quinta-feira, 4 de março de 2021

“Deus lhe pague”, peça de Joracy Camargo – uma conversa amistosa sobre as ideias políticas e sociais do velho; o tabu do comunismo e a rejeição a tudo o que tememos desde tenra idade; a história do manipanso e a interpretação de Péricles sobre o comunismo; realidade x absurdo; ousando perguntar se o reconheceriam num velho mendigo de porta de igreja; homem feliz, “avis rara”; o “tempo do dinheiro” é cruel para alguns; um inesperado pedido de conversa em particular

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/03/deus-lhe-pague-peca-de-joracy-camargo.html antes de ler esta postagem:

Péricles estranhou a maneira de falar do velho... Estranhou também o modo como ele insistia a respeito da importância de a sociedade eliminar o egoísmo e colocar um fim na miséria... Perguntou se ele era comunista. O velho sabia que o tema era tabu para tipos como o jovem, por isso brincou pedindo para falarem mais baixo e acrescentou que “Comunismo” é palavra que pretende fazer parte do dicionário, “com escalas pela polícia”.
O rapaz perguntou se é por isso que as pessoas têm “medo dessa palavra”... Nancy quis saber se há motivo para isso. O velho respondeu afirmativamente e justificou com uma analogia curiosa... Disse que o “Comunismo é como o boneca de palha do qual a gente tem medo quando é criança”...
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Para explicar melhor, contou que quando ele mesmo era criança tinha em sua casa um desses bonecos, que lembrava os manipansos (bonecos/ídolos utilizados em feitiços)... Naturalmente sentia medo, e esse sentimento só aumentava porque sua mãe usava o artefato para obrigá-lo a dormir mais cedo. Certa vez aconteceu de sentar-se distraidamente sobre o “boneco aterrorizante”, mas em vez de assustar-se, pegou-o nas mãos e pôde entender que aquilo era “incapaz de fazer mal às crianças”... Depois de ajeitar o boneco fez dele um grande amiguinho...
O velho finalizou dizendo que sua mãe ficou encabulada com a sua descoberta, mas ele jamais a chamou de mentirosa... No momento tinha a dizer que “o comunismo é o boneco de palha das crianças grandes”. Péricles concordou e disse que, quando pensava em comunismo, as imagens que vinham à sua mente eram sempre de um “velho feio, barbado, de nariz torto e vesgo”...
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Depois que o “amigo de infância de Nancy” deu essa definição, o dono da rica casa perguntou-lhe o que pensaria se o visse “à porta de uma igreja, pedindo esmolas”... Pensaria que o pedinte podia ser ele, um homem rico?. O rapaz respondeu que não... Nancy se intrometeu e disse que a suposição era das mais absurdas. O velho observou que o que dissera era tão absurdo quanto a própria ideia que o jovem Péricles tinha sobre o comunismo. Emendou que “o maior absurdo é a própria realidade”.
Nancy aceitou o desafio dizendo que não se pode relacionar “realidade” a “absurdo”... No mesmo instante o velho redarguiu dizendo que, então, “não há absurdo” e “tudo é real”... Inclusive o que imaginamos, pois não há como se imaginar “fora da realidade! E mais disse: “do nada não é possível tirar nada” (sabemos que ele tinha a experiência própria como prova do que acabara de dizer).
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A mulher conjecturou que, nesse caso, seria possível se prever o futuro. O velho ponderou que não se prevê o futuro, mas, em todo caso, ele pode ser contemplado desde que se queira... Essas palavras foram de difícil compreensão e Nancy pediu explicação. Ele citou Anatole France e um de seus ensinamentos a respeito da semelhança entre futuro e passado... Assim como vemos vagamente o passado, podemos fazê-lo em relação ao tempo futuro... Sabemos que o sol nascerá no dia de amanhã do mesmo modo que nasceu ontem... Para quem está disposto a raciocinar, há sempre a possibilidade de se chegar a uma noção a respeito da sequência de tal reflexão. Disse essas coisas dirigindo-se mais especificamente ao jovem Péricles.
O rapaz respondeu que tal iniciativa é das mais trabalhosas... O velho devolveu-lhe que certamente o moço era dos que consideravam o “ignorar” a “suprema felicidade”... Perguntou se ele sabia ler e Péricles respondeu que era bacharel em Direito. Evidentemente sua resposta não se encaixava exatamente à pergunta, então o velho observou isso e repetiu... Sabe ler? O moço disse que sim... E para quê? Para viver melhor... Foi a sua resposta.
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Novamente o velho implicou... Sentenciou que não era o que parecia... Quer dizer que lê para viver melhor? Pelo visto não era bem este o caso do jovem... Péricles pediu perdão “ao sábio” e o outro respondeu que “os sábios não condenam a ignorância”, eles a respeitam. Disse isso e emendou que “Adão, antes do pecado original, era o homem mais feliz do mundo”. O rapaz arriscou manifestar sua conclusão: “porque (Adão) era o único”! O velho admitiu e completou que depois “vieram os outros” e então se tornou infeliz... Partindo-se deste raciocínio, poderíamos dizer que há homens felizes em nosso tempo? “Avis rara”!
Nancy quis saber se o mesmo podia ser dito a respeito das mulheres... Seu companheiro filósofo ironizou ao responder que “há muitas, no céu”, “as onze mil virgens”... Ela cismou com o pequeno número e ele disse que as demais “não alcançaram o bom tempo”.
Péricles aproveitou para provocar Nancy e se intrometeu dizendo que na atualidade temos “o tempo do dinheiro”... O velho estranhou e quis saber se o moço sabia o que dizia.
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A pergunta do velho “caiu como uma luva”... Péricles baixou a cabeça, disse que sabia o que dizia e que gostaria de falar em particular com ele. Nancy pediu licença para que os dois pudessem ficar a sós na grande sala.
Assim que ela se retirou, o velho pediu que o rapaz falasse logo. Este aquiesceu, mas pediu encarecidamente segredo a respeito do que lhe diria.
Leia: “Deus lhe pague”. Ediouro.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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