quarta-feira, 21 de julho de 2021

“1984”, de George Orwell – alterando as cifras otimistas previstas pelo regime para fazê-las corretas em relação à realidade verificada; corrigindo a promessa do governo de não cortar a ração de chocolate; registros descartados seguem para o “buraco da memória” e as retificações para republicações; da “constante atualização da história” promovida pelo IngSoc; apagando-se registros do passado não havia possibilidade de provar qualquer falsificação

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-incentivos-da.html antes de ler esta postagem:

Estamos acompanhando Winston em seu trabalho de “retificar” as informações contidas em publicações anteriores para que a “verdade do regime” prevalecesse.
(...)
Ele tomou a publicação de 19 de dezembro, que trazia as expectativas do regime em relação ao quarto trimestre de 1983 e à produção de diversos gêneros de consumo. A matéria apresentava perspectivas positivas àquele “sexto trimestre do Plano Trienal”. O problema é que a última edição, exatamente a daquela manhã, estampava reportagem que contradiziam as previsões do governo. Portanto as expectativas oficiais estavam equivocadas.
Mais uma vez Winston teve de organizar as alterações e retificar as informações do fim do ano anterior. Para isso, alterou “as cifras originais” e as fez combinar com os últimos resultados publicados.
O terceiro papel trazia um “equívoco” bem simples de ser resolvido... Há cerca de dois meses o Ministério da Fartura havia prometido que no corrente ano a ração de chocolate não sofreria qualquer corte. Oficialmente se dizia que se tratava de um “penhor categórico”. Mas, como sabemos, na véspera daquele dia o governo havia anunciado o corte de trinta para vinte gramas que devia ser aplicado no próximo fim de semana.
Winston teria apenas de reescrever a promessa que havia sido feita, tornando-a uma advertência a respeito de uma “provável necessidade de se reduzir a ração por volta do mês de abril”.
(...)
Depois de redigir os novos textos, Winston os anexou cada qual às edições do Times e os colocou no tubo pneumático. Ele amassou as anotações que precisavam ser retificadas e as despachou pela abertura do descarte (o “buraco da memória”), encaminhando-as à incineração.
Evidentemente não tinha a menor ideia do percurso que a papelada revisada fazia pelos tubos pneumáticos. Pelo visto chegavam a um ambiente onde passavam por uma classificação e por sua inserção na edição do Times que seria impressa em substituição à original, que “continha os erros”.
(...)
Como podemos depreender, esse trabalho era infindável e se aplicava às diversas publicações (“jornais, livros, periódicos, panfletos, cartazes, folhetos, filmes, bandas de som, caricaturas, fotografias - a toda espécie de literatura ou documentação que pudesse ter o menor significado político ou ideológico”).
As correções eram feitas minuciosamente e praticamente cada minuto do passado era revisado de modo a comprovar documentalmente o acerto do Partido em suas declarações e previsões. Assim, nenhum registro que confrontasse, ou que estivesse em contradição, com a realidade do momento podia permanecer arquivado. Isso ocorria todas as vezes que fosse necessário, e desse modo “a história era constantemente atualizada”.
(...)
Um mesmo livro podia ser recolhido para “revisão” mais de uma vez, mas, ao ser “devolvido” ao público leitor não levava qualquer errata. Você poderia dizer que o trabalho de Winston era fraudar documentos... E é isso mesmo, porém o Partido tratava de fazer valer as versões finalizadas, e simplesmente não se falava de fraude porque não se podia provar.
(...)
Havia uma seção no Departamento de Registro muito maior do que a do Winston... Os trabalhadores daquele setor eram obrigados a vasculhar livros, jornais e outras produções gráficas já superadas e encaminhá-los à eliminação.
Do arquivo principal constavam apenas as edições devidamente analisadas e retificadas... Algumas haviam passado por muitas correções, mas, graças às incinerações, não corriam nenhum risco de serem confrontadas com outras mais antigas.
Inúmeras vezes os discursos e previsões do Grande Irmão apresentavam discrepâncias em relação ao que, de fato, se verificava na realidade... A rigorosa verificação e o encaminhamento à correção resolviam o problema. O mesmo poderia ser dito em relação às mudanças de alinhamento com os outros dois impérios.
Obviamente a palavra “falsificação” não se aplicava ao trabalho realizado pelo Departamento... Até os que faziam as tarefas como a de Winston recebiam planos de trabalho cujas instruções orientavam a correção de “erros, enganos, equívocos, interpretações equivocadas”, e assim por diante.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas