domingo, 21 de março de 2021

“Deus lhe pague”, peça de Joracy Camargo – diálogo sobre a “história da vida”; considerações sobre a contradição da acumulação às custas da exploração dos que produzem; a “história do cavalo do inglês” e a crítica ao “fatalismo” e ao “regime de ilusões”; sobre o “código do bom tom” e o ridículo procedimento dos pequenos burgueses


Em suas explicações sobre a “história da vida”, o velho falou sobre a necessidade de uma nova organização (social) para que as desigualdades fossem corrigidas... Barata dizia que o desequilíbrio e as injustiças sociais não tinham solução, manifestou seu entendimento a respeito da “incoerência” de uma proposta de “viés igualitário” porque isso anularia as diferenças resultantes do esforço e mérito de cada um... Para se fazer entender pelo companheiro intelectual, perguntou se seria justo um “burro” ter a mesma vida de um “inteligente”.
(...)
O velho respondeu recorrendo a explicações vinculadas ao “materialismo histórico”.
Primeiro disse que “uns dependem dos outros”, assim os “inteligentes” dependem dos “burros” e, dessa maneira, é justo que se dê a esses “o mesmo direito de viver”... Para explicar melhor, disse que “se o carroceiro não der capim ao burro, não terá quem lhe puxe a carroça”...
Barata não conseguiu ver associação entre as sentenças... Então o velho cravou que “o capitalista vive do povo consumidor, mas, se ele reduz o povo à miséria, o povo não poderá consumir”. Novamente o companheiro pediu explicações e o velho completou:

                   “O operário produz na fábrica aquilo mesmo que terá de comprar para viver. O dono da fábrica armazena sua produção. Os preços sobem. O operário fica impossibilitado de comprar. A produção armazenada aumenta. O dono é obrigado a fechar a fábrica. O operário fica privado do que produziu, mas em compensação o dono da fábrica não tem quem lhe compre a produção. A vida para. O operário morre às portas do armazém e o dono da fábrica morre dentro do armazém, como o avarento que morreu asfixiado dentro do próprio cofre”.

Depois dessas palavras, quis saber se o colega havia compreendido melhor... Barata disse que entendeu, mas continuou a afirmar que a situação não tem solução. O velho lhe propôs refletir sobre “a história do cavalo do inglês”... Então Barata emendou que “quando o cavalo já estava quase habituado a viver sem comer, morreu”...
O velho lembrou ao Barata que aquela história nos leva a entender que os ingleses “passaram a dizer que os fatos são obstinados” e que “ninguém pode lutar contra a força lenta e sutil dos fatos”... Em outras palavras, as pessoas passam a acreditar que “não há outra saída ao cavalo”.
Barata sugeriu que “os fatos são sempre os mesmos”... E parecia mesmo que o velho queria que o companheiro chegasse àquela afirmação, pois no mesmo instante sentenciou que “não adianta fugir à compressão dos fatos”, e que, quando instituíram a mentira (e isso deve ser atribuído aos primeiro dos “mistificadores da humanidade”), criou-se um “regime de ilusões” que tornou a vida uma falsidade assim como é proclamado por muita gente.
E mais o velho afirmou:

                   “Todos se queixam de que a vida é falsa, todos lamentam os aborrecimentos causados pelo convencionalismo da vida, e anseiam o conforto que nos traz a verdade, mas ninguém tem coragem de violar o Código do Bom Tom!”.

Foi preciso explicar este “Código do Bom Tom”... E o velho o definiu como “a única lei social que a burguesia respeita” e que “obriga as pessoas a uma série de coisas horríveis, que são feitas com muito prazer”...
Barata entendeu que “tais coisas” são típicas da gente mais rica... Sim! O velho poderia assentir, pois na sequência disse que os pequenos burgueses fazem de tudo para a imitar a gente rica, e assim causam “pena a quem lhes observa o ridículo”.
E quem são esses “pequenos burgueses”? Aqueles que na realidade enfrentam muita dificuldade para garantir a sobrevivência... Alguns até estão “morrendo de fome”, mas ainda assim:

                   “vivem, exteriormente, como os ricos – comem as mesmas comidas, vestem as mesmas roupas, andam nos mesmos automóveis... dormem nas mesmas camas... os ricos à custa dos pobres, os pobres à custa da própria miséria... Como são ridículos os pequenos burgueses”.
Leia: “Deus lhe pague”. Ediouro.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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