Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-refletindo-sobre.html antes
de ler esta postagem:
Na verdade, a orientadora da Educação Física
estava apenas dando um descanso aos trabalhadores dos escritórios... A
ginástica teria prosseguimento, mas como Winston não conseguia se concentrar
totalmente nos exercícios, baixou os braços, respirou fundo e voltou às
reflexões...
Por tudo o que vinha
pensando a respeito de como o Partido moldava e dominava o passado impondo a
“verdade oficial”, aprofundou um pouco mais a questão do “duplipensar”. A
questão é que ele não podia deixar de considerar que, de fato, sabia que o
sistema mentia, mas tinha de mostrar-se alinhado a ele, e isso significava que
devia comportar-se como quem não sabe.
De fato, algo bem complexo...
“ter
consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente
arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias
e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a
moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da democracia e que o
Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer,
trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a
esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo”.
Talvez tentando
simplificar sua condição, sentenciou para si mesmo que tinha de “induzir
conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se inconsciente do ato de
hipnose que se acabava de realizar”.
Isso
se relacionava ao “duplipensar”. Para entender um pouco dessa “metodologia”
tinha de fazer uso dela. De qualquer modo, era isso mesmo o que vinha fazendo
por muito tempo.
(...)
Estava mergulhado
nesses pensamentos quando ouviu a instrutora chamar a atenção dos que
participavam dos exercícios... Ela os desafiava a tocar a ponta dos pés
movimentando a cintura e sem que dobrassem os joelhos. Para mais enfatizar o
incentivo, fazia o exercício marcando o tempo e o ritmo, “um-dois; um-dois!”.
Winston conhecia bem aquela
ginástica. Para ele, uma das piores, já que lhe provocava dores tremendas em
toda perna, além da tosse que o sufocava.
Apesar do desconforto físico, enquanto penava para realizar a
movimentação voltou a pensar sobre o que mais incomodava sua consciência... O
sistema destruía todo e qualquer registro do passado, assim podia moldá-lo como
bem entendesse. Simplesmente não havia como sustentar fatos que sabia terem
ocorrido, pois estavam em sua memória, porque deles não havia mais qualquer
documento físico.
Perguntou-se quando teria ouvido falar da Grande Irmão pela primeira
vez... calculou que podia ter sido entre os anos 1960 e 1970. Mas não tinha
certeza... Aliás, o que o Partido esperava de seus membros era que soubessem apenas
do que lhes era ensinado, “as histórias do Partido” nas quais “o Grande Irmão
naturalmente figurava como chefe e guardião da Revolução, desde o princípio”.
Essa constatação o levou a pensar sobre épocas
ainda mais antigas, os anos 1930, 40 e 50, tempos em que magnatas capitalistas
circulavam com suas cartolas em grandes carros ou carruagens de luxo por
Londres. Mas também isso podia nem ser verdade. Talvez fosse apenas parte de uma
lenda, uma “alegoria” para ilustrar o advento político do Partido que, afinal,
ninguém podia dizer ao certo quando havia surgido. Ao menos tinha certeza de
que nos tempos antigos, anteriores a 1960, não se falava de IngSoc, e que, em vez
disso, em “antilíngua” dizia-se “Socialismo inglês”.
A confusão entre as
informações e as datas era grande. Evidentemente o IngSoc não admitia que isso
fosse questionado... Winston pensou um pouco e se lembrou de que havia tantas
mentiras que não era preciso grande esforço para se debruçar sobre qualquer
tema dos “livros de história do Partido” para se deparar com algumas.
Havia lido em um deles que o Partido inventara o aeroplano... Ele sabia
que isso não era verdade, já que se lembrava dos aviões sobrevoando a cidade
desde sua primeira infância. Obviamente havia outros tipos que contavam idade
próxima à dele e que podiam confirmar o que ele sabia... Era possível que jamais
tivessem lido essa parte do acervo, ou ainda que simplesmente haviam aceitado a
“verdade oficial” e viviam integrados aos regulamentos.
Assim,
ele só podia se sentir cada vez mais isolado... Havia visto aviões há muito
tempo, mas e daí? Não podia provar! Jamais se podia provar algo, pois “nunca
havia prova”.
(...)
Neste ponto começou a
se lembrar de uma ocasião em que teve nas mãos uma "prova documental
inconfundível da falsificação de um fato histórico”. Mas aconteceu que a
orientadora da Educação Física gritou desde a teletela diretamente para ele. “Smith!”,
ela rugiu e na sequência vociferou sua identificação: “6079 Smith W”. Sim! Ele mesmo!
A
mulher reclamou que ele tinha de se esforçar mais no exercício... Depois
orientou-o a “ir até mais abaixo”. Ele tomou coragem e realizou a atividade
conforme lhe havia sido pedido... Ela aprovou com um “assim está melhor,
camarada” e deu ordem para que todos “descansassem”, já que tinha algo a dizer
ao grupo.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto