quarta-feira, 3 de março de 2021

“Deus lhe pague”, peça de Joracy Camargo – uma conversa amistosa sobre a dificuldade de encontrarmos pessoas que sintam interesse sincero pela filosofia; todos se apresentam como entendedores de tudo, e para tudo têm solução; Péricles se vê dando palpites sobre o que não sabe; opinião do velho a respeito da necessidade de suprimir a miséria


O velho explicou que “deixaria de ser Sócrates” para conversarem como “bons amigos”...
Nancy achou por bem comentar com Péricles que o seu companheiro filósofo era um tipo alegre que gostava de brincar, daí o estranho diálogo que haviam tido anteriormente. Disse ainda que não o interrompera exatamente para que o jovem amigo pudesse conferir ele mesmo... O rapaz respondeu ironicamente que ela não quis foi poupá-lo do susto que experimentou com os assuntos do velho e que provavelmente até se divertiu com o seu infortúnio.
Ela disse que já estava acostumada com as divagações do companheiro. Péricles quis saber se o homem permanecia filósofo, então o velho respondeu que “já não há filósofos”, que “a sabedoria humana está muito espalhada” e que “todos sabem tudo”... Procurou explicar melhor ao emendar que já não nos deparamos com segredos ou mistérios, e até os mais ignorantes pensam que são capazes de “salvar a humanidade”... Disse essas coisas e acrescentou que falta humildade às pessoas, tanto é que não encontramos quem queira aprender, pois todos se consideram “aptos a ensinar”.
O moço se antecipou a dizer que tinha de confessar que era do tipo que “nada sabe”... O velho respondeu que ele se colocava daquele modo apenas por pilhéria, já que certamente em seu íntimo pensava “tudo saber”.
(...)
De repente, o velho colocou a mão sobre o baço e soltou uns gemidos... Nancy perguntou-lhe se estava mal... Péricles sugeriu que devia ser um mal-estar no fígado e que, nesse caso, devia tomar...
Porém o rapaz não conseguiu completar seu raciocínio porque o velho o interrompeu perguntando-lhe se era médico. A resposta foi negativa... O dono da casa sorriu e disse que, apesar disso, ele imaginava que entendia de Medicina a ponto de “receitar um tratamento”.
Péricles não pôde discordar... Ainda ouviu o velho dizer que todos agem daquele modo... Outra ressalva que fez foi a respeito do local da barriga, no lado esquerdo, onde apalpou. Com isso mostrou que o rapaz sequer sabia onde o fígado se localiza.
Nancy achou graça... Péricles admitiu que, de fato, todos parecem querer mostrar que entendem da Medicina. E nisso também foi corrigido pelo velho que garantiu que as pessoas querem ser vistas como entendedoras de tudo.
(...)
O velho disse que as pessoas querem se mostrar entendidas de arte e de tudo o mais. E de política, então? Será que o jovem conhecia alguém que não tenha a receita ideal para salvar o nosso país?
Mais uma vez Péricles teve de concordar... Ideias não faltam por aí! Foi o que ele disse... E por quê? O velho quis saber... Como resposta, o outro soltou que “o povo é incontentável”.
Mais uma vez o dono da casa aproveitou para proferir dos seus ensinamentos... Disse que a opinião exposta por seu interlocutor era inadequada. Sentenciou que o povo quer algo bem simples, que é a supressão da miséria. Péricles mostrou-se surpreso... Será que o velho acreditava mesmo que a felicidade da gente comum estaria na supressão daquela palavra? Ele respondeu que não tinha certeza, mas garantiu que era algo simples de se experimentar.
Nancy resolveu se intrometer sugerindo que outra palavra devia ser suprimida... obviamente suscitou a curiosidade dos dois e ela disse que o “amor” devia ser riscado dos dicionários. O velho discordou no mesmo instante, disse que se trata da palavra mais bonita e que deviam reintegrar ao “amor” o “seu verdadeiro sentido”. A mulher observou que “o amor tem cinco sentidos”. Seu companheiro filósofo olhou para o que estava de visita e adiantou que há muitos sentidos figurados para o “amor”. Em sua opinião, a supressão da “miséria” reajustaria tudo o mais, inclusive o “amor”.
Ela aproveitou e o questionou sobre a palavra “felicidade”. Ele disse que se trata de palavra inspiradora, todavia salientou que as pessoas a associam a “inocentes seduções” e nisso erram. Se agissem diferente, “talvez a humanidade fosse feliz, como são felizes aqueles que não sabem distinguir o bem do mal”.
Na sequência, Nancy sugeriu a palavra “egoísmo”... Fez isso como se participasse de um jogo, mas o velho respondeu com seriedade que tal palavra representa “grande obstáculo” e de modo poético sugeriu que é nela que se encontra “o castelo feudal em cuja arca está guardada” a “miséria”, o tema que deu iniciou à conversa.
Leia: “Deus lhe pague”. Ediouro.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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