sexta-feira, 30 de julho de 2021

“1984”, de George Orwell – fim do pronunciamento do Ministério da Fartura; entristecido, Winston pensa nos potencialmente livres da vaporização e nos potencialmente encrencados; descobrindo que estivera sendo vigiado no restaurante pela moça do departamento de ficção; era preciso tomar cuidado com o “facecrime”; Parsons se anima ao falar sobre outras traquinagens de seus filhos que faziam parte dos “espiões”

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-winston-quis.html antes de ler esta postagem:

Finalizado o pronunciamento a respeito das superproduções dos artigos de consumo, a teletela passou a tocar músicas carregadas de metais. Parsons assumiu ares de quem sabe o que diz e manifestou que o Ministério da Fartura havia feito excelente trabalho. Na sequência perguntou ao Winston se ele tinha alguma lâmina de barbear para lhe emprestar... Este negou com a mesma desculpa que dera ao Syme e disse que já fazia seis semanas que vinha usando a mesma.
Já na outra mesa, o tipo do Departamento de Ficção, que havia parado sua falação durante o pronunciamento do Ministério da Fartura, voltou a proferir frases atropeladas ainda mais animadamente...
(...)
A imagem da esposa do Parsons com seu “cabelo ralo e pó cosmético nas rugas” veio à mente de Winston. Para ele, era uma questão de tempo e talvez uns dois anos se passassem até que os filhos a entregassem à Polícia do Pensamento para que fosse vaporizada. Pensou em Syme, que também seria vaporizado... E nele próprio, já que não podia alimentar qualquer outra expectativa em relação ao seu destino. Já o tipo falante e empolgado com o regime não teria o mesmo fim, e tampouco os que se assemelhavam ao que lembrava um besouro e que serviam nos Ministérios.
Muitos outros não sofreriam a perseguição, como era o caso de Parsons e da moça dos cabelos escuros que trabalhava no Departamento da Ficção. Entre as poucas certezas que tinha, havia essa a respeito dos que seriam enquadrados pela Polícia do Pensamento e dos que sobreviveriam.
De repente despertou das divagações... Surpreendeu-se ao notar que a moça da mesa onde estava o tagarela fanático pelo regime o olhava pelo canto dos olhos. Espantou-se ao perceber que se tratava daquela dos cabelos escuros, a mesma do Departamento de Ficção. Ela desviou o olhar assim que notou que ele a percebeu.
Winston ficou apavorado... Não conseguia entender por que aquele tipinho o perseguia. Não pôde lembrar se ela já estava acomodada à mesa quando ele chegou com Syme... O fato é que no dia anterior, no exercício dos “Dois Minutos de Ódio”, ela havia se colocado atrás dele mesmo havendo outras cadeiras disponíveis. Tudo indicava que o espionava, querendo saber se ele era incisivo durante as manifestações contra Goldstein.
Talvez ela fosse uma espiã amadora... E isso era bem pior do que se pertencesse aos quadros da Polícia do Pensamento.  Não podia ter certeza de quantos minutos ela permaneceu a observá-lo, e isso ainda mais o apavorava porque talvez não estivesse com a fisionomia devidamente controlada, principalmente enquanto estivera refletindo sobre a má sorte dos que sofreriam perseguições. Outras situações também eram comprometedoras: “uma expressão facial imprópria (ar de incredulidade quando anunciavam uma vitória, por exemplo) era em si uma infração punível”.
Nesses casos, o indivíduo era acusado de cometer o “facecrime” (em “novilíngua”), tão aterrorizante quanto às demais implicações...
(...)
Aconteceu que a moça virou-se... Winston pensou que talvez não tivesse despertado qualquer suspeita ou mesmo que ela não o estivesse perseguindo. Nesse caso, o fato de se sentar perto dele dois dias seguidos teria sido uma simples coincidência.
Seu cigarro havia se apagado e ele nem notara. Com todo cuidado, deixou-o na borda da mesa para que pudesse fumá-lo mais tarde. Havia grande probabilidade de a moça ser uma “espiã da Polícia do Pensamento” e, nesse caso, ele certamente terminaria “nos porões do Ministério do Amor”, mas não seria por isso que ele desperdiçaria o resto do cigarro.
Syme recolheu as anotações que havia feito no papel e Parsons voltou a falar a respeito dos filhos militantes. Perguntou se já havia dito que certa vez eles colocaram fogo na “saia de uma velha” que estava na feira. E fizeram isso porque ela havia ousado “embrulhar umas salsichas num cartaz do G.I (Grande Irmão).”
O tipo emendou que a mulher deve ter sofrido queimaduras significativas, e comentou em tom jocoso que os filhos eram mesmos “uns safadinhos”, muito espertos já que o treinamento dado pelo grupamento dos Espiões era melhor do que o que ele mesmo tivera no passado. Parsons explicou que até “estetoscópios para escutar pelas fechaduras” as crianças recebiam; disse que sua caçula experimentara o seu equipamento e confirmou que podia ouvir duas vezes mais! Podia ser um brinquedo, mas já fazia parte de treinamento sério.
(...)
Desde a teletela ouviu-se o forte apito que marcava o fim do almoço. Todos se retiraram das mesas e apressaram-se na direção dos elevadores. Enquanto se encaminhava, Winston notou que o fumo que havia em seu cigarro deslizou para o piso.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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