um caloroso aplauso para a saraivada de tiros, a “bomba de vinte quilos” e o cruel despedaçamento do garoto.
Winston deixou claro que nem todos vibraram com a violência exibida pelo filme, pois havia “proles” no cinema e uma mulher dentre eles gritou em protesto. Como vimos, ela foi detida pela polícia e retirada da sala...
Por fim ele destacou que essa era a reação típica dos que pertenciam a esse extrato da população. Os ”proles” eram conhecidos por suas insatisfações, todavia “ninguém se importava com eles”.
(...)
Winston tanto escreveu que sentiu câimbra na mão. Achou que havia escrito bobagens e não tinha a menor ideia do motivo que o levara a registrar a respeito da sessão de cinema da noite anterior.
À parte essa primeira consideração, sentiu que havia se lembrado de uma situação que vivenciara pela manhã no Ministério... Algo que trazia bem claro em sua memória e sobre o qual tinha plenas condições de narrar. Aliás, havia sido exatamente por causa do “incidente da manhã” que havia decidido ir para casa e dar início ao diário.
Afinal, o que havia ocorrido? É importante conhecermos os fatos, já que Winston os considerara “algo nebuloso”, algo inusitado e, por isso mesmo, surpreendente.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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