Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-um-pouco-sobre.html antes
de ler esta postagem:
No momento em que Winston adquiriu a
encadernação das belas folhas em branco não tinha a menor ideia do que fazer
com ela... Obviamente a escondeu em sua pasta e a levou para casa. O fato de
ser “um livro sem conteúdo” não garantia que não pudesse comprometê-lo de algum
modo.
(...)
Depois de ter deixado
a janela, e confiante de que não podia ser alcançado pela câmera da teletela,
abriu a encadernação sobre sua pequena mesa disposto a iniciar um diário.
Considerando-se que o regime havia abolido as leis, sua iniciativa não podia ser
classificada como “ilegal”, mas ele sabia que certamente seria punido com a
morte se o descobrissem... Pensou também que havia a possibilidade de ser
condenado a pelo menos vinte e cinco anos de trabalho forçado em algum campo
destinado aos infratores políticos.
Abandonou as perturbações e decidiu mergulhar a pena no tinteiro...
Lembrou que já fazia um bom tempo que a pena deixara de ser usada e já era
considerada arcaica até para assinaturas de documentos importantes. Na verdade,
havia se esforçado por conseguir uma porque achava que o “belo papel creme
merecia uma pena de verdade em vez de ser riscado por um ‘lápis-tinta’”.
A
tarefa a que se dispusera era mesmo inusitada... Ele já não tinha hábito de
escrever à mão. As poucas vezes em que fazia isso era para emitir bilhetes
curtos. O normal era ditar o que se pretendia escrever ao “falascreve”, um
equipamento computadorizado que obedecia ao comando de voz. O caso é que, para o
que pretendia fazer, não podia usá-lo em hipótese alguma já que certamente seria
mais facilmente descoberto.
Decidido a iniciar os
registros manuscritos no diário, sentiu um leve tremor. Tomou da pena e
escreveu a data com letras miúdas: “4 de abril de 1984”.
(...)
Depois
de datar o alto da primeira página, percebeu que nova agitação o invadia... Na
verdade não tinha certeza de que estavam no ano de 1984. A realidade é que na
sociedade em que viviam “não era nunca possível fixar uma data num ou dois anos”.
Então se baseava na própria idade, 39 anos, e porque “acreditava ter nascido e
1944 ou 45”.
E outra questão
surgiu para atormentar... Afinal de contas, a quem o diário se destinava? Para
quem escreveria? Pensou que a resposta mais razoável seria “para o futuro, os
que não haviam ainda nascido”. Isso o levou a pensar novamente sobre a “data duvidosa”
que havia apontado no início...
A reflexão trouxe à
sua mente “a palavra duplipensar (em novilíngua)” e assim percebeu que a empreitada
que estava iniciando não era algo simples ou desprezível. Todos sabem que uma
comunicação com o futuro não é possível! Mas quem é que se disporia a trabalhar
nisso? Tinha de concordar que dificilmente alguém imaginaria que houvesse quem
se dedicasse a uma coisa dessas.
Winston pensou que talvez o futuro fosse muito parecido com o momento vivido
por ele... Nesse caso, sua produção textual não exerceria qualquer atração. E se
fosse diferente, a sua condição seria desprezada, pois a princípio não despertaria
interesse e seria entendida como “sem novidade; sem interesse aparente”.
(...)
Vacilou por algum tempo diante do papel.
Como não conseguia dar início, prestou atenção
aos sons emitidos pela teletela, que estava tocando “estridente música militar”.
Sentiu-se impotente e sem saber “o que tinha em mente” quando resolvera iniciar
os registros.
Depois de semanas de
expectativa e articulando ideias, chegou ao momento de iniciar o diário
percebendo que talvez precisasse de algo mais além da coragem. Seu problema não
estava em escrever propriamente. Precisava apenas registrar no papel “o
intérmino e inquieto monólogo que se desenrolava na sua mente há anos”.
Mas a situação era bem essa... Sentiu que o “inquieto monólogo” parecia
ter minguado... Eventualmente lembrava-se da variz e do incômodo que ela
causava. Aquilo também podia bloqueá-lo, mas não queria coçá-la porque sabia
que na sequência a dor aumentaria com uma inflamação ainda maior.
O
fato é que o tempo estava passando e as únicas certezas que tinha eram as de que
o papel continuava branco, a variz acima do tornozelo comichava, a música
emitida pela teletela era estridente e a de que não estava totalmente sóbrio
por causa da xícara de gin.
(...)
Agitou-se e quase a entrar em pânico pôs-se a escrever sem dedicar
atenção ao que redigia... Notava simplesmente que sua letra surgia diminuta nas
linhas tortas que traçara, lembrando as das crianças recém-alfabetizadas. Sem
qualquer senso de organização, a estrutura gramatical surgiu confusa; ele logo deixou
de grafar as letras maiúsculas e desprezou as regras de pontuação.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-mesmo-vacilante.html
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto