Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-consideracoes-de.html antes
de ler esta postagem:
De tudo o que o tipo do Departamento de Ficção
estava falando, Winston conseguiu captar “eliminação completa e final do
goldsteinismo”. Mas as palavras saíam de sua boca em “blocos” e dificilmente
eram entendidas, pois não passavam de “quá-quá-quá”. Apesar disso, não havia ali
quem não conhecesse o conteúdo “politicamente engajado” e certamente marcado
por denúncias contra Goldstein, revolta contra os sabotadores e os eurasianos. Em
algum momento devia ter expressado saudações ao Grande Irmão e aos valentes
soldados que combatiam na Índia.
Winston entendia
bem... No final das contas a mensagem vociferada por aquele tipo só podia se
referir à temática doutrinada pelo Partido. Aquilo era “pura ortodoxia, puro
Ingsoc”. Ao observar o orador que parecia não ter olhos por causa do reflexo da
luz em seus óculos, relacionou-o não a um ser humano, mas a um “manequim” que
anunciava a partir da laringe, e não do cérebro. Suas frases comprimidas umas
às outras podiam ser interpretadas como “barulho inconsciente, como o grasnido
de um pato”.
(...)
Enquanto Winston estivera refletindo sobre o falador da outra mesa, Syme
permanecera calado e a se distrair com a colher, deslizando-a sobre o caldo que
sujava a mesa do almoço... Havia muitos trabalhadores de escritórios no refeitório
e o barulho continuava intenso, mesmo assim a voz do tipo do Departamento de
Ficção se sobrepunha.
Talvez
por isso, Syme começou a dizer ao camarada que havia uma palavra em “novilíngua”
pouco conhecida, “patofalar”. Explicou que o significado era algo como “grasnar
como pato” e que podia ser usada em dois casos. Quando citada para referir-se a
adversários, era um insulto; ao aplicá-la a integrantes do Partido, era um
elogio. Portanto, “patofalar” tinha sentidos contraditórios.
Mais uma vez Winston
pensou que Syme terminaria vaporizado. Apesar de saber que ele o desprezava e
que não vacilaria se entendesse que devia denunciá-lo por “crimideia”,
entristeceu-se ao vaticinar sua desgraça.
Por
mais que tentasse, não conseguia entender o procedimento do camarada, que parecia
não se importar com a falta de discrição... Talvez ainda não tivesse percebido
que na maioria das situações era melhor mostrar-se ingênuo e falar menos... Por
fim, Syme não era bem o tipo sobre o qual se dissesse com toda certeza que se
tratasse de um ortodoxo.
É bem verdade que atribuía
ao Grande Irmão todas as conquistas e vitórias do IngSoc, de cujos princípios era
defensor incondicional. Além disso, atacava abertamente os sabotadores com base
em informações que os demais evitavam conhecer. Mas para Winston, a fama de Syme
não devia ser das melhores exatamente porque falava demais e fazia o tipo “leitor
assíduo” que acaba dizendo coisas que deviam ser mantidas em segredo. E mais...
Ele era frequentador do “Café Castanheira”, ambiente por onde circulavam
artistas pintores e músicos!
Sobre o “Castanheira”,
não se pode dizer que se cometia alguma infração apenas por frequentá-lo. Não
havia qualquer proibição oficial... O caso é que por muitas vezes aconteceu de muitos
expurgados terem se reunido no local antes de serem sentenciados. Então o café
era conhecido por essa má-fama, e inclusive dizia-se que Goldstein o
frequentava.
(...)
Como se vê, não era por acaso que Winston pressentia que Syme não
acabaria bem. Isso à parte, ele sabia que o outro o denunciaria à Polícia do
Pensamento se desconfiasse de suas “opiniões secretas”. É claro que qualquer
outro faria o mesmo, mas não tão decididamente quanto aquele tipo.
(...)
Syme levantou a cabeça e disse que Tom Parsons estava chegando...
Winston notou que o havia certo deboche em seu modo de falar, como a emendar
que o que vinha chegando não passava de um “pobre idiota”.
Como sabemos, este Parsons, “homenzinho
atarracado, de estatura média, com cabelo claro e cara de rã”, era vizinho de
Winston. Pelo menos para este, o tipo era mesmo um “pobre idiota” que contava
trinta e cinco anos e já carregava um corpo com gorduras acumuladas no pescoço
e na barriga. Apesar disso, parecia fazer questão de se movimentar como se
fosse ainda um garotão fanático pelas agremiações juvenis.
E é verdade...
Parsons parecia um “menino crescido” e, “embora usasse o macacão costumeiro,
era quase obrigatório imaginá-lo como um garoto de calças curtas azuis, camisa
cinza e lenço vermelho dos Espiões”.
Pode-se dizer que ele não se esforçava nem um pouco para afastar-se dessa
imagem infantilizada... Tanto é que não perdia oportunidade de usar bermudas
tal como os garotos por ocasião das “passeatas comunais e atividades físicas”.
(...)
Parsons
estava mesmo se dirigindo à mesa dos dois, e assim que chegou pronunciou um “alô,
alô” como cumprimento. Seu suor pronunciado misturou-se à atmosfera malcheirosa.
Winston
não deixou de reparar o quanto a transpiração lhe enchia as faces de gotículas
e lembrou que, por causa da tremenda suadeira, todos reconheciam facilmente a raquete
que ele acabava de usar no Centro Comunal onde praticava pingue-pongue.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-parsons-admirado.html
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto