Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-winston-quis.html antes
de ler esta postagem:
Finalizado o pronunciamento a respeito das
superproduções dos artigos de consumo, a teletela passou a tocar músicas
carregadas de metais. Parsons assumiu ares de quem sabe o que diz e manifestou
que o Ministério da Fartura havia feito excelente trabalho. Na sequência
perguntou ao Winston se ele tinha alguma lâmina de barbear para lhe
emprestar... Este negou com a mesma desculpa que dera ao Syme e disse que já
fazia seis semanas que vinha usando a mesma.
Já na outra mesa, o
tipo do Departamento de Ficção, que havia parado sua falação durante o
pronunciamento do Ministério da Fartura, voltou a proferir frases atropeladas
ainda mais animadamente...
(...)
A imagem da esposa do Parsons com seu “cabelo ralo e pó cosmético nas
rugas” veio à mente de Winston. Para ele, era uma questão de tempo e talvez uns
dois anos se passassem até que os filhos a entregassem à Polícia do Pensamento
para que fosse vaporizada. Pensou em Syme, que também seria vaporizado... E
nele próprio, já que não podia alimentar qualquer outra expectativa em relação
ao seu destino. Já o tipo falante e empolgado com o regime não teria o mesmo
fim, e tampouco os que se assemelhavam ao que lembrava um besouro e que serviam
nos Ministérios.
Muitos
outros não sofreriam a perseguição, como era o caso de Parsons e da moça dos
cabelos escuros que trabalhava no Departamento da Ficção. Entre as poucas
certezas que tinha, havia essa a respeito dos que seriam enquadrados pela
Polícia do Pensamento e dos que sobreviveriam.
De repente despertou
das divagações... Surpreendeu-se ao notar que a moça da mesa onde estava o
tagarela fanático pelo regime o olhava pelo canto dos olhos. Espantou-se ao
perceber que se tratava daquela dos cabelos escuros, a mesma do Departamento de
Ficção. Ela desviou o olhar assim que notou que ele a percebeu.
Winston
ficou apavorado... Não conseguia entender por que aquele tipinho o perseguia.
Não pôde lembrar se ela já estava acomodada à mesa quando ele chegou com
Syme... O fato é que no dia anterior, no exercício dos “Dois Minutos de Ódio”,
ela havia se colocado atrás dele mesmo havendo outras cadeiras disponíveis.
Tudo indicava que o espionava, querendo saber se ele era incisivo durante as
manifestações contra Goldstein.
Talvez ela fosse uma
espiã amadora... E isso era bem pior do que se pertencesse aos quadros da
Polícia do Pensamento. Não podia ter
certeza de quantos minutos ela permaneceu a observá-lo, e isso ainda mais o
apavorava porque talvez não estivesse com a fisionomia devidamente controlada,
principalmente enquanto estivera refletindo sobre a má sorte dos que sofreriam
perseguições. Outras situações também eram comprometedoras: “uma expressão
facial imprópria (ar de incredulidade quando anunciavam uma vitória, por
exemplo) era em si uma infração punível”.
Nesses casos, o
indivíduo era acusado de cometer o “facecrime” (em “novilíngua”), tão
aterrorizante quanto às demais implicações...
(...)
Aconteceu que a moça virou-se... Winston pensou que talvez não tivesse
despertado qualquer suspeita ou mesmo que ela não o estivesse perseguindo.
Nesse caso, o fato de se sentar perto dele dois dias seguidos teria sido uma
simples coincidência.
Seu cigarro havia se apagado e ele nem notara. Com todo cuidado,
deixou-o na borda da mesa para que pudesse fumá-lo mais tarde. Havia grande
probabilidade de a moça ser uma “espiã da Polícia do Pensamento” e, nesse caso,
ele certamente terminaria “nos porões do Ministério do Amor”, mas não seria por
isso que ele desperdiçaria o resto do cigarro.
Syme recolheu as anotações que havia feito no
papel e Parsons voltou a falar a respeito dos filhos militantes. Perguntou se
já havia dito que certa vez eles colocaram fogo na “saia de uma velha” que
estava na feira. E fizeram isso porque ela havia ousado “embrulhar umas salsichas
num cartaz do G.I (Grande Irmão).”
O tipo emendou que a
mulher deve ter sofrido queimaduras significativas, e comentou em tom jocoso
que os filhos eram mesmos “uns safadinhos”, muito espertos já que o treinamento
dado pelo grupamento dos Espiões era melhor do que o que ele mesmo tivera no
passado. Parsons explicou que até “estetoscópios para escutar pelas fechaduras”
as crianças recebiam; disse que sua caçula experimentara o seu equipamento e
confirmou que podia ouvir duas vezes mais! Podia ser um brinquedo, mas já fazia
parte de treinamento sério.
(...)
Desde
a teletela ouviu-se o forte apito que marcava o fim do almoço. Todos se
retiraram das mesas e apressaram-se na direção dos elevadores. Enquanto se
encaminhava, Winston notou que o fumo que havia em seu cigarro deslizou para o
piso.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-winston-inicia.html
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto