terça-feira, 27 de julho de 2021

“1984”, de George Orwell – finalizando a biografia idealizada e documentada do camarada Ogilvy; Winston permanecia com a dúvida se Tillotson trabalhava no mesmo caso, mas estava convicto de que sua produção era a melhor; sobre o degradante refeitório dos trabalhadores do Ministério da Verdade e a péssima qualidade dos alimentos; aparece Syme, do Departamento de Pesquisa; sobre a carência de artigos básicos às necessidades do cotidiano; um tipo dedicado ao Partido e à compilação da “Décima Primeira Edição do dicionário da Novilíngua”

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-withers-havia-se.html antes de ler esta postagem:

O herói Ogilvy teria morrido aos vinte e três anos... Como não podia deixar de ser, mostrou-se intrépido até o momento derradeiro. A fantasiosa narrativa de Winston dava conta de que o herói anônimo sobrevoava o Oceano Índico “com importantes despachos” quando se tornou alvo de rajadas dos jatos inimigos. Não titubeou ao abraçar-se à metralhadora e aos documentos para saltar do helicóptero... O Grande Irmão só poderia render a homenagem e cravar que o fim do bravo Ogilvy era de causar inveja a qualquer membro do Partido.
E mais... O herói camarada ainda devia ser lembrado por sua “pureza e unidade de propósito”. Além de não ter vícios, não extrapolava os horários reservados para a recreação... Era celibatário por decisão própria, por entender que casamento e família lhe tomariam precioso tempo que devia ser dedicado à causa do Partido. Sendo assim, os assuntos que dominavam suas conversas eram o IngSoc, a necessidade de derrotar os eurasianos e a perseguição aos “sabotadores, ideocriminosos e traidores em geral”.
(...)
Depois de ter concluído a trama, Winston ainda pensou se não seria o caso de acrescentar a concessão da “Ordem do Mérito Evidente” ao Olgivy... Não seria um exagero, pois assim conferiria maior reconhecimento do Grande Irmão, mas desistiu da ideia ao considerar as “desnecessárias referências cruzadas” que isso envolveria.
Olhou mais uma vez para o lado do Tillotson e foi tomado pela certeza de que ambos se debruçavam sobre o mesmo caso. Se era isso mesmo, não haveria como saber qual dos trabalhos seguiria adiante na ordem de retificação, mas particularmente estava convencido que sua versão era a melhor.
Winston respirou fundo e pensou sobre como fizera o “Camarada Olgivy” passar a existir. Sem dúvida algo interessante ainda mais porque criava “homens mortos”, que existiam num passado idealizado para socorrer as eventuais falhas de publicações que comprometiam o regime. Pelo menos do modo com as coisas funcionavam, aquele heroico Olgivy passava a ter existência documental tanto quanto “Carlos Magno ou Júlio Cesar”.

(...)

A cantina onde os trabalhadores do Ministério da Verdade faziam refeições ficava num determinado piso abaixo do solo... O teto baixo, a aglomeração e o barulho eram de provocar mal-estar. A fila do pessoal movimentava-se lentamente enquanto o guisado “de cheiro metálico e azedo” era servido nas bandejas. A atmosfera se tornava mais carregada devido ao “odor do gin Vitória”, que era servido em grandes xícaras a dez centavos num bar instalado na abertura de uma das paredes.
Winston estava na fila... Como sempre acontecia nos horários de almoço, mantinha-se discreto e paciente. De repente, um que vinha logo atrás mostrou surpresa ao reconhecê-lo ao mesmo tempo em que anunciava que queria mesmo encontrá-lo... O tipo era certo Syme, um filólogo do Departamento de Pesquisa. Era um conhecido com o qual costumava trocar ideias...
Syme tinha um porte pequeno, cabelos escuros e “olhos grandes, saltados” que davam a impressão de estarem permanentemente atentos aos gestos dos que lhe falavam. Estava trabalhando com outros especialistas em “novilíngua” que se dedicavam ao projeto da “Décima Primeira Edição do dicionário da Novilíngua”.
Syme queria saber se Winston tinha lâminas de aço. Este respondeu que não e, como a se justificar, disse que havia procurado em vários lugares e que, pelo que havia visto, estava impossível encontrá-las. Na verdade, tinha duas, que conservava para uso pessoal, então emendou que estava usando a mesma lâmina “há seis semanas”.
(...)
O caso é que as lâminas para barbear eram artigos dos mais requisitados e as lojas do Partido não conseguiam atender a demanda... Aliás, a escassez atingia muitos outros produtos, como botões, linhas de costura, cadarços para sapatos, e diversas miudezas.
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A fila movimentava-se lentamente... Os dois chegaram ao ponto onde estavam as bandejas engorduradas e cada um pegou a sua. Syme quis saber se o colega havia comparecido aos enforcamentos da noite anterior. Winston respondeu que estivera trabalhando, mas que certamente assistiria no cinema.
Syme observou com atenção a fisionomia do camarada e ao mesmo tempo comentou que não era a mesma coisa, já que a filmagem não conseguia captar a explosão de emoções no momento das execuções. Disse essas coisas enquanto examinava as expressões do outro... Seu olhar era acusador e parecia sentenciar que via além da aparência, que conhecia bem Winston e que sabia o motivo de ele não ter ido aos enforcamentos.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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