Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-mesmo-vacilante.html antes
de ler esta postagem:
Winston trabalhava no Departamento de Registro
do Ministério da Verdade e até então jamais notara nada fora do comum ou que
lhe chamasse a atenção...
Aconteceu que perto
das onze horas da manhã os funcionários começaram a se preparar para a dinâmica
diária conhecida como “Dois Minutos de Ódio”. Eles deixavam os respectivos
compartimentos onde desenvolviam suas tarefas e levavam suas cadeiras para o
centro do salão, posicionando-as enfileiradas “diante da grande teletela”.
Enquanto se colocava numa fileira mais ao meio, Winston notou a entrada
de “duas pessoas que conhecia de vista” com as quais jamais trocara palavras.
Uma delas, uma moça que já havia visto diversas vezes pelos corredores.
Obviamente não sabia como se chamava, mas tinha certeza de que era do
Departamento de Ficção, “pois a vira levando uma chave inglesa nas mãos sujas
de graxa”. Devia ser mecânica e fazia manutenção em “máquinas de novelizar”.
A
moça devia contar uns vinte e sete anos e tinha uma aparência chamativa... Seus
cabelos eram escuros e espessos; trazia sardas no rosto e movimentava-se com a
rapidez dos atletas. Em sua cintura exibia a “estreita faixa escarlate”, sinal
de que pertencia à “Liga Juvenil Anti-Sexo”. A faixa várias vezes enrolada
salientava suas curvas.
A primeira impressão
de Winston sobre essa moça não havia sido das mais satisfatórias... Em vez
disso, o seu tipo afeito aos “campos de hóquei, chuveiro frio e piqueniques”, e
mais a “linha moral” que exalava provocaram nele um forte sentimento de
aversão. Mas não se pode tomar isso por um caso atípico, já que ele não se simpatizava
pelas mulheres, principalmente as mais jovens que se destacavam por sua militância
fervorosa pelo Partido... Aliás, de acordo com seu entendimento, eram essas as
que mais se devotavam às “palavras de ordem” e se dedicavam a denunciar os
comportamentos intoleráveis à doutrina partidária.
Ainda
sobre a moça, Winston tinha a impressão de que ela era ainda mais “perigosa do
que a maioria”. Ele se lembrava de que, numa ocasião em que passara por ela no
corredor, havia sido fulminado por um “rápido olhar de esguelha” que provocou a
sensação de ter atingido o seu mais profundo íntimo. Isso o aterrorizara, pois
começou a achar que ela pertencesse à Polícia do Pensamento.
Essa suspeita
baseava-se mais nas aversões de Winston do que numa evidência lógica. O fato é
que era bem pouco provável que a garota tivesse qualquer vínculo com a temida
polícia... No entanto, para ele, prevalecia a desagradável sensação de “medo e
hostilidade” sempre que a via.
(...)
A outra pessoa que
Winston conhecia de vista e que viu entrar na sala para os “Dois Minutos de
Ódio” era um tipo chamado O’Brien, que pertencia ao quadro de membros do
Partido Interno. Isso era evidente, pois usava o típico macacão negro que os
identificava. Certamente aquele homem ocupava um posto de alta importância, mas
a este respeito Winston “só podia ter uma vaga ideia”.
O silêncio tomou conta da sala assim que O’Brien chegou... O tipo tinha
avantajados porte físico e estatura; seu pescoço era vigoroso como o de um
touro e seu rosto era “grosseiro, engraçado, brutal”. Sem dúvida, sua aparência
era temível. Mas não se pode dizer que se tratasse de uma pessoa grosseira,
pois “suas maneiras eram distintas” e, de acordo com Winston, o “seu tique de
rearranjar os óculos no nariz” conferia-lhe civilidade, um tipo como os
“fidalgos do século XVIII”.
Esse O’Brien exercia certa atração sobre Winston... O rapaz talvez o
tivesse visto apenas meia dúzia de vezes e admirava-se com o paradoxo que ele
representava: um tipo “polido, dado às urbanidades” e dotado de “físico de pugilista”.
Por incrível que pareça, isso o instigava a crer que aquele membro do Partido
Interno não fosse daqueles que exalam apenas a ortodoxia do IngSoc...
Não há como saber os reais motivos, mas o certo
é que Winston chegava a essa impressão a partir de algo que enxergava na
fisionomia do outro... Em vez da ortodoxia política talvez visse apenas a
misteriosa inteligência de uma pessoa com a qual se podia conversar.
Evidentemente sabia que isso era impossível, já que seria necessário “fraudar a
teletela para falar-lhe a sós”. Suas reflexões sobre O’Brien nunca o levaram a
imaginar que tipo de função exercia, além do que isso também seria impossível
de se saber.
(...)
Mas por que aquele
tipo do Partido Interno chegara à sala onde ocorreria os “Dois Minutos de
Ódio”? Provavelmente ele tivera um compromisso no Departamento de Registro e ao
notar que já eram quase onze horas, resolveu ficar para o evento...
Por
acaso, O’Brien “sentou-se numa cadeira da mesma fila que Winston”. Na verdade,
os dois ficaram bem próximos e separados apenas por “uma mulherzinha de cabelo
da cor de areia”, que ele conhecia por trabalhar num compartimento vizinho ao
seu. Já a moça do cabelo escuro, pela qual sentia aversão, acomodou-se “numa
cadeira logo atrás”.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-logo-no-inicio.html
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto