Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-o-outro-sonho.html antes
de ler esta postagem:
Ainda durante a ginástica do início do dia, e
enquanto refletia a respeito de seu passado, Winston pensou sobre o permanente
estado de guerra da Oceania... Não conseguia se recordar de épocas de
armistício. Talvez ao tempo de sua infância tivesse ocorrido uma paz
relativamente duradoura que se seguiu à bomba atômica lançada sobre Colchester,
algo aterrorizante para todos.
(...)
Evidentemente não
tinha condições de descrever este bombardeio, mas lembrava alguma coisa a
respeito do esforço de seu pai que, ao segurar-lhe pela mão, correu para uma
instalação protegida no subterrâneo. Sabia que a corrida o cansara e o levara
ao choro, então o pai resolveu parar junto à escadaria que dava acesso a uma
estação de trem. A mãe carregava a caçula nos braços (talvez fossem cobertores,
já que não tinha certeza de que a irmãzinha já era nascida) e os seguia mais
atrás.
A respeito da estação subterrânea, lembrava-se de que o piso estava
repleto de pessoas que para lá se dirigiram em busca de refúgio. Muitas estavam
acomodadas em rústicas camas dobráveis, e o pai de Winston conseguiu um lugar
junto a um casal de velhos. O garoto de então notou que o estranho tinha um
rosto avermelhado, olhos azuis lacrimejantes e que usava “um terno escuro, de
boa qualidade e boné de pano preto na cabeça toda branca”. O velho transpirava
um forte odor de gin e talvez tivesse buscado na embriaguez um alívio para o
seu desespero.
Tudo
o que o pequeno Winston percebia à sua volta na estação subterrânea parecia repercutir
a tragédia que havia atingido a todos, algo para o qual não viam remédio e que
pelo visto não perdoariam. Olhando para o velho, imaginava que alguém de sua
família, talvez algum neto a quem muito amava, tivesse morrido durante o ataque
aéreo.
Se lembrava que o velho
repetia de tempos em tempos os mesmos juízos à sua companheira: “Não deviamo tê
confiança neles. Eu te disse, Mãe, não disse? Foi nisso que deu tê confiança
neles. Foi o que eu sempre disse. Não deviamo tê confiança nos sacana”.
O
Winston adulto quisera saber a quem o velho se referia... Quem eram os tais
sacanas que “não mereciam confiança”? Pode ser que chegara a conhecer a
resposta, todavia os tempos que se seguiram foram de guerra contínua e as
convicções acabaram perdendo a importância.
(...)
Então é isso...
Seguiram-se tempos de guerras, mas ele sabia que elas não eram necessariamente relacionadas.
Ainda da época de sua infância lembrava-se de distúrbios pelas ruas de Londres,
confrontos abertos entre grupos. Não havia como distingui-los ou conhecer a
história das ideias em confronto porque não restara qualquer documentação ou
quem pudesse relatar a respeito.
Esse quadro era bem
diferente se comparado ao de 1984 (ainda que não tivesse certeza de que este
fosse o ano). Sabia-se que a Oceania vivia conflitos com a Eurásia e que
mantinha aliança com a Lestásia. Essa era a “verdade” que ninguém podia
contestar e ninguém podia admitir que em algum momento passado a configuração
diplomática houvesse sido outra, pois toda documentação e repercussão dos canais
oficiais de comunicação garantiam isso.
Winston sabia que não era bem assim. Há apenas quatro anos, a Oceania
estivera em guerra contra a Lestásia e mantinha aliança com a Eurásia. A
questão é que o IngSoc estabelecia a “verdade oficial”, que era incutida nas consciências
através dos mecanismos de controle. Como ninguém ousava contradizer o que era
propagado, aceitava-se que “a Oceania sempre estivera em guerra com a Eurásia.
O inimigo do momento representava sempre o mal absoluto, daí decorrendo a
impossibilidade de qualquer acordo passado ou futuro com ele”.
(...)
Sofrendo para se manter ativo durante os exercícios físicos orientados
pela instrutora da teletela, Winston continuou a refletir sobre o poder que o
Partido tinha de “controlar o passado” e cravar à toda sociedade que “este ou
aquele acontecimento nunca se verificou”.
Não era nada fácil manter-se em plena
consciência naquelas circunstâncias. Ele sofria porque sabia que a realidade,
do presente e do passado, não correspondia ao que o Partido propagava, e sofria
porque sabia que sua sobrevivência dependia de “aniquilar o que trazia na
consciência”.
Reconheceu que essa
realidade era das mais aterrorizantes, bem pior do que “a tortura e a morte”. O
caso é que as pessoas aceitavam tudo o que o Partido impunha. O IngSoc dominava
o sistema de tal modo que conseguia transformar a mentira em história. A
mentira se transformava em verdade, e isso era resultado de outra máxima do
Partido:
"Quem
controla o passado, controla o futuro: quem controla o presente controla o
passado".
Winston
sabia bem que o passado não podia ser alterado. A “verdade” institucionalizada
era “a verdade do sempre ao sempre”, uma invenção do sistema a serviço do
IngSoc... O Partido que controlava a realidade através, dentre outros
mecanismos, do “duplipensar”.
(...)
De
repente, a orientadora da Educação Física gritou “descansar!” desde a teletela.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto