Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/07/1984-de-george-orwell-bombas-sobre.html antes
de ler esta postagem:
Winston sentiu que sua decisão, ao redigir
dedicatória e saudação no diário, praticamente selava a sua sorte... Seria
capturado e condenado à morte, então reconhecia que tinha de aproveitar o tempo
de vida que lhe restava para dar prosseguimento ao seu ousado projeto.
Notou que tinha
alguns dedos da mão manchados de tinta. Sabia que aquilo podia comprometê-lo
tão logo fosse notado por alguém no Ministério... Pensou logo na mulher que
trabalhava em compartimento vizinho ao seu, aquela do cabelo da cor de areia,
ou na morena do Departamento de Ficção. Certamente não titubeariam e o
interrogariam a respeito do motivo de se dedicar à escrita durante o almoço.
Evidentemente levantariam suas suspeitas e o denunciariam.
Mais que depressa, tratou de se livrar das manchas com um sabão mais
áspero. Depois guardou o diário na mesma gaveta da mesinha... Antes cuidou de
alguns detalhes que poderiam denunciar sua descoberta. Colocou um fio de cabelo
numa das páginas e um pequeno grão na capa. Obviamente seriam deslocados e
cairiam se o livro fosse manipulado por algum intruso.
(...)
Winston
sabia que havia iniciado uma fase temerária de sua existência... E o que ela
havia sido anteriormente? Sabemos bem pouco, e até por curiosidade vale
refletir sobre dois sonhos que ele tinha com certa frequência.
(...)
Depois de terminado o
dia de trabalho e de novamente instalado em sua cama para a noite de sono, ele
voltou a ter os mesmos sonhos, um seguido do outro.
Invariavelmente,
o primeiro sonho era com a mãe... Pelos seus cálculos, devia ter dez ou onze
anos quando ela “desapareceu”. Do pouco que se lembrava, sabia que era alta e
tinha os cabelos claros... Movimentava-se demoradamente e era mais calada que o
pai. Aliás, deste tinha menos lembranças ainda... Sabia que usava óculos, era
um tipo “moreno e magro”, que se vestia com roupas “bem postas” e mais escuras.
Winston tinha como
certo que tanto o pai quanto a mãe haviam “sido tragados num dos grandes
expurgos de 1950-60”.
A respeito do
recorrente sonho, via a mãe sentada “à sua frente, num lugar fundo”. Em seus
braços tinha a pequena filha que, em suas lembranças, sempre surgia como um
frágil e silencioso bebê, “de olhos grandes e vigilantes”. As duas sempre a
olhá-lo fixamente.
(...)
Como a maioria dos sonhos, este também era composto de fragmentos de
difícil interpretação... Mãe e irmãzinha apareciam acomodadas em um local
subterrâneo, que podia ser “um poço ou tumba muito profunda” e que, apesar
disso, pareciam submergir ainda mais. Podiam estar em um navio em pleno
naufrágio e as duas mantinham-se estáticas e a olhá-lo “através de uma água
cada vez mais escurecida”. Então permanecia a convicção de que não demoraria até
não mais vê-las. O seu desgosto era saber que enquanto ele permanecia no salão
claro e em condições de respirar, a mãe e sua pequena filha eram tragadas pela
morte... O seu entendimento era o de que elas se encontravam naquela dramática
situação por sua causa (o seu sonho os levava àquele quadro desesperador) e,
apesar de elas saberem disso, não o censuravam, dando a entender que estavam
morrendo “para que ele continuasse a viver”.
Então, no sonho, Winston era levado a crer que as duas se sacrificavam
por ele. De qualquer modo, passadas três décadas do passamento da mãe,
ficava-lhe a impressão de que tudo havia sido “trágico e tristonho”, algo
sentido pelos que faziam parte de sua convivência. Esse tipo de situação (as
tragédias pessoais e familiares) não encontrava paralelo na realidade dos anos
1980...
O raciocínio o levava a perceber que “a tragédia
pertencia ao tempo antigo”, quando houve “ainda vida privada, amor e amizade, e
em que os membros duma família amparavam uns aos outros sem indagar razões”.
Isso o levava a um sentimento de mágoa, já que entendia que a mãe havia morrido
numa época em que ele era ainda uma criança egocêntrica, incapaz de
corresponder ao afeto materno... Pensava muito a respeito da morte da mãe estar
relacionada a um sacrifício dela “a uma concepção de lealdade particular e
inalterável”.
A ética do “tempo presente”
parecia impossibilitar a cumplicidade emocional que se verificava
antigamente... O cotidiano das pessoas era sempre envolvido pelo “medo, ódio e
dor”, todavia sem qualquer “dignidade de emoção mágoa profunda ou complexa”.
(...)
Todas
essas considerações eram articuladas por ele a partir do sonho e mais
precisamente dos olhos da mãe e da irmãzinha que sucumbiam a muitos metros em
águas esverdeadas.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto