quinta-feira, 8 de julho de 2021

“1984”, de George Orwell – Winston pensou sobre os perigos de se escrever um diário; uma rara pena para redigir no papel creme; o falaescreve, equipamento computadorizado que obedece ao comando de voz; datando a primeira página sem ter convicção do ano; escrever para o futuro, o duplipensar e as implicações que isso poderia trazer, ou não; registrar a respeito do intérmino e inquieto monólogo que há muito tempo se desenrolava em sua mente; um início vacilante demais

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-um-pouco-sobre.html antes de ler esta postagem:

No momento em que Winston adquiriu a encadernação das belas folhas em branco não tinha a menor ideia do que fazer com ela... Obviamente a escondeu em sua pasta e a levou para casa. O fato de ser “um livro sem conteúdo” não garantia que não pudesse comprometê-lo de algum modo.
(...)
Depois de ter deixado a janela, e confiante de que não podia ser alcançado pela câmera da teletela, abriu a encadernação sobre sua pequena mesa disposto a iniciar um diário. Considerando-se que o regime havia abolido as leis, sua iniciativa não podia ser classificada como “ilegal”, mas ele sabia que certamente seria punido com a morte se o descobrissem... Pensou também que havia a possibilidade de ser condenado a pelo menos vinte e cinco anos de trabalho forçado em algum campo destinado aos infratores políticos.
Abandonou as perturbações e decidiu mergulhar a pena no tinteiro... Lembrou que já fazia um bom tempo que a pena deixara de ser usada e já era considerada arcaica até para assinaturas de documentos importantes. Na verdade, havia se esforçado por conseguir uma porque achava que o “belo papel creme merecia uma pena de verdade em vez de ser riscado por um ‘lápis-tinta’”.
A tarefa a que se dispusera era mesmo inusitada... Ele já não tinha hábito de escrever à mão. As poucas vezes em que fazia isso era para emitir bilhetes curtos. O normal era ditar o que se pretendia escrever ao “falascreve”, um equipamento computadorizado que obedecia ao comando de voz. O caso é que, para o que pretendia fazer, não podia usá-lo em hipótese alguma já que certamente seria mais facilmente descoberto.
Decidido a iniciar os registros manuscritos no diário, sentiu um leve tremor. Tomou da pena e escreveu a data com letras miúdas: “4 de abril de 1984”.
(...)
Depois de datar o alto da primeira página, percebeu que nova agitação o invadia... Na verdade não tinha certeza de que estavam no ano de 1984. A realidade é que na sociedade em que viviam “não era nunca possível fixar uma data num ou dois anos”. Então se baseava na própria idade, 39 anos, e porque “acreditava ter nascido e 1944 ou 45”.
E outra questão surgiu para atormentar... Afinal de contas, a quem o diário se destinava? Para quem escreveria? Pensou que a resposta mais razoável seria “para o futuro, os que não haviam ainda nascido”. Isso o levou a pensar novamente sobre a “data duvidosa” que havia apontado no início...
A reflexão trouxe à sua mente “a palavra duplipensar (em novilíngua)” e assim percebeu que a empreitada que estava iniciando não era algo simples ou desprezível. Todos sabem que uma comunicação com o futuro não é possível! Mas quem é que se disporia a trabalhar nisso? Tinha de concordar que dificilmente alguém imaginaria que houvesse quem se dedicasse a uma coisa dessas.
Winston pensou que talvez o futuro fosse muito parecido com o momento vivido por ele... Nesse caso, sua produção textual não exerceria qualquer atração. E se fosse diferente, a sua condição seria desprezada, pois a princípio não despertaria interesse e seria entendida como “sem novidade; sem interesse aparente”.
(...)
Vacilou por algum tempo diante do papel.
Como não conseguia dar início, prestou atenção aos sons emitidos pela teletela, que estava tocando “estridente música militar”. Sentiu-se impotente e sem saber “o que tinha em mente” quando resolvera iniciar os registros.
Depois de semanas de expectativa e articulando ideias, chegou ao momento de iniciar o diário percebendo que talvez precisasse de algo mais além da coragem. Seu problema não estava em escrever propriamente. Precisava apenas registrar no papel “o intérmino e inquieto monólogo que se desenrolava na sua mente há anos”.
Mas a situação era bem essa... Sentiu que o “inquieto monólogo” parecia ter minguado... Eventualmente lembrava-se da variz e do incômodo que ela causava. Aquilo também podia bloqueá-lo, mas não queria coçá-la porque sabia que na sequência a dor aumentaria com uma inflamação ainda maior.
O fato é que o tempo estava passando e as únicas certezas que tinha eram as de que o papel continuava branco, a variz acima do tornozelo comichava, a música emitida pela teletela era estridente e a de que não estava totalmente sóbrio por causa da xícara de gin.
(...)
Agitou-se e quase a entrar em pânico pôs-se a escrever sem dedicar atenção ao que redigia... Notava simplesmente que sua letra surgia diminuta nas linhas tortas que traçara, lembrando as das crianças recém-alfabetizadas. Sem qualquer senso de organização, a estrutura gramatical surgiu confusa; ele logo deixou de grafar as letras maiúsculas e desprezou as regras de pontuação.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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