sábado, 31 de julho de 2021

“1984”, de George Orwell – Winston inicia registros sobre uma aventura sexual arriscada numa área próxima à estação ferroviária; pouca iluminação, maquiagem e perfume exagerados, um porão repugnante; pensando em Katharine, no modo de ser das demais mulheres do Partido e nas suas possíveis intenções ao reprimir o erotismo

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-fim-do.html antes de ler esta postagem:

Na sequência vemos Winston no seu apartamento e no exercício de escrita do diário... Percebemos que ele pretendia desabafar alguns sentimentos reprimidos que trazia em seu íntimo.
Começou registrando que numa escura noite de três anos atrás estivera numa área próxima da estação de trens, numa rua onde sequer havia iluminação pública... Buscava um relacionamento furtivo e sabia que ali podia encontrar uma mulher que lhe proporcionasse prazer sexual.
Não demorou e encontrou uma de “rosto jovem, com pintura espessa” diante da porta mal iluminada... Pelo menos foi o que lhe pareceu... A pele branca e os lábios vermelhos e brilhantes por causa da pintura chamaram-lhe a atenção. (...)
Winston parou de escrever e pensou nas mulheres que pertenciam ao Partido... Elas jamais se pintavam. Ao retomar a caneta, escreveu que a rua estava deserta, e além do mais não havia nenhuma teletela instalada nas imediações. A mulher informou o preço, dois dólares. (...)
Parou de escrever novamente porque se sentiu abalado pela lembrança... Fechou os olhos e os apertou como que a forçar a visão desaparecer de sua consciência. Seu mal-estar era tão intenso que tinha vontade “de berrar um bando de palavras indecentes a pleno pulmão, ou bater a cabeça na parede, dar um pontapé na mesa ou atirar o tinteiro pela janela - fazer algo violento, doloroso ou ruidoso que pudesse apagar a lembrança - que o atormentava”.
(...)
Atordoado pelas reflexões, pensou que o sistema nervoso podia denunciar os mais íntimos desejos de infração. Lembrou-se de certo tipo pelo qual passara há alguns dias. O homem era membro do Partido, contava uns trinta e cinco anos e tinha aspecto dos mais comuns... O sujeito carregava uma pasta, era alto e magro... Mesmo a certa distância, Winston pôde notar que o lado esquerdo de seu rosto se contorcia involuntariamente. Quando passaram um pelo outro o abreviado assombro se repetiu... Foi o suficiente para pensar que aquele pobre coitado carregasse em seu íntimo alguma tendência para a infração... O reflexo involuntário em seu rosto, ainda que involuntário e deflagrado por seu sistema nervoso, o denunciava.
Pior que isso era “falar dormindo”... Devia-se tomar muito cuidado.
(...)
Winston deu um suspiro profundo e voltou aos seus registros...
Apontou na folha do diário que seguiu com a mulher por um quintal até que alcançaram um porão onde havia uma cozinha. Uma lâmpada de parca luz que estava sobre uma mesa denunciava que no mesmo cômodo havia uma cama encostada a uma das paredes.
A mulher roeu os dentes... (...)
Esses detalhes surgiam-lhe nítidos na memoria e como as lembranças o abalavam emocionalmente, teve vontade de cuspir. Estava pensando naquele tipo, mas a figura de Katharine, sua esposa, também lhe veio à mente...
Neste ponto é bom que se saiba que Winston fora casado... Pode-se dizer que “ainda era casado” e, já que a referida Katharine estava viva, continuava sua esposa apesar de não mais viverem juntos.
Ao articular essas lembranças, teve a sensação de inalar novamente “o odor morno da cozinha do porão, um cheiro misto de percevejos, roupa suja e perfume ordinário”. Algo decadente, mas que se relacionava à mulher que se fazia objeto para seu prazer... As mulheres do Partido simplesmente não usavam perfume e tampouco se importavam em se relacionarem sexualmente.
Entre os proles encontravam-se as mulheres que usavam os cosméticos baratos. Para Winston, o perfume se vinculava à prática sexual. Quando se encontrou com a mulher que vivia na área próxima à estação de trens já fazia “dois anos ou mais” que não se aventurava em “escapadas”. O Partido não admitia que seus membros se envolvessem com prostitutas, mas esse era o tipo de regra que os militantes quebravam (também) por saberem que “não era caso de vida ou morte”. É bem verdade que no caso de serem flagrados, e de não terem se envolvido em qualquer outra infração, poderiam ser condenados a cinco anos de trabalhos forçados.
(...)
Ainda a respeito do tema, o rapaz lembrou que o maior problema para quem se arriscava era “ser surpreendido no ato”. Os bairros mais afastados estavam cheios de “mulheres prontas a se entregarem”, e havia as que aceitavam o programa em troca de “uma garrafa de gin”, algo que os proles apreciavam, mas “não tinham direito de beber”.
Não declaradamente o Partido admitia que a prostituição pudesse ser incentivada, já que eventualmente podia servir como “válvula de escape” dos instintos “não totalmente suprimidos” e desde que, além de envolver apenas mulheres das classes desprezadas, fosse apenas episódica e não resultasse em qualquer sensação de maior satisfação e exultação.
A promiscuidade entre membros do Partido “era crime imperdoável”. Alguns réus confessavam a prática da promiscuidade, mas normalmente isso acontecia quando já se reconheciam condenados.
(...)
Winston pensava sobre as verdadeiras intenções do Partido ao implicar com as relações mais íntimas entre homens e mulheres... Provavelmente não era simplesmente porque pretendia impedir que criassem cumplicidades que fugissem ao controle estatal.
A conclusão a que chegou foi a de que “o propósito real (do Partido), não declarado, era roubar todo o prazer ao ato sexual. Não tanto o amor como o erotismo era o inimigo, tanto dentro como fora do casamento”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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