sexta-feira, 16 de julho de 2021

“1984”, de George Orwell – livrando-se da tinta nos dedos para evitar o assédio de delatores; o sonho com a mãe e a ideia de que a sociedade dominada pelo IngSoc não se pautava pela ética da “cumplicidade emocional”

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-bombas-sobre.html antes de ler esta postagem:

Winston sentiu que sua decisão, ao redigir dedicatória e saudação no diário, praticamente selava a sua sorte... Seria capturado e condenado à morte, então reconhecia que tinha de aproveitar o tempo de vida que lhe restava para dar prosseguimento ao seu ousado projeto.
Notou que tinha alguns dedos da mão manchados de tinta. Sabia que aquilo podia comprometê-lo tão logo fosse notado por alguém no Ministério... Pensou logo na mulher que trabalhava em compartimento vizinho ao seu, aquela do cabelo da cor de areia, ou na morena do Departamento de Ficção. Certamente não titubeariam e o interrogariam a respeito do motivo de se dedicar à escrita durante o almoço. Evidentemente levantariam suas suspeitas e o denunciariam.
Mais que depressa, tratou de se livrar das manchas com um sabão mais áspero. Depois guardou o diário na mesma gaveta da mesinha... Antes cuidou de alguns detalhes que poderiam denunciar sua descoberta. Colocou um fio de cabelo numa das páginas e um pequeno grão na capa. Obviamente seriam deslocados e cairiam se o livro fosse manipulado por algum intruso.

(...)

Winston sabia que havia iniciado uma fase temerária de sua existência... E o que ela havia sido anteriormente? Sabemos bem pouco, e até por curiosidade vale refletir sobre dois sonhos que ele tinha com certa frequência.
(...)
Depois de terminado o dia de trabalho e de novamente instalado em sua cama para a noite de sono, ele voltou a ter os mesmos sonhos, um seguido do outro.
Invariavelmente, o primeiro sonho era com a mãe... Pelos seus cálculos, devia ter dez ou onze anos quando ela “desapareceu”. Do pouco que se lembrava, sabia que era alta e tinha os cabelos claros... Movimentava-se demoradamente e era mais calada que o pai. Aliás, deste tinha menos lembranças ainda... Sabia que usava óculos, era um tipo “moreno e magro”, que se vestia com roupas “bem postas” e mais escuras.
Winston tinha como certo que tanto o pai quanto a mãe haviam “sido tragados num dos grandes expurgos de 1950-60”.
A respeito do recorrente sonho, via a mãe sentada “à sua frente, num lugar fundo”. Em seus braços tinha a pequena filha que, em suas lembranças, sempre surgia como um frágil e silencioso bebê, “de olhos grandes e vigilantes”. As duas sempre a olhá-lo fixamente.
(...)
Como a maioria dos sonhos, este também era composto de fragmentos de difícil interpretação... Mãe e irmãzinha apareciam acomodadas em um local subterrâneo, que podia ser “um poço ou tumba muito profunda” e que, apesar disso, pareciam submergir ainda mais. Podiam estar em um navio em pleno naufrágio e as duas mantinham-se estáticas e a olhá-lo “através de uma água cada vez mais escurecida”. Então permanecia a convicção de que não demoraria até não mais vê-las. O seu desgosto era saber que enquanto ele permanecia no salão claro e em condições de respirar, a mãe e sua pequena filha eram tragadas pela morte... O seu entendimento era o de que elas se encontravam naquela dramática situação por sua causa (o seu sonho os levava àquele quadro desesperador) e, apesar de elas saberem disso, não o censuravam, dando a entender que estavam morrendo “para que ele continuasse a viver”.
Então, no sonho, Winston era levado a crer que as duas se sacrificavam por ele. De qualquer modo, passadas três décadas do passamento da mãe, ficava-lhe a impressão de que tudo havia sido “trágico e tristonho”, algo sentido pelos que faziam parte de sua convivência. Esse tipo de situação (as tragédias pessoais e familiares) não encontrava paralelo na realidade dos anos 1980...
O raciocínio o levava a perceber que “a tragédia pertencia ao tempo antigo”, quando houve “ainda vida privada, amor e amizade, e em que os membros duma família amparavam uns aos outros sem indagar razões”. Isso o levava a um sentimento de mágoa, já que entendia que a mãe havia morrido numa época em que ele era ainda uma criança egocêntrica, incapaz de corresponder ao afeto materno... Pensava muito a respeito da morte da mãe estar relacionada a um sacrifício dela “a uma concepção de lealdade particular e inalterável”.
A ética do “tempo presente” parecia impossibilitar a cumplicidade emocional que se verificava antigamente... O cotidiano das pessoas era sempre envolvido pelo “medo, ódio e dor”, todavia sem qualquer “dignidade de emoção mágoa profunda ou complexa”.
(...)
Todas essas considerações eram articuladas por ele a partir do sonho e mais precisamente dos olhos da mãe e da irmãzinha que sucumbiam a muitos metros em águas esverdeadas.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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