Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-withers-havia-se.html antes
de ler esta postagem:
O herói Ogilvy teria morrido aos vinte e três
anos... Como não podia deixar de ser, mostrou-se intrépido até o momento
derradeiro. A fantasiosa narrativa de Winston dava conta de que o herói anônimo
sobrevoava o Oceano Índico “com importantes despachos” quando se tornou alvo de
rajadas dos jatos inimigos. Não titubeou ao abraçar-se à metralhadora e aos
documentos para saltar do helicóptero... O Grande Irmão só poderia render a
homenagem e cravar que o fim do bravo Ogilvy era de causar inveja a qualquer
membro do Partido.
E mais... O herói
camarada ainda devia ser lembrado por sua “pureza e unidade de propósito”. Além
de não ter vícios, não extrapolava os horários reservados para a recreação...
Era celibatário por decisão própria, por entender que casamento e família lhe
tomariam precioso tempo que devia ser dedicado à causa do Partido. Sendo assim,
os assuntos que dominavam suas conversas eram o IngSoc, a necessidade de
derrotar os eurasianos e a perseguição aos “sabotadores, ideocriminosos e
traidores em geral”.
(...)
Depois
de ter concluído a trama, Winston ainda pensou se não seria o caso de
acrescentar a concessão da “Ordem do Mérito Evidente” ao Olgivy... Não seria um
exagero, pois assim conferiria maior reconhecimento do Grande Irmão, mas
desistiu da ideia ao considerar as “desnecessárias referências cruzadas” que
isso envolveria.
Olhou mais uma vez
para o lado do Tillotson e foi tomado pela certeza de que ambos se debruçavam
sobre o mesmo caso. Se era isso mesmo, não haveria como saber qual dos
trabalhos seguiria adiante na ordem de retificação, mas particularmente estava
convencido que sua versão era a melhor.
Winston
respirou fundo e pensou sobre como fizera o “Camarada Olgivy” passar a existir.
Sem dúvida algo interessante ainda mais porque criava “homens mortos”, que
existiam num passado idealizado para socorrer as eventuais falhas de
publicações que comprometiam o regime. Pelo menos do modo com as coisas
funcionavam, aquele heroico Olgivy passava a ter existência documental tanto
quanto “Carlos Magno ou Júlio Cesar”.
(...)
A cantina onde os
trabalhadores do Ministério da Verdade faziam refeições ficava num determinado
piso abaixo do solo... O teto baixo, a aglomeração e o barulho eram de provocar
mal-estar. A fila do pessoal movimentava-se lentamente enquanto o guisado “de
cheiro metálico e azedo” era servido nas bandejas. A atmosfera se tornava mais
carregada devido ao “odor do gin Vitória”, que era servido em grandes xícaras a
dez centavos num bar instalado na abertura de uma das paredes.
Winston estava na
fila... Como sempre acontecia nos horários de almoço, mantinha-se discreto e
paciente. De repente, um que vinha logo atrás mostrou surpresa ao reconhecê-lo
ao mesmo tempo em que anunciava que queria mesmo encontrá-lo... O tipo era
certo Syme, um filólogo do Departamento de Pesquisa. Era um conhecido com o
qual costumava trocar ideias...
Syme tinha um porte pequeno, cabelos escuros e “olhos grandes, saltados”
que davam a impressão de estarem permanentemente atentos aos gestos dos que lhe
falavam. Estava trabalhando com outros especialistas em “novilíngua” que se
dedicavam ao projeto da “Décima Primeira Edição do dicionário da Novilíngua”.
Syme queria saber se Winston tinha lâminas de aço. Este respondeu que
não e, como a se justificar, disse que havia procurado em vários lugares e que,
pelo que havia visto, estava impossível encontrá-las. Na verdade, tinha duas,
que conservava para uso pessoal, então emendou que estava usando a mesma lâmina
“há seis semanas”.
(...)
O caso é que as lâminas para barbear eram artigos
dos mais requisitados e as lojas do Partido não conseguiam atender a demanda...
Aliás, a escassez atingia muitos outros produtos, como botões, linhas de
costura, cadarços para sapatos, e diversas miudezas.
(...)
A fila movimentava-se
lentamente... Os dois chegaram ao ponto onde estavam as bandejas engorduradas e
cada um pegou a sua. Syme quis saber se o colega havia comparecido aos
enforcamentos da noite anterior. Winston respondeu que estivera trabalhando,
mas que certamente assistiria no cinema.
Syme
observou com atenção a fisionomia do camarada e ao mesmo tempo comentou que não
era a mesma coisa, já que a filmagem não conseguia captar a explosão de emoções
no momento das execuções. Disse essas coisas enquanto examinava as expressões
do outro... Seu olhar era acusador e parecia sentenciar que via além da
aparência, que conhecia bem Winston e que sabia o motivo de ele não ter ido aos
enforcamentos.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-syme-nao-poupa.html
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto